VIA familia Proh

VIA familia Proh

Achava-se a familia Proh reunida na sua sala. Os leitores já conhecem a sr.ª Celeste Proh, de quem lhe fizemos o retrato; seu marido, o sr. Castor Proh, é um antigo professor de historia e de linguas mortas. É um homem alto, magro, amarello, que era feio em moço, e que não se fez bonito em velho; tem o nariz de tal forma chato, de tal forma acachapado, que lhe seria impossivel segurar n’elle uns oculos. Esse senhor tem sempre os ares d’um preceptor prestes a ralhar com o discipulo, conserva constantemente uns modos arrogantes e desagradaveis; sua mulher sustenta nunca o ter visto rir, mas ha pessoas que se divertem por dentro sem que ninguem dê por isso: com o sr. Proh não se dá por similhante coisa.

Uma herança, com que elle não contava, permittiu ao professor descançar e viver dos seus rendimentos; já não quer occupar-se, diz elle, senão da educação dos filhos; mas a filha prefere as artes agradaveis ao estudo da historia, e o Affonsinho deita a lingua de fóra ao pae, quando este lhe fala de linguas mortas; é um verdadeiro diabrete, guloso, curioso, preguiçoso, traquinas, respondão; o pae affirma que o pequeno promette...

A menina Angelina Proh approxima-se dos dezeseis annos; n’esta edade, em não sendo torta nem corcovada, em não tendo o nariz escarrapachado nem os olhos remelosos, uma rapariga é sempre bonita; não é ás vezes senão abelleza do diabo, mas isso faz ainda conquistas, ha homens que não apreciam senão essa belleza. A menina Proh não possuia outra; juntava a isso uma dóse de toleima, que podia ainda passar por ingenuidade, mas que mais tarde não devia deixar a menor duvida sobre a sua qualidade.

N’este momento, a sr.ª Proh está principiando a bordar uma golla, a menina Angelina tenta desenhar olhos e orelhas; o Fonfonsinho recorta uma estampa, e o ex-professor passeia pelo meio da casa, cofiando com a mão a barba e parecendo meditar. De repente pára:

—Affonso, vou-te fazer uma pergunta bem simples.

—De que é que vae fazer...

—Não se diz: de que é que! em primeiro logar essa construcção de phrase é viciosa...

—Viciosa! então que mal fez ella?

—Meu filho, eu interrogo-o, mas o menino não tem direito para me interrogar... Escute bem, e responda-meillico! Como se chamava o primeiro homem?

—Illico!...

—Hein? vamos, menino, dê-me attenção... Pergunto-lhe como se chamava o primeiro homem?

—Pois bem!Illico!Disse-me que respondesse:Illico!... digo-lh’o, e não está contente!...

—Mas, velhaquete, eu entendo porillico, immediatamente... logo, logo...

—O pequeno tem razão; para que emprega com elle termos barbaros que a creança não comprehende? estraga-lhe a memoria, e mais nada!

—Minha senhora, metta-se lá nos seus trapos, nos seus vestidos, e deixe-me dirigir a educação de meu filho, elle tem talento; promette, mas precisa ser bem ensinado...

—Graças a Deus, tem muito tempo deante de si.

—Nunca se tem bastante. Aqui estou eu, que sei muito, lisonjeio-me d’isso, e precisaria ainda cem annos de existencia para ser completo!

—Como um omnibus!...

—Fonfonso!tu castigaberis!...

—Papá, bem sabe que nos omnibus o conductor grita: Completo! Olhe! desenhe-me um boneco, a mana não me quer fazer nenhum...

—A mana está trabalhando nos seus olhos e nas suas orelhas, e tem razão. Isto porém faz-me lembrarque a sua lição de desenho era hontem... O Casimiro veiu?

—Sim, papá...

—Não, é falso; a mana não fala verdade, o vizinho não veiu hontem dar-n’os lição...

—Seu mano tem razão, menina?

—Ora! não sei... já me não lembro... vão fazer-me enganar na minha orelha!

—Eu não dou vinte e cinco francos por mez a esse rapaz para que elle se descuide das suas lições. Sr.ª Proh, a senhora é que devia tomar sentido n’essas coisas...

—Por quem é, socegue! o sr. Casimiro não é capaz de o prejudicar n’uma lição! é um rapaz muito distincto, e que só ensina desenho aos nossos filhos para nos obsequiar.

—Desconfio das pessoas que fazem as coisas para obsequiarem: em geral fazem-n’as mal; é como aquelles creados que estão sempre a dizer que não nasceram para servir, não fazem nunca bem a sua obrigação.

—Papá, faça-me um boneco.

—Vamos lá; tens papel e lapis?

—Aqui está tudo. Ah! mas eu quero que faça o boneco com o pé.

—Com o pé? Fonfonso, tu não sabes o que dizes! então a gente desenha com os pés quando tem as mãos á sua disposição?

—Mas o papá deve servir-se tanto dos pés como das mãos, visto que é quadrumano.

—Quadrumano! eu sou quadrumano! quem é que lhe disse tal insolencia? o menino sabe o que é um quadrumano?

—Sei, é um chimpanzé, e bem sabe que o outro dia a mamã disse-lhe que era um chimpanzé. Perguntei ao sr. Casimiro o que era um chimpanzé, e elle respondeu-me que era um homem dos bosques, que era um quadrumano.

—A senhora bem está ouvindo; seu filho compara-mecom um macaco, porque a senhora o outro dia não receiou qualificar-me com esse epitheto.

—Tambem o senhor me chamou girafa. Era porventura mais delicado?

—Papá chimpanzé, faça-me um boneco.

—Se me tornas a chamar chimpanzé, levas uma sova de açoutes que te racho! Vá estudar a sua lição de grammatica, para m’a dizer logo.

—Ora! a grammatica aborrece-me; gosto mais de recortar estampas.

—Faça o que lhe ordeno, seu patife! e não resmungue. Angelina, quando acabares o teu desenho de orelhas, espero que te lembres das minhas piugas, que estão em muito máu estado, já me queixei d’isso a tua mãe, que creio que terá attendido a minha reclamação.

—As suas piugas! Ora! ainda lhes não toquei.

—Como! pois a senhora não manda concertar a roupa? na verdade, não sei em que pensa, ou antes sei-o demasiado. É nos seus adornos, nos seus enfeites, nos seus vestidos de cauda ou sem cauda, e a roupa fica n’um estado miseravel! os meus colletes de flanella não têem botões, as camisas estão todas rasgadas, as ceroulas estão cheias de buracos; mas a senhora, comtanto que tenha um vestido á moda, não quer saber de mais nada.

—Queria talvez que eu tivesse sempre as suas ceroulas no pensamento! Ah! credo! seria bem triste!...

—O que é triste, é achar a gente as camisas rôtas na occasião de as vestir.

—Socegue, a sua roupa ha de ser concertada; mas como n’esta casa ha trabalho de mais e como eu e minha filha não podemos chegar para tanto dei tudo isso a uma costureira.

—A uma costureira! mas está a senhora bem informada a respeito d’essa costureira? ha algumas que trocam os objectos que se lhes confiam.

—Oh! não imagine que ella lhe vae trocar as piugas, o senhor está sempre com medo de que o roubem,demais, é uma rapariga que mora no predio, no quinto andar, é a menina Lisa.

—A menina Lisa! não conheço. E trabalha bem, essa menina Lisa.

—Cose como uma fada; já lhe dei que fazer, e fiquei muito satisfeita com ella, tanto mais que não leva caro, dá-lhe a gente o que quer.

—Oh! então é preciso dar-lhe que fazer muitas vezes. E essa rapariga mora sózinha lá em cima?

—Não, está com a avó, uma boa velhinha, quasi paralytica, que já não se acha em estado de fazer nada; pois bem! é a menina Lisa que tem cuidado d’ella, que trabalha dia e noite para que não falte nada á pobre velha. Oh! esta rapariga porta-se muito bem... toda a gente no predio lhe faz elogios.

—Hum! desconfio d’essas pessoas a quem todo o mundo faz elogios, isso esconde ás vezes muitas coisas, essa sujeitinha tem sem duvida namorados...

—Oh! que idéa! não fale assim deante de sua filha.

—Minha filha aprende desenho, e quando uma menina quer desenhar de modelos de gesso e copiar estatuas antigas, creio que pode comprehender o que é um namorado. Demais, a tal menina Lisa é muito ajuizada, não tem nenhum! estimo bastante.

—Sim! sim! Lisa tem um namorado! exclama o joven Fonfonso; eu bem sei! eu conheço-o...

—O que está o menino a dizer! aonde foi aprender essas coisas?...

—Ora, ouvi dizer. Não é verdade mana, que a costureirinha do quinto andar tem um namorado?...

—Deixa-me, vaes fazer com que me engane na minha orelha.

—Menina, diz por sua vez a mamã, sou eu que a interrogo; deixe por um momento as suas orelhas e responda-me. A menina sabe que Lisa tem um namorado?

—Se derem credito ás tolices que diz o mano, estão bem aviados.

—Tu é que és uma tola; bem ouviste o borrachão que mora nas aguas-furtadas dizer o outro dia na escada:Viva Lisa! viva a minha namorada! E por signal tu disseste: Ora não ha! olhem que bello namorado que a Lisa tem!

—Isso não é verdade! eu não disse tal!

—Disseste, sim!

—Não, não, não!

—Sim, sim, sim!...

—Basta, basta!satis! satis!grita por sua vez Castor Proh; estes irmãos fazem-me lembrar Cain e Abel, que eu não conheci, mas cujas questões tiveram consequencias bem terriveis!

—Desde o momento em que o bebedo das aguas-furtadas está mettido em tudo isto, diz Celeste, já o senhor vê que caso se pode fazer do que acaba de dizer seu filho.

—Sim, senhora, esse bebedo, esse tal Rouflard, porque é assim que elle se chama, creio eu, esse maroto, preguiçoso, borrachão que devia ser expulso do predio. Chausson, o porteiro, tinha-m’o recommendado, pedindo-me que lhe désse alguma coisa que fazer, e dizendo-me que era um homem bem educado, que tivera desastres na sua vida. Eu accedi a occupal-o, ainda que desconfio sempre d’essas pessoas que tiveram desastres. Eu tinha justamente precisão derhumda Jamaica, a senhora não gosta, prefere o licor de herva doce, mas gosto eu. Era um dia em que a senhora jantava fora com os pequenos. Dou dinheiro ao tal Rouflard, ordenando-lhe que fosse aosAmericanos, que é onde ha certeza de o achar bom. O homem sae d’aqui perto das quatro horas da tarde. Era preciso quando muito uma hora para fazer o recado, e ás seis horas ainda não tinha voltado. Vou-me queixar ao porteiro, receioso de que tivesse acontecido algum desastre ao seu protegido. Dão sete horas, dão oito, finalmente, ás dez horas, vejo chegar o nosso homem, borracho, bebedo, mal podendo suster-se nas pernas, e que me apresenta uma garrafa quasi despejada, dizendo com ar chocarreiro: «Aqui tem a sua garrafa derhum... entornou-se um pouco pelo caminho... é que provavelmente não trazia a rolha bemapertada.» «Como! lhe dige eu, atreve-se a affirmar que a garrafa se entornou! porém ella devia estar perfeitamente lacrada! para que teve a confiança de a abrir?... foi para beber o meurhum... você é um maroto!... um patife!...» Em vez de se desculpar, de me pedir perdão, o tal Rouflard diz-me a modo de injuria: «Se não está contente, vou beber o resto!...» Effectivamente, deixei-lhe o resto; mas dei os meus agradecimentos ao porteiro, e, repito, um tal bebedo não devia continuar a viver no predio.

—Ora adeus! o Rouflard não tem medo de vossemecê, papá Chimpanzé, não, Chimpanzé não... papá Castor...

—Então o menino conversa com esse homem? Fonfonso, prohibo-o que lhe fale, não quero que aprenda máus costumes.

—Não sou eu que lhe falo, elle é que me diz sempre tolices quando passa.

—Não lhe responda, encerre-se no seu foro intimo.

—Não entendo, papá.

—Quero dizer que não dê attenção ao que lhe diz esse bebedo.

—Ora! mas diverte-me, faz-me rir, hontem pela manhã disse-me: Porque é que teu pae não põe o seu nome por cima da porta? é uma coisa que sempre se faz para os artistas.

—O que, Fonfonso! esse homem tem a petulancia de te tractar por tu! Que insolencia!

—Eu não lhe posso obstar...

—Deves-lhe dizer: Olhe que eu nunca guardei perús com o senhor.

—E elle responder-me-ha: Mas já os guardaste com o teu pae.

—Ah! esse tal Rouflard queria que eu puzesse o meu nome por cima da porta!

—Sim, senhor; até me disse: Fica descançado, pequeno, hei de eu lá pôl-o e mais o de toda a familia, é preciso que todos saibam onde hão de procurar a familia Proh...

—Elle disse-te isso! mera brincadeira, talvez...

—Ah! exclama Angelina, isto faz-me lembrar que vi hontem esse homem subir a escada com um grande pedaço de giz na mão.

—Teria elle porventura a petulancia de fazer caricaturas ridiculas por cima da minha porta!...

—Vá sempre vêr, sr. Proh, n’um bebedo tudo se deve esperar, nós ainda hoje não saímos, poderia elle ter effectuado hontem as suas ameaças sem que nós o soubessemos.

O sr. Proh sae da sala e dirige-se ao patamar. D’ahi a poucos instantes ouve-se um grito de indignação; toda a familia corre immediatamente para a escada, com grande curiosidade de saber o que pode estar escripto por cima da porta.

—Venha, senhora, venha! exclama Castor, venham todos, e vejam o que o tal Rouflard teve a pouca vergonha e a audacia de escrever por cima da nossa porta. Oh! ha para toda a gente...

Com effeito, por cima da porta tinham escripto a giz, e em grandes lettras:

A sr.ªPro-fanée.

A menina,Pro-nobis.

O sr.Pro-fesse.

O meninoPro-pice.


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