VIIITravam conhecimento

VIIITravam conhecimento

Casimiro desce a escada muito devagar atraz do inquilino da agua-furtada, não porque tenha receio de cair, mas porque está muito preoccupado com o que Rouflard lhe contou ácerca da rapariga que mora no quinto andar, que trabalha toda a noite para sustentar a avó, e acha ainda meio de ser util aos que carecem de pão.

Chegado ao patamar do quinto andar, o nosso mancebo pára deante da porta da menina Lisa; estimaria bastante que aquella porta estivesse aberta, mas não acontece assim; é verdade porém que a chave está ainda na fechadura, o que annuncia que se não receia vísita importuna. Casimiro está morto por tornar a vêr a rapariga de quem se lhe fez tão grande elogio, diz de si para si que ha pouco não lhe agradeceu bastante a indicação que ella lhe dera, accrescenta ainda que entre visinhos não deve haver muita cerimonia, que de mais esta menina não tem muito trabalho para ganhar dinheiro pela sua agulha, e que se elle podesse ser-lhe util arranjando-lhe que fazer, n’isso lhe prestaria um grande serviço. Emfim dá a si mesmo uma infinidade de razões para ter o direito de abrir a porta, e é o que faz.

Lisa continuava trabalhando, mas já não cantava; tinha o parecer triste, e dirigia especialmente a vista para o leito, onde a velha estava deitada, depois dava um profundo suspiro. Ao vêr entrar de novo Casimiro em sua casa, as suas feições exprimem a sua surpreza; mas, quando o rapaz vae para falar, ella põe um dedo na bocca, e diz-lhe a meia voz:

—Baixinho! tenha a bondade de falar baixo, porque minha avó está dormindo, e preciso não a acordar;esteve esta noite muito doente, muito inquieta, não socegou um instante...

Casimiro entra pé ante pé, e murmura approximando-se da rapariga:

—Menina, eu sou sem duvida muito indiscreto em vir segunda vez incommodal-a, mas não sei se lhe disse que era seu vizinho.

—Sim, senhor, disse-m’o, demais, eu já o sabia, tenho-o visto algumas vezes no predio.

—Tem-me visto, e eu não tinha dado pela menina. Onde tinha os olhos?...

—É que eu estava no cubiculo do porteiro, e depois occupo tão pouco espaço, é muito facil não me verem...

—Mas, quando alguem a vir uma vez é impossivel que não deseje tornar a vêl-a mais vezes...

Lisa não responde a isto, mas volta os olhos para o leito; Casimiro percebe que o momento é mal escolhido para lhe render finezas, e que, demais, não é para lhe fazer a côrte que elle quer travar conhecimento com a sua vizinha, mas no desejo de lhe ser util. É esse realmente o seu unico intuito? Eu por mim não respondo por isso; mas já é alguma coisa o ter boas intenções. O mancebo prosegue pois falando baixo e sentando-se n’uma cadeira que está perto d’elle:

—Perdão, minha vizinha, vou falar-lhe francamente, e espero que nas minhas palavras não verá nada que a possa offender. Soube pela pessoa que móra lá em cima, com que actividade a menina se entrega ao trabalho, para que sua avó não careça de coisa alguma; mas o trabalho d’uma mulher é quasi sempre mal retribuido, eu ter-me-hia por muito feliz se podesse offerecer-lhe o meio de ganhar mais, fatigando-se menos...

—Porque outro trabalho? eu não sei senão coser, bordar e fazer meia ou renda.

—Eu me explico: sou pintor; ensaiei alguns quadrosinhosde genero, mas ganha-se mais dinheiro a fazer retratos; n’isso ainda eu não sou muito forte,preciso estudar, trabalhar muito, emfim tenho necessidade sobretudo de pintar do natural, e para isso preciso de modelos. Notei que aquelle Rouflard tinha uma cabeça caracteristica, eis a razão por que fui esta manhã falar com elle. Propuz-lhe vir a minha casa servir-me de modelo; elle acceitou com alegria, e eu poderei occupal-o bastante tempo. Mas a minha sympathica vizinha, que tem uma cabeça encantadora, ah! perdôe-me este elogio, é como artista que lh’o faço, eu julgar-me-hia muito feliz se podesse reproduzir na tela as suas feições tão finas, tão suaves. Oh! estou certo de que havia de conseguir! trabalha-se tão bem quando se tem deante dos olhos um modelo que nos encanta... não lhe pedirei que venha servir-me de modelo senão quando não tiver nada urgente para fazer... acceitaria a sua hora... o seu tempo vago... e não julgaria nunca pagar bastante caro as sessões que houvesse por bem conceder-me; eis o motivo por que tomei a liberdade de abrir outra vez a sua porta e de me apresentar aqui de novo. Se a minha proposta lhe desagrada, espero, ao menos, que não verá n’isso da minha parte nenhuma intenção má.

A menina Lisa, que escutou Casimiro com muita attenção, responde-lhe logo:

—Não, senhor, não tomarei á má parte a sua proposta. Soube pelo Rouflard que trabalho para viver, para que nada falte á minha boa avó, e desejou ser-me util; não posso senão agradecer-lhe muito o interesse que se dignou tomar por mim. Mas não acceito a sua proposta; ser modelo de pintores não é a minha occupação, e tenho ouvido dizer... ao meu vizinho cá de cima, que as mulheres que consentiam em servir de modelos, não eram bem vistas na sociedade. Eu sou uma pobre rapariga, sem amparo, sem familia, não tenho pois por unica fortuna senão a minha reputação, e devo ter a peito conserval-a; tenho razão não é verdade?

Estas palavras tão simples, mas tão justas fazem viva impressão em Casimiro, que não está habituado a ouvir uma mulher falar tão discretamente. Tracta comtudo de convencer Lisa.

—Menina, convenho que o mister de modelo não dá a qualquer mulher uma perfeita reputação de seriedade, posto que em todas as profissões se possa ter bom comportamente quando ha firme vontade de proceder bem. Mas tambem eu não vinha propôr-lhe que renunciasse ás suas occupações habituaes por esta nova profissão. Podia-lhe que me servisse de modelo sómente a mim, que me permittisse reproduzir as suas feições na tela, era um favor que eu solicitava e, para a menina, uma curta distracção aos seus trabalhos. E como lhe podia parecer pouco regular ir a minha casa servir de modelo, viria eu para aqui pintar, traria para cá a minha palheta e os meus pinceis; d’esta maneira, a menina não deixaria mesmo um instante a pessoa a quem prodigaliza todos os seus cuidados. Os modelos pagam-se muito caro, desculpe-me entremetter a questão de dinheiro em tudo isto; mas na vida não ha remedio senão attender a essa questão: ora, se eu occupasse um modelo durante umas dez sessões, dar-me-hia por muito feliz se elle se contentasse em receber cincoenta francos...

—Ih! Jesus! tanto dinheiro, só por servir de modelo!...

—Sim; e quanto mais bonito é o modelo, mais caro se faz pagar, isso comprehende-se. Por isso, para achar um como a menina, em primeiro logar seria muito difficil, depois teria de o pagar por um preço muito mais elevado, e as minhas posses não me permittem uma tão grande despeza. Já vê portanto que, satisfazendo ao meu pedido, era a mim que a menina obsequiava, era eu que lhe devia agradecimentos; mas isto desagrada-lhe, não pensemos mais em tal...

Lisa d’esta vez hesita para responder; a final murmura.

—Sinto não poder ser-lhe agradavel; parece-me entretanto que não deve ser difficil achar uma cara que valha bem a minha. Olhe, senhor, eu não conheço nada o mundo, mas creio que o céu me deu o segredo de ler no pensamento das outras pessoas: o senhordeseja ser-me util e tracta de me persuadir de que eu é que lhe prestaria serviço. Ah! isso é bem generoso da sua parte... confesse que adivinhei.

Casimiro está muito admirado da perspicacia da rapariga. Não pode deixar de sorrir, balbuciando:

—Confesso que me espanta, menina; a sua linguagem annuncia mais educação do que de ordinario se recebe na posição precaria em que a vejo. Não tem mais parentes senão essa pobre enferma, diz a menina; mas aquelles que perdeu occupavam então uma posição mais afortunada; perdão, sou talvez demasiadamente curioso?

—Oh! eu não tenho motivo para me rodear de mysterios! não conheci nunca meus paes; abandonaram-me muito cedo aos cuidados d’uma ama, depois esqueceram-se de mim completamente.

—É possivel! pobre creança! mas essa velhinha que ahi está?...

—Chamo-lhe avó, mas não me é nada; era mãe de minha ama. Essa chamava-se Catharina Vauger; queria-me muito, e o que mais receiava era o momento em que teria de separar-se de mim para me entregar á minha familia; ficou pois bem contente quando lhe enviaram uma forte quantia, dizendo-lhe: «Saia da sua aldeia, fique com a creança; em vez do nome que ella tem, chame-lheLisaunicamente; mas vá para Paris, para a morada que aqui se lhe indica, estabeça-se, e arranje uma lojita, que alguem terá o cuidado de a indemnisar das despezas que fizer com a menina.» A minha ama acabava de perder o marido. Partiu para Paris, trazendo comsigo a mãe, que alli está, n’aquella cama. Durante algum tempo recebeu pelo correio certas quantias para mim, depois, de repente isso acabou, não se ouviu mais falar em coisa alguma!...

—Mas a sua ama sabia sem duvida o nome da pessoa que lhe escrevia?

—Não, as cartas não vinham assignadas; nunca mesmo lhe tinham dito o nome de minha mãe...

—É completamente um romance!...

—A minha boa ama pouco se inquietou com isso; tinha emprehendido um negociosinho de leite e de queijos que corria bem. Assim que fiz seis annos, mandou-me á escola; depois, um pouco mais tarde, a um collegio semi-interna, porque ella não queria nunca separar-se de mim mais de meio dia. Querida e boa ama! queria-me mais que uma mãe! visto que a minha me abandonára. Vivemos assim muito felizes durante alguns annos; mas, ha quatro annos, a boa Catharina caíu doente, e, apezar de todos os meus desvelos, morreu; tinha eu apenas quatorze annos, e comtudo a minha ama recommendou-me sua velha mãe, porque ella conhecia-me, sabia que eu tinha coragem, e a firme vontade de reconhecer pelo meu trabalho tudo o que tinham feito por mim. Durante os primeiros tempos, para vivermos, minha avó e eu, fomos obrigadas a trespassar o estabelecimento da minha ama. Eu procurava trabalho, mas não o podia obter, achavam-me muito nova para m’o confiarem, e quando minha avó o pedia, achavam-n’a muito velha. A final, a Providencia veiu em nosso auxilio, e eu pude ganhar a nossa vida. Mas, ha um anno, a minha pobre companheira ficou meia paralytica, já o senhor vê que tenho razão para trabalhar sem descanço e para velar constantemente pela pobre velha que não tem mais ninguem para a tractar.

—O que me acaba de dizer, não tem feito mais que augmentar o interesse que me inspirava, e perdôe, se torno ainda a falar n’isto, o desejo que sinto de lhe ser util. Pobre pequena, abandonada pelos paes, que vivem talvez na abastança e podem ter todos os gozos que a riqueza proporciona, emquanto que a menina...

—Asseguro-lhe que nunca penso em tal, não choro senão a minha ama, a minha unica mãe! e que me queria tanto! Não tenho resentimentos contra meus paes por me haverem deixado com ella. Nem minha mãe nem meu pae me teriam de certo tractado melhor.

—A menina tem muita philosophia, dou-lhe porisso os meus parabens: outras, no seu logar, forjariam mil chimeras.

—Oh! eu não! não penso senão no meu trabalho.

—E sempre me recusa o favor que lhe peço de me deixar tirar o seu retrato, vindo eu aqui?

—Certamente; d’essa maneira, é muito mais decoroso; mas não importa, não quero servir de modelo.

Casimiro suspira e levanta-se dizendo:

—Vamos, vejo perfeitamente que nada pode vencer a sua repugnancia. Não devo por insistir mais; mas, no emtanto, se por acaso mudar de parecer, eu estarei sempre prompto com a palheta e os pinceis, e a menina não tem senão uma palavra a dizer, para me ver aqui immediatamente.

—Muito agradecida.

—Demais, se me dá licença, virei eu proprio saber da saude da sua doente, a menina permitte-me, não é verdade?

A menina Lisa faz-se córada, hesita, mas este pedido era-lhe feito com uma voz tão meiga, este rapaz tem mostrado por ella tanto interesse, mostra-se tão respeitoso, tão delicado, e depois não é um estranho qualquer, mora no mesmo predio, e o porteiro nunca disse d’elle senão bem; tudo isto decide, a rapariga a pronunciar um sim, que enche de alegria o seu vizinho.

Casimiro então torna a agradecer a Lisa a permissão que ella acaba de lhe conceder, depois despede-se e retira-se em bicos dos pés, sem fazer bulha, de modo que a doente não accorda.

O nosso mancebo, ao entrar em sua casa, sente-se cheio de ardor para o trabalho; dispõe a sua tela, e prepara a palheta e os pinceis. Os bons exemplos fazem muito mais effeito que os bons conselhos, no que ha a differença da practica á theoria; escuta-se muitas vezes com indifferença, e esquece-se mesmo o que se ouviu; mas nunca se olvida o que se viu. Tem razão o proverbio que diz: Um olho vale mais que dez ouvidos:

O joven pintor aguarda impaciente a chegada deRouflard para se pôr ao trabalho; mas passa-se o tempo e o modelo não apparece. Casimiro começa a pensar que fez mal em pagar adiantado ao inquilino da agua-furtada, que é capaz de gastar tudo quanto recebeu, antes de pensar em cumprir a sua promessa.

Mas não tarda que se ouça um grande arruido de vozes; grita-se, ralha-se no patamar, e a voz de Rouflard cobre muitas vezes todas as outras. Casimiro quer saber o que se passa, corre a abrir a porta e vê no seu patamar a familia Proh á briga com o seu futuro modelo.

O sr. Proh e sua mulher parecem muito exaltados; Rouflard está apenas um pouco «electrizado...»

—Sim, senhor, grita o sr. Proh, que tem effectivamente alguma similhança com um chimpanzé; eu tinha direito para o chamar a uma policia correccional pelo que o senhor escreveu por cima da minha porta...

—Ah! ah! ah! o senhor faz-me rir com a sua policia correccional, faça-me ir ao tribunal, isso ha de divertir-me...

—Pelo menos ha de ir á presença do juiz de paz! diz Celeste Proh, porque o senhor insultou-me, chamando-me sr.ªProfanée!...

—Insultei-a! com a breca! a senhora é difficil de contentar! comparo-a com uma flor. Quando uma flor está meio murcha, diz-se que estáfanée... concedo-lhe que é uma rosafanée... e zanga-se com isso... eu podia-lhe ter posto: a sr.ªProbléme... a sr.ªProfile... um reles algodão...

—Cale a bocca, insolente! meu vizinho, faço-o juiz d’esta questão: o senhor leu sem duvida o que este homem tinha escripto com giz por cima da nossa porta?...

—Não, minha senhora, não reparei...

O rapazito põe-se a gritar:

—Era: A meninaPronobis, a sr.ªProfanée...

—Cale-se, Affonsinho, não é preciso repetir essas coisas feias, visto que o nosso vizinho não as leu...

—O sr.Professe! eu sou o meninoPropice...

—Cale a bocca. Fonfonso!... vá já para casa...

—Não quero...

—E porque é que me pôz a mim o sr.Professe?... O que entende por esta locução? exclama o falso chimpanzé muito zangado.

—O que entendo? oh! essa é boa! Pois não é difficil de adivinhar! É verdade que talvez isso lhe não aconteça já!

—Senhor, hei de ter uma satisfação de todas essas offensas!...

—Quer que eu lhe dê uma satisfação? Estou prompto, um duello! agrada-me a proposta; logo cá lhe mandarei o meu creado, para o senhor ajustar com elle as condições do combate, acceitarei a arma que escolher, isso para mim é indifferente! bato-me com tudo quanto se quer, mas o florete é a arma das pessoas de distincção...

—O que é que diz? um duello! este homem propõe-me um duello, creio eu... que desaforo! atrever-se a suppôr que iria medir-me com elle! tem graça!...

—Medir-se, meu caro amigo! oh! não com um metro! o senhor é uma grande vara, e eu não tenho senão tres pollegadas e meia, a vantagem seria toda sua! mas Chausson, o meu antigogroom, nos emprestará duas espadas de guarda nacional, ou dois páus de vassoura, á sua escolha. Convem-lhe isto, sr.Pro... rata?

—Sr. Casimiro, peço-lhe que diga a este homem que se cale, aliás não respondo pelo que acontecerá...

—Não te faças fanfarrão,Professeur! olha que te vou á figura...

—Sr. Rouflard, vê-se perfeitamente que almoçou bem de mais, não é isso que me tinha promettido. Esquece-se de que tem de vir a minha casa servir-me de modêlo, e que estou á sua espera?...

—Ah! é verdade, tem razão, desculpe, meu pintor, eu ia a sua casa, para que me tomou esta gente o caminho?...

—Sr. Proh, e minha senhora, peço-lhes que não tomem a sério os gracejos de máu gosto que estehomem se atreveu a proferir, elle bebe de mais algumas vezes para esquecer a sua miseria, devemos ser indulgentes com os desgraçados, prometto-lhes que não tornará mais!...

—Ah! sr. Casimiro, é só em attenção ao senhor!

—Vamos, Rouflard, vamos para o nosso trabalho...

—Já vou, meu Miguel Angelo, meu Raphael. Familia Proh... tornaremos a ver-nos...

—Venha, Rouflard, venha d’ahi...

—Vamos lá fazer de modeloPro Deo e pro patria!... É bonito isto!Pro-deo...

Casimiro faz entrar o modelo em sua casa, e a familia Proh retira-se tambem do patamar, depois de ter tido o cuidado de apagar o que restava de giz por cima da porta.


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