XIO vinho quinado

XIO vinho quinado

Um dia de manhã, Casimiro fica agradavelmente surprehendido ao receber a visita do lojista em casa de quem expôz o seu quadrosinho, e que se approxima d’elle dizendo:

—Temos comprador para o seu quadro por quatrocentos e cincoenta francos, quer dal-o?

O joven pintor receia ter ouvido mal, abre muito os olhos para se certificar de que é effectivamente o seu negociante de quadros que está deante d’elle, e exclama:

—Quatrocentos e cincoenta francos, diz o senhor? é pela minha vista de Bougival que lhe offerecem esse dinheiro?

—Sim, se lhe convem, é negocio feito, e pode logo passar por minha casa para receber o dinheiro.

—Se me convem! isso deixa-me encantado, enche-me de alegria, nunca teria ousado pedir tanto.

—Eu tinha pedido quinhentos francos, e estou certo de que, se o senhor quizesse esperar, acabariamos por achar quem os desse.

—Nada, não, não quero esperar, parece-me que fica muito bem pago, demais, visto que se acha valor aos meus quadros, pintarei outros.

—E fará muito bem. Trabalhe, sr. Casimiro, dê-se antes áquelle genero que a outro qualquer. Creio que lhe será isso muito mais rendoso que o retrato. O senhor é colorista, o que é um dom da natureza; conheço pintores de talento que não teem o menor sentimento da côr; teem uma figura para fazer, empregam a primeira coisa que acham no pincel; está perfeitamente desenhada, é espirituosa de attitude, de maneira, de idéas. Reina porém em tudo aquillo um tom pardo-escuro que tira ao quadro toda a graça que deveriater. A esses, não peçam nunca luz, claridade, sol; é-lhes impossivel metterem d’isso nos seus quadros. Trabalhe, que nós o auxiliaremos.

Assim que o lojista se retira, Casimiro põe-se a pular e a dansar no quarto. Não é a idéa de que vae receber quatrocentos e cincoenta francos que o torna tão alegre; graças á generosidade da sua amante, tem tido muitas vezes quantias maiores á sua disposição; mas é o pensamento de que esse dinheiro é o fructo do seu trabalho, que elle soube ganhar por si mesmo, e que quando o receber, poderá mettel-o na algibeira sem córar.

—Nada faltaria agora á sua felicidade, se a sua vizinha do quinto andar consentisse em deixal-o fazer-lhe o retrato; não conseguiu ainda vencer a sua resistencia, e comtudo Rouflard disse-lhe no dia anterior:

—Está-me parecendo que a menina Lisa não tardará a deixar-se retratar, porque o medico que tracta da sua velha doente tem vindo vel-as estes dias; receitou uma nova beberagem, creio que é vinho quinado. Seria preciso que a boa da velha o tomasse todos os dias, e, com a breca! aquelle vinho é caro; as garrafas são muito pequenas despejam-se em dois goles. A pequena levanta-se ainda mais cedo, véla ainda até mais tarde para arranjar o vinho quinado; mas creio que lhe custa a chegar. Não faria ella cem vezes melhor em se deixar tomar por modelo? Ainda hontem lh’o disse. Suba lá o senhor, é agora a occasião, eu conheço as mulheres, tanto quanto a gente as pode conhecer; mas olhe, com ellas, o que é preciso é aproveitar a occasião.

Casimiro tracta logo de pôr em practica o conselho de Rouflard, e sobe de novo a casa da menina Lisa. Todas as vezes que se dirige alli, sente uma viva commoção e o seu coração bate mais apressado. Comtudo, tem dito muitas vezes a si proprio que não devia pensar em fazer a côrte a Lisa; que aquella pequena era honesta, e que da parte d’elle seria muito mal feito procurar seduzil-a, perturbar-lhe o socego e fazer-lhe deixar a verêda da honra, na qual,como diz o poeta: é difficil entrar uma vez que se esteja fóra.

Casimiro disse comsigo tudo isto e muitas outras coisas, o que não impede que, ao olharem para a linda cara d’aquella menina, os seus olhos não tenham uma expressão que não é de modo algum a da indifferença, e que a sua voz se não faça mais suave e mais insinuante.

Pela sua parte, Lisa sente-se inteiramente outra desde que travou conhecimento com o seu vizinho do terceiro andar. Tem-se mostrado para com ella tão delicado, e sobretudo tão respeitoso, que a rapariga pergunta a si mesma por que receia conceder-lhe o favor que elle solicita. Mas pergunta isto muitas vezes de mais; pensa em Casimiro todo o dia, não pode já reprimir-se de o fazer, e, apezar de toda a sua innocencia, uma donzella de dezoito annos adivinha perfeitamente que é muito perigoso estar sempre a pensar n’um rapaz, occupar-se constantemente d’elle; e, ainda que esse rapaz lhe não tenha dito uma unica palavra de amor, ainda que não a veja senão deante de sua avó, a donzella deve conservar-se acautelada contra o sentimento que se lhe introduz na alma, e sobretudo não se expôr a amar alguem que não pensa n’ella senão para lhe tirar o retrato.

É com receio de tomar demasiado gosto em se achar só com o seu joven vizinho, que Lisa recusa sempre deixar-se retratar por elle.

Mas no meio de tudo isto, chegou aquella receita de quina em vinho de Malaga. Os malditos medicos não se importam com as posses dos seus doentes; receitam o que é favoravel ao restabelecimento da saude, e tanto peior para o enfermo se não pode comprar o remedio; elles cumpriram a sua missão.

Lisa havia comprado uma garrafinha do vinho receitado; fizera-o beber á sua velha doente, a quem isso havia dado grandes melhoras. Mas essa garrafinha fôra bebida em sete dias, e ainda se não tinha comprado outra.

Este maldito vinho quinado preoccupava agora Lisa quasi tanto como Casimiro, e, como na vida todas as coisas têm o seu ricochete, ella não podia deixar de dizer de si para para si:

—Se eu me resolvesse a servir de modelo, bem depressa teria vinho quinado.

Rouflard não se enganara pois nas suas conjecturas, e, com effeito, ao vêr entrar Casimiro no seu aposente, Lisa experimenta um vivo sentimento de prazer que ella dissimula o melhor que pode, cumprimentando o seu vizinho com ar amavel e indicando-lhe uma cadeira, porque não pode largar a obra que está a acabar.

—Bons dias, minha vizinha, diz Casimiro; aqui tem um homem extremamente feliz.

—Realmente, estimo muito; o que lhe succedeu então para lhe causar tanta alegria?

O que me acconteceu? Ah! a menina não o comprehende talvez bem, porque é preciso ser artista para conhecer estas alegrias! Imagine um auctor que obtem o seu primeiro triumpho no theatro, o compositor que ouve cantar na rua a musica que fez publicar, emfim o pintor que vende o seu primeiro quadro, eis os homens mais felizes da terra! pois bem! eu sou d’esse numero... acabo de vender o meu primeiro quadro.

—O seu primeiro? como, pois ainda não tinha feito nenhum?

Esta reflexão tão natural de Lisa faz córar Casimiro, que comprehende que a sua joven vizinha deve perguntar lá de si para si em que tem elle empregado o seu tempo, para não ter feito, na sua edade, senão um quadro. O rapaz tracta de sair do embaraço, respondendo:

—Não menina, é verdade; comecei muito tarde a pintar a paizagem, eu preferi o retrato, agradava-me isso mais.

—E agora renuncia o retrato para se dar á paizagem?

—Oh! não! renunciar ao retrato! nunca! uma coisanão impede a outra! Mas eu estava tão contente esta manhã com a venda do meu quadro, que não pude resistir ao desejo de lhe dar parte do meu bom succedimento... e depois, quando se está em maré de felicidade, dizem que sempre nos chegam muitas; então, disse commigo: Vamos vêr a minha linda vizinha; quem sabe se ella hoje quererá tambem consentir em deixar-se retratar, se não abrandarei a sua resistencia!...

—Isso fazia-o então ainda muito feliz, se eu lhe deixasse fazer o meu retrato?

—Ah! seria o auge da minha felicidade? Empregaria todos os meus cuidados, todo o meu talento n’esse trabalho! e estou bem certo de que havia de ser bem succedido, que faria uma cabeça lindissima.

—Mas esse retrato... vendia-o depois?

—Vender o seu retrato! oh! nunca, minha vizinha, nunca! conserval-o-hia toda a minha vida... mas faria uma copia para lh’a offerecer, ou, se a menina o preferisse, dar-lhe-hia o original e ficaria eu só com a copia.

—Mas o que fará o senhor do meu retrato em sua casa! ha de incommodal-o...

—Incommodar-me! pelo contrario, será o mais bello ornato do meuatelier, olharei para elle todos os dias, não me cansarei nunca de o contemplar. Ah! minha vizinha, consinta, por obsequio, diga que consente.

Lisa ainda hesitava, porque os olhos de Casimiro tinham tomado uma expressão que lhe causava uma commoção vivissima; mas n’este momento a enferma, que estava adormecida, accorda, dizendo:

—Lisa, dá-me uma gota d’esse vinho que me faz tanto bem.

—Sim, avósinha, d’aqui a um instante, já o não ha em casa, eu o vou buscar...

Depois, voltando-se para Casimiro, Lisa diz-lhe em voz baixa:

—Pois bem! consinto, começaremos ámanhã.

—Oh! como a menina é cheia de bondade! e quãofeliz eu sou! Corro então á pharmacia a comprar-lhe o vinho quinado.

—Não, isso não, irei eu mesma.

—A menina não pode deixar a sua doente, permitta-me fazer-lhe este pequeno serviço, eu sei que é vinho de Malaga.

—Oh! sr. Casimiro... por quem é...

—Deixe-me por minha vez ser-lhe agradavel, a menina consente em me servir de modelo... estou tão contente! Corro a buscar o vinho, volto com elle n’um momento.

E sem attender mais á rapariga, Casimiro sae apressadamente; desce a escada a quatro e quatro, por pouco que não deita ao chão o menino Proh que procurava pôr-se a cavallo na balaustrada do patamar, passa como uma frecha por deante do porteiro, corre á botica mais proxima, pede vinho de Malaga quinado, compra tres garrafas, mette uma em cada um dos bolsos lateraes, esconde a terceira debaixo de paletot e volta a casa de Lisa com a mesma pressa com que de lá saíu.

—Valha-me Deus!... então o senhor traz tres garrafas! exclama a rapariga vendo Casimiro tiral-as dos bolsos.

—Sim, minha vizinha, terá assim para muito tempo sem se incommodar.

—Mas não era preciso, isto custa tres francos e dez soldos cada garrafa...

—Com duas sessões ficam as nossas contas saldadas.

—Ah! senhor, não é possivel!

—Perdão, minha vizinha, juro-lhe que a um modelo como a menina não se paga menos, e que lhe ficarei ainda muito obrigado. Mas tenha a bondade de me dizer a que hora quer que eu venha para a sessão.

—É sempre de manhã cedo que minha avó descança melhor e não tem precisão de mim; se o não contrariasse vir ás oito horas... mas é talvez cedo de mais para o senhor?

—Não! pelo contrario, essa hora convem-me muito, trabalharemos das oito ás dez, se me fizer esse obsequio,porque eu não a quero fatigar, e, duas horas, isso é talvez já demasiado para a menina...

—Oh! não, senhor! demais, o senhor disse-me que eu poderia coser ao mesmo tempo...

—Sim, sim, fará tudo quanto quizer; em eu podendo olhar para a menina, é quanto basta.

—Eu pensava que o modelo era tambem obrigado a olhar para o pintor!

—Algumas vezes, de certo, é isso melhor; mas nós temos tempo, e quando fôr absolutamente necessario, então a menina terá a bondade de levantar por um momento os olhos de cima do seu trabalho. Assim, está ajustado, ámanhã ás oito horas cá me tem a minha vizinha com toda a minha bagagem...

—Estarei prompta.

Casimiro retira-se, e Lisa approxima-se da velha doente, dizendo-lhe:

—Avósinha, aqui está o vinho quinado!


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