XVIIO que era
Casimiro pára deante de Ambrosina, dizendo-lhe.
—E a senhora tambem acredita que aquella menina lhe tenha tirado essa colhér de prata que lhe falta?
Ambrosina tracta de dominar a impressão que lhe causa a vista de Casimiro, com quem ella se não tinha encontrado desde a altercação que dera em resultado o rompimento das suas relações, e responde-lhe com um tom levemente ironico:
—Na verdade, sinto muito o que acontece, sobretudo por sua causa; lamento que seja a sua protegida aquella a quem o senhor sacrificou uma antiga amizade, que se tenha tornado culpada d’uma acção tão reprehensivel, mas é forçoso reconhecer o que é, o que não se pode negar...
—Mas, minha senhora, essa menina tem sido sempre um modelo de honestidade, de bom comportamento. A senhora sabe como ella trabalha para que a sua velha paralytica não sinta falta de coisa alguma...
—Tudo o que quizer, senhor, mas então ache-me a colhér...
—Podia ter entrado alguem em sua casa emquanto Lisa dormia, porque ella dormiu.
—Quem queria o senhor que entrasse... ladrões? mas o porteiro havia de saber se entraram alguns no predio, e o senhor não suppõe, presumo eu, que seja alguem da minha casa que tenha entrado no quarto onde a menina Lisa estava velando a Adelinasinha... Ella dormiu, diz o senhor, dil-o ella, mal quem o prova?
—Ora! demais, exclama a sr.ª Proh, que desceu do terceiro andar para se metter na conversação; não se dirá que em minha casa poude alguem entrar até junto da enfermeira; depois, ha em tudo isto alguma coisa que deve fazer condemnar Lisa, é o amor, a paixão da avó pelas colhéres de prata, a sua menina comprou-lhe uma ultimamente, que ella se apressou a mostrar-me. E’ provavel que a velha tenha querido ter outras...
—A senhora está a calumniar pessoas honradas, não o consentirei!...
—Eu não calumnio, digo o que é e custa pouco a dizer: Ella está innocente! está innocente! então onde estão as nossas colhéres?
Uma senhora que mora por cima de Ambrosina, que tem cincoenta annos, o ar muito distincto, o aspecto frio, severo mesmo, e não fala a ninguem no predio, mas que, attrahida pelo barulho que se faz na escada, ouviu tudo o que se acaba de dizer no patamar do primeiro andar, desce tambem ahi por sua vez, e diz a Casimiro:
—O senhor não crê a menina Lisa culpada, nem eu tão pouco; mas ha em tudo isto um mysterio que é preciso descobrir, estou persuadida de que o hei de conseguir eu...
—Ah! minha senhora! restituirá a vida a essa pobre Lisa, porque ella morrerá de desgosto se a sua innocencia não fôr por todos reconhecida... fale, o que tenciona fazer?...
—Senhor, para isso é preciso que essa menina consinta em vir passar esta noite em minha casa, dir-lhe-hei que minha irmã, que vive commigo, está doente, e que é preciso que alguem a fique velando...
—Ah! minha senhora, Lisa não quererá; depois do que lhe aconteceu duas vezes, como quer a senhora que ella consinta ainda em velar alguem?
—Consentirá se o senhor se encarregar de lhe pedir, se lhe disser que é para ficar certa da sua innocencia que lhe pede este ultimo sacrificio d’uma noite...
—Oh! minha senhora, se assim é, eu a decidirei a ficar velando esta noite em sua casa.
—Pois bem! então, mande-a vir á meia noite. Pedirei a estas senhoras que estejam em minha casa um pouco antes.
—Para quê? pergunta a sr.ª Proh.
—Para serem testemunhas do que lá se ha de passar, e, como espero, reconhecerem a innocencia de Lisa.
—Oh! a mim é-me impossivel estar de véla, isso constipa-me...
—Eu não faltarei, diz Ambrosina, antes da meia noite terei a honra de a ir visitar.
—Muito bem, com o sr. Casimiro e commigo, será o sufficiente. O senhor terá a extrema bondade de vir durante o dia dizer-me se Lisa consente em vir ficar de véla em minha casa?...
—Vou immediatamente lá acima, minha senhora, e em breve terá a sua resposta.
—Muito bem. Minhas senhoras, tenho a honra de as cumprimentar.
A sr.ª Durmont, é este o nome da inquilina do segundo andar, sobe para sua casa, deixando cada vizinha a fazer os seus commentarios.
—Eu não creio nada que esta senhora descubra o mysterio, diz a sr.ª Proh.
—Ficará tambem sem uma colhér, murmura Adriana.
A sr.ª Montémolly manda calar a creada, e entra com ella para casa.
—Ahi está uma senhora respeitavel, exclama Rouflard olhando para o segundo andar; aquella não é de continhos, diz lá comsigo: A pequena não tirou as colhéres, mas ha n’isso um mysterio, logo é preciso descobril-o...
—E como se haverá ella para isso? diz o porteiro.
—Isso está acima da sua capacidade...
—E da sua tambem...
—Vossê esquece-se da sua posição, meu ex-frontinio!...
—Qualfrontinio!... eu sou guarda-portão...
—Então, varra melhor o pateo.
Casimiro não perde um instante; sobe a casa de Lisa, que elle acha sempre na mesma tristeza, e diz-lhe:
—Tenho boas noticias a annunciar-lhe. A sr.ª Durmont, esta senhora que mora no segundo andar, interessa-se pela menina e não duvida da sua innocencia...
—Ah! agradeço-lhe muito; com effeito, essa senhora sempre olhou para mim com bondade...
—Mas não é só isso; ella quer que a verdade seja conhecida de todos, que se descubra o que é feito das duas colhéres que desappareceram.
—Ah! como serei feliz se ella consegue fazer isso; é a vida, porque é a honra que essa senhora me restituirá. E o que fará ella para isso?
—Oh! vae parecer-lhe singular; mas é preciso que esta noite a menina consinta ainda em ir velar em casa d’ella, ao pé de sua irmã, que está doente.
—Velar, passar a noite longe de minha avó? oh! não, não, bem sabe que é uma coisa que sempre me traz desgraça.
—Mas d’esta vez é pelo contrario para a justificar que se lhe pede isso. O que pode recear? aquella senhora interessa-se pela menina, ceda pois, peço-lhe eu, consinta mais esta vez; tenho confiança na sr.ª Durmont, ella descobrirá de certo o mysterio que reina n’essas duas noites inexplicaveis...
—E’ essa a sua vontade? pois bem! farei o que o senhor quer; mas em casa d’essa senhora terei o cuidado de não adormecer.
—Sim, é isso; d’esse modo verá o que se passar. A’ meia noite virei buscal-a, e eu mesmo a levarei a casa d’essa senhora.
—Terá essa bondade?
—Ah! Lisa, tracta-se da sua felicidade, da sua reputação; pois a menina acredita que alguem tome n’isso mais interesse do que eu? Então, está ajustado; á meia noite estará prompta?
—Oh! sim, a essa hora já minha avó está a dormir.
—Eu virei buscal-a.
E, deixando Lisa, Casimiro dirige-se immediatamente a casa da vizinha do segundo andar, e diz-lhe:
—Lisa consentiu; á meia noite eu lh’a trarei.
—Muito bem.
—Prometteu não se deixar dormir, e eu incitei-a tambem a isso, para que ella veja se alguem vem ter com ella durante a noite.
—Oh! o senhor fez muito mal, pelo contrario, é preciso que Lisa durma, é indispensavel; é com isso que eu conto...
—Não a comprehendo, minha senhora.
—Ha de comprehender-me esta noite; demais, vou preparar uma bebida ligeiramente soporifica, e pedir-lhe-hei que a faça beber o senhor mesmo a essa menina, dizendo-lhe que é para se conservar bem esperta.
—Mas, minha senhora...
—Senhor, se Lisa não dormir, não saberemos nada, e esta experiencia será completamente inutil.
—Oh! n’esse caso obedecerei, porque tenho confiança na senhora.
—Folgo de crer que se não arrependerá. Venha, senhor, acompanhe-me, vou leval-o ao quarto onde Lisa ha de ficar velando esta noite; é onde dorme minha mana, que goza de perfeita saude, mas que fingirá estar doente, e pela noite adeante pedirá de beber duas ou tres vezes quando a sua enfermeira não estiver a dormir.
A sr.ª Durmont faz entrar o rapaz n’um bello quarto de dormir, que tem duas portas: uma, que é de vidraça, dá para outro quarto; ahi estão os vidros apenas cobertos por uma ligeira cortina de cassa. A senhora leva Casimiro a este quarto, e diz-lhe:
—Não acha, senhor, que detraz d’esta vidraça se pode ver tudo quanto se faz no quarto onde Lisa ha de ficar?
—Sim, minha senhora, effectivamente, não ha nada mais facil; como a cortina está d’este lado, pode-se facilmente affastar.
—Tanto mais que, pela maneira porque ha de estar allumiado o quarto de minha mana, esta porta de vidraça ficará completamente na obscuridade. Pois bem, senhor, é aqui, de traz d’esta vidraça e sem que a pequena o saiba, que nós passaremos a noite, o senhor, a vizinha do primeiro andar e eu; parece-lhe que poderemos assim vêr tudo o que Lisa fizer?
—Certamente, minha senhora; mas, não comprehendo...
—Espere, espere, e estou certa de que ha de comprehender esta noite. O senhor terá a bondade de me trazer a menina Lisa, e fingirá que vae para sua casa, mas voltará aqui por est’outro lado; não se esquecerá do caminho?
—Fique descançada, minha senhora, não me esquecerei de coisa alguma...
—Até á noite, senhor.
Casimiro deixa esta senhora, procurando em vão adivinhar o que ella espera. Emcontra Rouflard e communica-lhe as suas inquietações. O ex-janota abana a cabeça, dizendo:
—Eu tambem não adivinho nada em tudo isso; mas em todo o caso, affianço-lhe que passarei a noite na escada deante da porta d’essa senhora, e que se algum larapio de colhéres tentar introduzir-se na casa, começarei pelo desancar.
Assim que dá meia noite, Casimiro dirige-se a casa da sua vizinha. Acha-a muito triste, a tremer, mas prompta a seguil-o, porque sua avó está a dormir. A rapariga apressa-se a pegar no seu trabalho, e, sem dizer palavra, vae acceitar o braço que lhe offerece Casimiro. Descem assim alguns degraus.
—A menina está a tremer, diz-lhe o seu braceiro, tem frio?
—Não, pelo contrario, tenho muito calor; mas estou a tremer, porque adivinho ainda uma desgraça...
—Mas, ao contrario, são os seus desgostos que vãoacabar, socegue, esta senhora quer que a sua innocencia brilhe aos olhos de toda a gente.
—E como se haverá para isso?...
—E’ segredo d’ella... tenha confiança.
Chegam ao segundo andar. A sr.ª Durmont vem pessoalmente ao seu encontro, e leva-os para o quarto onde a irmã está deitada ha muito tempo.
—E’ aqui que a menina ficará velando, diz ella á sua joven vizinha; tome uma chavena de chá, que lhe ha de fazer bem e conserval-a acordada.
—Agradecida, minha senhora, não preciso de nada.
—Lisa, diz Casimiro, tome o que esta senhora lhe offerece, peço-lhe eu, isso ha-de socegal-a.
—Se o senhor o deseja...
E a rapariga bebe o conteúdo da chavena que lhe apresentam.
—Agora, boa noite, diz Casimiro, vou para minha casa... até ámanhã...
—Sim, até ámanhã.
O joven pintor retira-se. A sr.ª Durmont diz então a Lisa:
—Minha menina, aqui tem tudo quanto lhe é preciso; tisana para quando minha irmã pedir de beber... uma colhér d’este xarope quando ella tossir.
—Uma colhér, ah! sim... ahi temos outra; mas podia-se passar sem ella, minha senhora.
—Não... pelo contrario, é indispensavel; precisa mais alguma coisa?
—Oh! não, minha senhora, de nada absolutamente.
—N’esse caso, vou deixal-a; minha irmã parece menos afflicta esta noite, creio que lhe dará pouco que fazer, aqui tem uma grande poltrona onde estará á sua vontade para repousar. Porque, se minha irmã dormir, tambem a menina pode descançar um pouco.
—Oh! não, minha senhora, não quero... velarei sempre...
—Boa noite, menina, até ámanhã.
Assim que a sr.ª Durmont se retira, Lisa senta-se n’uma cadeira e pega no seu trabalho, dizendo comsigo:
—Oh! não, não me deixarei dormir, para que durante o meu somno venham ainda tirar a colhér... Ah! se eu tivesse velado sempre, não teria acontecido isso; mas esta lampada allumia perfeitamente, posso bordar.
Casimiro entretanto dirigiu-se ao quarto que lhe foi indicado e que está apenas allumiado por uma lamparina. Encontra alli Ambrosina, que está sentada junto da porta de vidraça; toca um frio cumprimento com ella, dizendo-lhe:
—Agradeço-lhe, minha senhora, o não ter faltado aqui, para ter a prova da innocencia de Lisa...
—Desejo-o muito, porque eu não sou tão má como o senhor pensa; mas confesso-lhe que duvido que se consiga proval-a.
Põe termo a este colloquio a chegada da sr.ª Durmont, que colloco a lamparina muito longe da porta de vidraça, dizendo:
—D’esta maneira, é impossivel que do quarto da minha mana se veja que ha luz aqui, emquanto que nós, atravez d’esta ligeira cortina de cassa, podemos ver tudo o que alli se passa. Olhe, minha senhora, tenha a bondade de vêr...
—Ambrosina põe a cara á vidraça e murmura:
—Effectivamente, vejo muito bem, porque o quarto està muito illuminado... a rapariga trabalha...
—Sim, e agora é preciso termos paciencia, devemos esperar que ella adormeça.
—Mas se não adormecer?
—Oh! estou certa do contrario, graças a um ligeiro narcotico que misturei na chavena de chá que lhe fiz tomar, e creio que era isso necessario, porque ella estava muito decidida a não dormir. Mas aquella beberagem não fará talvez o seu effeito senão dentro de duas ou tres horas... d’aqui até lá, se a senhora quer encostar-se n’esta poltrona...
—Não, minha senhora, muito agradecida, não tenho vontade de dormir, porque estou com muita curiosidade de saber o que sairá de tudo isto.
Esta conversação era toda em voz baixa, o que augmentavao mysterio que esta noite devia descobrir. As tres pessoas alli reunidas teem-se sentado e guardam silencio, pondo os ouvidos á escuta do que se passa no quarto onde está Lisa. A irmã da sr.ª Durmont, que sabe bem o seu recado, pede de beber; a rapariga apressa-se a dar-lhe a tisana, e em seguida offerece-lhe uma colhér de xarope, que é logo acceita. Lisa torna a pôr a colhér em cima do meza, e senta-se ao lado. A supposta enferma adormece devéras, e a rapariga põe-se de novo ao seu trabalho.
Assim se passa uma hora, e depois outra. A anciedade de Casimiro augmenta; Ambrosina não diz palavra, mas não fecha os olhos. A sr.ª Durmont olha constantemente pela vidraça, murmurando:
—Mas a pequena não adormece... conseguiria ella vencer o narcotico!...
—Passam ainda alguns minutos, que parecem seculos; a final a sr.ª Durmont exclama:
—Ah! debalde pretende resistir, cae-lhe o trabalho das mãos, vae adormecer...
—Sim, sim, adormece, diz Casimiro; veja, lá inclinou a cabeça para traz. Oh! ella ahi está bem adormecida...
—E agora, diz Ambrosina olhando tambem pela vidraça, o que é que se vae passar?...
—Espere, minha senhora, espere que o somno seja bem profundo, agora podemos levantar de todo esta cortina sem receio de sermos vistos.
E’ levantada a cortina. As tres pessoas que espreitam estão com os olhos pregados em Lisa; esta, no fim de algum tempo, agita-se; o seu somno parece desassocegado e molesto.
—Coitada! parece-me bem afflicta, diz Casimiro, deve estar com algum sonho máu...
—Ah! ahi acorda ella... porque lá se levanta e abre os olhos, diz Ambrosina.
—Silencio, minha senhora, silencio, diz a sr.ª Durmont; ella continúa dormindo, não vê que é somnambula?
—Somnambula!
—Pois! escute... está falando...
Lisa, que continua a dormir, não obstante estar com os olhos muito abertos, levanta-se da cadeira, dizendo:
—Sim, avósinha, sim, vou fechar a sua colhér de prata... que a avósinha estima tanto, e que tem tanto medo que nos furtem. Oh! mas eu a esconderei bem, não tenha cuidado, sempre no mesmo sitio, a avósinha bem sabe, debaixo do meu colchão de crina...
E Lisa vae immediatamente buscar a colhér que está em cima da mesa, e, indo pôr-se de joelhos deante da cama, mette-a entre o leito e o colchão; depois ergue-se, dizendo:
—Oh! está bem escondida, ninguem dará com ella... não tenha medo agora, avósinha...
Lisa volta para o seu logar, torna a sentar-se e fecha os olhos. A’s tres pessoas que espreitam pela vidraça, não lhes escapou nada do que se passou. Casimiro está transportado de alegria.
—Justificada! exclama elle, está justificada, porque as outras colhéres devem estar escondidas no mesmo sitio, não é verdade, minha senhora?
—Certamente! responde a sr.ª Durmont, esta rapariga é somnambula, eis o que eu havia adivinhado; eis o que eu tinha a peito fazer-lhes ver: agora, venham, podemos entrar no quarto, que ella não acordará...
—Somnambula! diz Ambrosina, que custa a cair em si do seu espanto. Ah! estou com muita curiosidade de a examinar de perto.
Aberta a porta de vidraça, entram todos tres no quarto de dormir. Lisa está na poltrona, com a cabeça inclinada para traz, e, na agitação do seu somno, afastou completamente o lencinho que lhe cobria o pescoço; pode-se então ver uma pequena medalha presa a uma fita preta, que ella traz sempre escondida debaixo do vestido.
A sr.ª Montémolly, que duvida ainda do somno de Lisa, approxima-se d’ella e examina-a com muita attenção.
—Venha, minha senhora, diz-lhe Casimiro, venha, vamos a sua casa, a colhér deve estar egualmente escondida debaixo do leito da sua doentinha; é preciso que a senhora tenha pessoalmente a prova da innocencia de Lisa...
Mas Ambrosina parece estar attonita; acaba de ver a medalha que a rapariga traz ao pescoço; essa medalha, que tem uma fórma particular, é esmaltada toda em roda e artisticamente lavrada. Ambrosina não pode tirar d’ella os olhos, e responde apenas a Casimiro:
—Vá, senhor, vá com essa senhora... não precisam de mim; a minha creada está velando, com luz... demais, aqui teem a minha chave...
—Mas porque não vem a senhora comnosco?
—Porque não, alguma coisa muito mais importante me faz ficar ao pé de Lisa; logo saberão o que é... andem, vão...
Casimiro não insiste, porque demais está com pressa de ir procurar a outra colhér; a sr.ª Durmont não tem menos pressa, porque sente certo orgulho em ter conseguido descobrir o mysterio que envolvia as acções de Lisa. Na escada encontram Rouflard, o qual se puzera alli de sentinella.
—Justificada! diz-lhe logo Casimiro, Lisa é somnambula, e a dormir, pensando sempre na colhér da avó, esconde debaixo do colchão de crina quantas colhéres encontra á mão. Vamos procurar a que ella deve ter escondido assim em casa da sr.ª Montémolly.
—Ah! por favor, permittam-me que vá tambem, exclama Rouflard, gostarei muito de ver a cara que vae fazer a besbilhoteira da creada!...
—Venha, Rouflard, venha...
Entram em casa de Ambrosina, e acham a menina Adriana a dormir na sala em vez de estar velando á cabeceira da doentinha; mas Casimiro desperta-a dizendo-lhe:
—Venha comnosco, menina, conduza-nos ao quarto onde Lisa passou hontem a noite; vamos lá achar esse objecto perdido...
—A colhér? ah! isso agora é forte de mais; se eu procurei por toda a parte inutilmente!...
Mas não fazem caso do que diz a creada, e dirigem-se todos ao bonito quarto onde dorme a pequenita. Ahi, Casimiro corre á cama, busca debaixo do colchão de crina e não tarda a soltar um grito de jubilo, tirando para fóra a colhér e mostrando-a a toda a gente.
Então Rouflard pula de alegria, e diz a Adriana:
—Responda a isto, má lingua! parece que não tinha buscado por toda a parte!
—Oh! valha-me Deus! quem é que podia suspeitar que se fosse pôr uma colhér de prata n’este sitio; com que fim?
—Quando uma pessoa é somnambula faz coisas muito mais admiraveis!
—Somnambula?...
—Sim, eis todo o mysterio! Ah! subo a casa dos Proh, para lhes dizer onde teem a colhér...
—Mas elles estão a dormir, Rouflard!
—Razão de mais, meu artista; isso ha de fazer-lhes mais effeito! quero que a justificação do meu anjo bom faça tanta bulha como as calumnias que lhe accusavam.