XVI.Traslado fiel de uma carta de Leonardo Pires a Jorge Coelho:«São 6 horas da manhã. Venho do baile do visconde dos Lagares. Tenho o coração a trasbordar de amargura! Deixal-o trasbordar, que é uma gotta de absintho n'um oceano de champagne. Um bago de uva matou Anacreonte. Eu sinto-me triplicar de existencia na uva.Evohé!Como a vida é linda! que vergeis de flôres recendem á tona d'este lamaçal! Vem cá, Fortuna! Schakspeare chamou-te prostituta. Linda, vem cá, que eu bem te vi no baile, como o poeta inglez te via nos paços e nas tavernas! Senta-te aqui nos meus joelhos, impudica! Solta d'essa larynge recozida de alcool um dithyrambo! Ri-te commigo, e não me venhas dizer que és filha da Providencia, infame blasphema!...Cançou-me o folego, Jorge! O meu vinho nunca foi para grandes apostrophes. O descriptivo é o meu forte.Fui ao baile. Pude lograr a causa da moral publica. Deves presumir que estou desacreditado no Porto, e em vesperas de um duello. Sou o varão justo a braços com a adversidade:vir fortis cum mala fortuna compositus—a maravilha que punha Seneca em extasis! O champagne do visconde é litterario como as aguas da Aganippe. Que abundancia de pegasos eu vi beber na sala da ceia, e apparecerem Homeros na sala do baile!Pedi a quatro conhecidos que me arranjassem convite. Era impossivel. O visconde respondia que eu era umbolas, que descompozera no largo da Batalha uma menina, noiva de um seu amigo. Eis que encontro o João da Thereza da Cancella! Este João é meu caseiro ha cincoenta annos. Vê-me, corre a abraçar-me, e exclama: «Fidalgo, o meu Francisco chegou!»—«Quem é o teu Francisco, amigo João?»—«O meu Francisco—tornou elle—que estava no Maranhão! pois não sabe?»—«Não sabia... Vem rico?»—«Rico como um burro!»—«Está bom; estimo; é barão de...?»—«Não, senhor; barão ainda não é; mas está aquartelado em casa do snr. visconde dos Lagares.»—«Sim?!»—«É como digo, fidalgo, e, pelos modos casa-lhe com a filha; é arranjo tratado já lá do Brazil.»—«Fazes-me um favor, João?»—«É pedir por bocca.»—«Teu filho será capaz de me arranjar que eu seja convidado para um baile que vai dar o visconde amanhã?»—«Que remedio tem elle, senão arranjar?! Quem foi que lhe pagou a passagem para o Rio senão o paisinho do fidalgo?!»—«Vai depressa, e volta aqui com a resposta.»Meia hora depois, voltou João da Thereza da Cancella, com a carta, e disse-me: «Olhe que o homem não queria dar o officio; foi preciso eu dizer que dava duas libras por elle, sendo preciso; o meu Francisco chamou-mebruto, e depois lá se mexeram como poderam, e aqui tem.»Dei um abraço democrata no meu caseiro; procurei os meus quatro conhecidos, mostrei-lhes o cartão, e fiz o elogio do seu valimento d'elles.Apenas entrei no baile, fui comprimentar a viscondessa, que fallava com Silvina. Esta, quando me viu, resfolegava como se eu fosse uma grande botija destapada de vinagre de sete ladrões. Retirei-me a rir, e, na reviravolta impetuosa, bati n'uma grande esponja: era José Francisco Andraens.—Perdão!—disse-lhe eu. José Francisco grunhiu, e enviezou-me um olhar sanhudo—Perdão!—tornei eu. O cerdo poz as mãos na linha hemispherica do seu globo, constituiu-se vaso etrusco, e regougou: «O senhor anda a embarrar pela gente?!»—Foi umaembarraçãoinopinada, snr. Andraens!—repliquei eu—Se lhe offendi os tecidos, desculpe-me.—«Estes meliantes...» disse o brazileiro, e foi-se embora.Adiante encontrei os morgados de Santa Eufemia, e de Matto-grosso.—Que ha de novo?—perguntei eu.—O casamento de Silvina com o brasileiro está definitivamente tratado—disse-me Egas de Encerra-bodes.—Com o brazileiro?—Com o brazileiro. Veiu ahi o pai d'ella; expoz á filha as vantagens do casamento, e ella poz os olhos no céo, e disse:—cumpra-se a vontade do Senhor,... e a de meu pai!—E cá o amigo Christováo Pacheco que diz a isso?—perguntei eu, voltando-me para o de Santa Eufemia, em quanto Egas ria estrondosamente.—Eu digo—respondeu elle—que já cá botei as minhas contas, e que hei-de tourear o tal José Francisco!... Estou civilisado;—cá o primo tosqueou-me o pello.—Vi-te n'aquelle momento, meu caro Jorge. Vi a tua candida alma, n'esse ermo, a penar, em quanto a vil, que te mentira o apunhalara, se andava alli glorificando de que a indigitassem como futura quinhoeira dos duzentos contos do negreiro. Fervia-me o sangue em borbotões de raiva. Jurei tirar alli uma vingança em teu nome, a vêr se me assim despenava da culpa de te apresentar, de te immolar aos rasos instinctos d'aquella mulher. Busquei ensejo de fallar-lhe; mas ella evadia-se, não largando nunca o braço de um ou outro homem. O millionario, filho do João da Thereza, levou-me á casa da ceia, e serviu-me tres copos de um vinho que tinha um nome barbaro. Abrazou-me as arterias; mas a minha raiva medrava nas chammas como a salamandra. Tornei ás salas, encontrei Francisca da Cunha pelo braço do linheiro das Hortas; parei diante d'elles, e disse, com a solemnidade do estilo:—Boccacio e Fiammentta! Bettina e Goethe! Fornarina e Rafael de Urbino!O linheiro, voltou-se para Francisca e murmurou:—Não conheço este sujeito.Eu continuei: Beatriz e Bernardim!—O senhor está enganado comnosco—disse o linheiro na sua boa fé de linheiro. Francisca, tirou-lhe pelo braço com força, e afastaram-se. Não sei o que lhe ella segredou. O homem, pouco depois sahiu-me de cara, e disse-me:—V. s.ª parece que, ha bocado, me quiz insultar.—Eu não o quiz insultar ha bocado, senhor... como é a sua graça?—Eu chamo-me Antonio José Guimarães.—Pois senhor Antonio José Guimarães, como passou?O linheiro açafroou-se, mediu-me tres vezes perpendicularmente, e disse:—O senhor ha-de dar-me uma satisfação.—N'esse caso, satisfaça-se, e, quando estiver satisfeito, avise-me, snr. Antonio.—Na rua nos encontraremos.—Pois sim, repliquei eu, na rua nos encontraremos. O snr. Antonio quer duello a todo o trance e sem misericordia? Eu não me bato com armas brancas nem pretas. O snr. Antonio, como tem a materia prima de casa, leve uma corda, que o hei-de enforcar.O linheiro ficou chumbado ao tapete, e suava como uma abobora porqueira em manhã de orvalho.Tocou á ceia. Entrei na sala. O champagne estalava. Os crystaes retiniam. Os talheres tilintavam. Eu tinha no craneo a musica das espheras. José Francisco Andraens ia atamancando um empadão de pombos, cujos arcabouços lhe pendiam das belfas em fragmentos. Silvina defrontava com elle, e comia a duodecima Sandwich. Estavam tres perús, ou seis, ou não sei quantos perús intactos na mesa. Fui collocar-me atraz de José Francisco Andraens, e chamei um servo agaloado de prata. O snr. commendador Andraens—disse-lhe eu a meia voz—quer que vossê leve um d'estes perús de mando d'elle áquella senhora que tem uma grinalda de flôres brancas. Disse e fui collocar-me a pouca distancia de Silvina.Chegou o criado com a travessa, e disse:—Minha senhora, o snr. commendador Andraens manda isto a v. exc.ª—Isto a mim!—tartamudeou ella entre admirada e vexada.—Sim, minha senhora, a v. exc.ª—teimou o criado.Silvina pregou os olhos abrasoados em José Francisco, que lhe abria um sorriso apaixonado por entre o costado d'um pombo. Ao sorriso respondeu ella com um tregeito de colera. Cheguei ao ouvido de Silvina, e segredei-lhe:«Minha senhora, José Francisco envia-lhe um suspiro d'alma; e como a alma de José Francisco é uma ucharia, os suspiros de José Francisco são perús.»Quando Silvina volvia os olhos fuzilantes, tinha eu desapparecido. Fui ao ouvido de José Francisco, e disse-lhe á puridade:—A sua noiva está indignada de o vêr comer assim! Sacrifique a Cupido o oitavo pombo, amigo José.O que decorreu depois d'isto, não sei dizer-te meu caro Jorge. A minha cabeça não podia já com encargo da chronica até final: sahi. O ar fresco da madrugada, que aspirei até ás cinco horas, restituiu-me á bestial vida commum. Não posso mais.—Resta-me dizer-te que, se choraste uma lagrima por Silvina, envergonha-te de chorar segunda.Adeus. TeuL. PIRES.»XVII.Verificaram-se os presagios do padre João. Jorge, depois da ultima carta d'aquelle singular e diabolico Pires, quiz reanimar-se, e já não pôde. Debil de compleição, quebrantado de insomnias, sorvido incessantemente na funesta scisma de que não havia ahi na terra voz humana que o chamasse ao amor da vida, nem no céo misericordia que o remisse da immerecida pena, Jorge, sem um queixume, sem uma lagrima, sem dar de si incentivo á piedade dos seus, desculpou-se com um ligeiro incommodo, e ficou um dia no leito. A pobre mãi alvoroçou-se, e com ella toda a familia, que via chorar. Veiu logo a sciencia que trata magistralmente dos achaques do estomago, e d'outras visceras nobres, e declarou que a molestia do doente era cousa moral, paixão, hypocondria,ou romance. O facultativo capitulou assim a enfermidade com um sorriso supicaz, e disse á viuva que não era nada aquillo, e ao padre, piscando o olho, acrescentou que era aquella uma das feridas que se curam com o pello do mesmo cão. Chiste de cirurgião de aldêa.D. Antonia recobrou-se do seu desmaio; mas o egresso entrou em maiores cuidados.—Para o Porto, e sem demora, o rapaz—disse o padre á cunhada.—Mas o cirurgião não receia, nem Jorge se queixa...—acudiu D. Antonia, temerosa da separação.—Deixe fallar o cirurgião, senhora. Seu filho morre sem se queixar.—Não me diga isso!...—exclamou a mãi consternada.—Pois as suas palavras tão persuasivas, mano, e a religião não hão-de poder nada?—A religião póde muito: se elle fizer uma confissão contricta, e morrer com sincera dôr dos seus peccados, a religião encaminha-o para Deus; mas o que nós queremos é que elle viva. Que me responde a isto, mana Antonia?—Eu antes o queria com Deus, que perdido no mundo—disse ella suffocada pelos gemidos.—Respondeu acertadamente; mas a supposição de que Jorge se perde no mundo, acho-a exagerada. Deixe-o ir onde elle se envergonhe de padecer, que eu lh'o dou por salvo. Torno a repetir-lhe, mana, que eu fui homem antes de ser frade, e a senhora foi sempre o que é—uma alma cheia de innocencia, de bondade, e de ignorancia.—Pois bem, meu amigo, faça o que entender, mas salvem-me o meu filho.—Aceito o encargo com uma condição: a mana não chora mais uma só lagrima na presença de seu filho; finge acreditar que elle precisa de banhos do mar; exige que vá já para o Porto, e de lá para Coimbra, sefôr vontade d'elle ir a Coimbra este anno. Conforma-se com isto?—Com tudo que de mim quizerem—murmurou ella enxugando as lagrimas.—Agora cuide da bagagem de Jorge, que eu vou fallar-lhe.Jorge Coelho estava sentado na cama, lendo aNova Heloisade J. J. Rousseau. O egresso foi de mansinho ao pé do leito, tirou pausadamente os oculos d'um enorme estojo escarlate, montou-os na ponta do nariz, abriu e arredondou os beiços, pendido o queixo, e examinando o livro, disse:—Era um grande homem esse Saint-Preux, ó Jorge!...—Pois o tio conhece Saint-Preux?!—Relacionei-me com esse cavalheiro e com outros da sua estofa ha bons quarenta annos. Nunca t'o apresentei, quando praticavamos litteratura, por que sempre entendi que o ias encontrar a Coimbra, de parçaria com os muitos filhos que elle gerou para amparo de muitas Heloisas novissimas, de que está inçado o mundo, graças ás novellas, e ao descredito a que baixou a roca e o fuso. Que carta lés?O egresso levantou o nariz com os oculos á linha horisontal dos olhos, e leu algumas linhas da pagina.—Ah!—continuou elle—trata do suicidio... Está mui atiladamente debatida a questão por uma e outra parte. O Rousseau era mestre em paradoxos; e sabia bastante de musica; mas os paradoxos dava-os de mimo á humanidade, e para elle guardava a vida com todas as suas paixões villãs, mal resguardadas por uma côdea de soberba e orgulho. Ensinava o mundo a educar os filhos, e mandava os d'elle para a roda. Atassalhava a impudicicia do seu confrade Voltaire, e escrevia as suasConfissões, com esqualido recheio de desvergonhamentos, para prova de que até o impudor tem a suasoberba. E depois, meu sobrinho, o philosopho, a luminaria do seculo, vendo que a ulcera, aberta no coração da sociedade pelas más doutrinas, ia lavrando, defendeu de concerto com os seus tresvalios, uma these apologetica da ignorancia... Vou-me alongando, e já receio de ter dito de mais. Isto são reminiscencias das minhas leituras de ha quarenta annos. Quando orçares pelos sessenta, Jorge, has-de abrir a tuaNova Heloisan'essa pagina, e has-de rir da impressão, que te magoava, quando a lêste, aos vinte annos.—Não me sinto magoado por impressão alguma, meu tio—disse Jorge, sorrindo, e depondo o livro.—Não mintas, meu sobrinho—tornou o padre com branda severidade—Faz quanto em ti couber por salvar dos teus temporaes desfeitos do coração, o melhor thesouro d'elle, averdade, filho. Sofres, e soffres muito, Jorge. Pensas em morrer, e dás de bom grado a tua vida a Deus, se é que a Divina Providencia transluz nas tuas imaginações negras. Não te culpo, rapaz de vinte annos. O mesmo seria culpar-te e reprehender o naufragado que não soube salvar-se. Nem de fraco te accuso. Se eu quizer que uma tenra vergontea, dobrada pelas minhas mãos, se levante commigo, não hei-de molestar-me se me chamarem insensato. No mais verde dos annos, não responde o mancebo de suas fraquezas: a sociedade que responda por elle, e o temperamento tambem. Isto dotemperamento, digo-to aqui muito á puridade, que nós cá, os theologos, não queremos ceder nada aos temperamentos. Ora vamos, Jorge, a pé d'essa cama!—A pé!—disse Jorge—e poderei eu?!—Pódes porque queres. Hoje e ámanhã de convalescença; depois de ámanhã para banhos do mar.—De que me servem banhos de mar, meu tio?—A resposta é do fôro da medicina. Vaes para o Porto. Hospedas-te em casa de D. Marianna Ferreira, aamiga da creação de tua mãi. Vaes do Porto á Foz tomar o teu banho. Se, no fim do mez, quizeres ir frequentar o primeiro anno juridico, vai; se não quizeres, fica o inverno no Porto, e vem para casa em Maio, caso tenhas saudades nossas e da primavera dos teus arvoredos.—Peço licença—disse Jorge com amargura sincera—para contrariar a vontade de meu tio.—Teu tio não concede a licença pedida.O moço fitou os olhos nas mãos cruzadas sobre o seio, e não respondeu. O egresso lançou-lhe sobre o leito o fato, e sahiu, dizendo:—Vou mandar pôr o teu talher na mesa.Jorge disse entre si:—Morrer aqui ou lá... que importa?Na passagem do seu quarto para a casa de jantar, Jorge recebeu de um criado duas cartas. Uma era de Leonardo Pires; o sobrescripto da outra fez-lhe uma convulsão: era de Silvina. Abriu, e leu o seguinte:«Não sei que mal fiz a v. exc.ª para merecer-lhe uma vingança tão baixa! Collocou ao meu lado um insultador petulante que me vexa em toda a parte. Que fiz eu ao snr. Jorge Coelho?«Aceitei os seus galanteios com amor, e aceitei o seu abandono com paciencia. Que queria que eu fizesse para não ser insultada pelo seu amigo? Diga-me se é necessario pedir-lhe perdão de ter sido abandonada. Não hesitarei em fazel-o com tanto que v. exc.ª me garanta a certeza de que não serei injuriada nas praças e nos bailes. De v. exc.ª—eu muito respeitadora,Silvina de Mello.»Jorge cahiu extenuado n'uma cadeira: a orla roixa das palpebras fez-se negra; apanharam-se-lhe as faces, como se a doença, em poucos minutos, progredisse mezes. D. Antonia vinha chamal-o, e encontrou-o assim, com a carta na mão tremula.—Que tens, meu filho?—clamou ella ajoelhando diante d'elle, e abraçando-o.—Nada, minha mãi, é fraqueza... Não chore, por piedade, não chore, que eu estou bem.E, erguendo-se com vacillante esforço, foi para a mesa. Forcejou por comer; mas as lagrimas cahiam-lhe das faces no prato, e a violencia não conseguia desentalar-lhe a garganta.—Que é isto?—disse o egresso.—Foi uma carta...—respondeu D. Antonia.—Não é nada, meu tio. Recebi uma carta que me fez mal. A impressão gasta-se, e eu d'aqui a pouco estou bom. Agora pedia licença para me erguer da mesa, e dar um passeio no jardim.—Vai—disse o padre.—Eu vou comtigo, meu filho—acudiu a mãi levantando-se.—Não vai, mana; deixe-o ir sosinho.Eram imperiosas as palavras do padre: D. Antonia sentou-se. Jorge desceu ao jardim, e foi sentar-se n'um banco de cortiça encostado a um maciço. Abriu a carta de Pires, que resava assim:«A Providencia não é uma mentira. José Francisco Andraens apanhou uma indigestão de pombos, salame e salmão no baile do visconde, e está em risco de rebentar. Eu estou de atalaia a vêr quantos Jonas sahem d'aquelle bojo! O morgado de Santa Eufemia veiu dar-me a noticia, jubiloso, como quem espera empalmar Silvina, extincto o bruto. O qual bruto já se confessou, a vêr se a gente se persuade que existe uma alma n'aquellas cavernas de sebo!Parte o correio.Teu do intimoL. Pires.»«P. S.O linheiro das Hortas ainda não appareceu com a corda.»Se a carta de Silvina fosse uma dorida invocação ao amor de Jorge, simulando razões e desculpas, ou accusando o silencio do desleal amante, que a despresara sem motivar o menospreso immerecido, é de presumir que o brioso moço nem respondesse á carta, nem se doesse dos hypocritas queixumes de uma caprichosa estouvada. Porém, o estilo, assim magoado como arrogante d'aquella carta, turvou de tal sorte a cabeça e o coração do academico, que já elle a si mesmo se accusava de indiscreto, de ingrato e de extremamente facil em acreditar o tio. E—o que é mais é—sentiu rancor áquelle leal amigo da Maya, que, por conta d'elle, se andava expondo no Porto a ser expulso de todas as casas!Quantas idéas lhe occorreram todas advogavam a innocencia de Silvina. Absolvida e amada eram a mesma cousa. Agora já a esperança de ir vêl-a ao Porto lhe era um desafogo, e não sei mesmo se contentamento. O pobre moço, como nem sabia se quer contrafazer-se, denunciou nos exteriores de inquieto regosijo quanto a resolução do tio lhe era grata. A mãi, compondo a roupa no bahu, chorava sempre; os irmãos choravam ao pé d'elle, e elle fugia de todos para que o não vissem alegre.XVIII.O leitor é uma pessoa de juizo limado e occupações serias. Estou que não lê romances de ninguem, e muito menos os meus, que são escriptos em lingua portugueza e modelados em cousas de Portugal, onde é sabido que não ha imaginação que invente a novella, nem modos de vida que saiam bem no romance. D'onde vem que o romance portuguez, se não é copia do estrangeiro, e aborrecida inverosemelhança, orça por cousa peor, que é a semsaboria.Eu tenho escripto alguns volumes de semsaborias: creio que são vinte e tantos. Entre estes, mergulharam de cachapuz no riodo negro esquecimento e eterno somnotres livros denominados: ONDE ESTà A FELICIDADE—UM HOMEM DE BRIOS—e a VINGANÇA.N'estes tres romances figura um homem, ao qual eu nunca puz nome. Umas vezes chamei-lhe poeta, outras jornalista, outras litterato, e assim fui aguentando com embaraços da composição, mas venci a minha. Custava-me a falsificar o nome d'um homem que copiei com esmeros de rigorosa fidelidade; figurava-se-me irreverencia o que em si não era senão escrupulo banal. Ainda agora me deixo levar da criancice, e não acabo commigo dar um nome qualquer ao homem. Quer-me parecer que ha uns longes de poesia n'este segredo. Diga o leitor que é tolice, e saldemos assim as contas amigavelmente: eu dou-lhe a troco da injuria esta revelação da minha crendice, e guardo as chimeras como o homem de boa fé guarda o tôco de cera benta para se alumiar á hora da morte.Pois é verdade. Aquelle poeta era o amigo de Guilherme do Amaral e de Augusta.Espectros sombrios, memorias queridas e amargas da minha alma em infancia de illusões, passai um instante luminosos na escuridade d'esta recamara da sepultura, onde até a lampada da esperança se vai extinguindo na mão do anjo do conforto! Vinde a mim, corações amigos, cujas lagrimas eu vi, e contei uma a uma, quando apenas tinha a intuscepção da alma, predestinada ao vosso fel, para lhes avaliar o travo. Na vossa mortalha foi o melhor da minha vida, o crêr nas promessas do coração, nos levantados desejos do espirito que não caiam á terra sem se infamarem; foi comvosco a fé na religião da poesia, que era a minha fé unica, porque não havia crêr nem sentir em mim em que não estivesse Deus, que eu convidava, sem temor sacrilego, a gosar-se das delicias que eram d'elle, creações suas, umas sujas, outras empestadas pelas mãos dos homens! Comvosco foi o meu ultimo dia de oração, a minha ultima acção degraças, a palavra final da profissão de fé, que devia, a meu vêr, remontar-me ao céo, e que, ao revez das mais espirituaes theorias de Platão, de Socrates, de Jesus, e de todos os Messias da redempção das almas, deu commigo em baixo n'um golfão de lama, onde ha o ranger de dentes d'estas bestas feras, que até na lama sustentam o egoismo da sua propriedade!Ó visões immorredouras, que me ensinastes o amor e o sentimento, e levastes comvosco o segredo de morrer antes do longo paroxismo do tedio da vida, vós bem vistes com que saudosa unção eu vos offertei dous livros e um ramo de perpetuas, que valiam mais que os livros, e menos que esta pagina em que bem vedes com que fervor me atrevo á prosa d'estes annos, á mofa d'estes industriaes, que me estão perguntando se a apostrophe ha-de ser muito comprida, para tomarem fôlego, e accenderem o seu charuto.Pois accendam o seu charuto, e retirem-se as almas evocadas, e mais os romances, que não tem que vêr com elles o leitor, que tanto conheceu as almas, como se lhe dá dos romances.Veiu isto a ponto de estar aqui já comnosco o amigo de Guilherme do Amaral e d'aquella Augusta por quem choram as flôres do Candal, e as almas desamparadas d'aquelles que... Lá ia já sahindo outra tirada de sentimento. É enguiço, que me ha-de retirar a protecção de muita gente boa, que não precisa de lêr um folhetim para convencer-se do seu direito de espriguiçar-se, e voltar a gazeta de costas, e calcular perspicuamente as relações economicas que podem dar-se entre a alta do cravo dito girofe e a baixa do cacau.Ora ahi vai agora o conto direito. O antigo jornalista, amigo da defuncta baroneza de Amares, estava no Porto de visita em casa de Bernardo Joaquim Ferreira, ahi nos ultimos dias de Outubro de 1855.D. Marianna, esposa do snr. Ferreira, e suas quatrofilhas, e dous meninos, e varias outras pessoas, estão sentadas em roda de uma grande mesa jogando o quino. O jornalista está sentado n'um sophá, conversando com o dono da casa, sobre cousas do Brazil, d'onde o primeiro tinha vindo depois de cinco annos de ausencia. A conversação foi interrompida pela entrada de uma filha do snr. Ferreira, que a mãi e irmãos receberam com muitas vozes de alegria, ás quaes ella respondeu dando um beijo na fronte da mãi, e outro nos labios das irmãs. Com a bem vinda entrou tambem o marido. O litterato, já de pé, deu dous passos, e disse á dama que entrára:—Quero vêr se me conhece ainda, minha senhora.—Se o conheço!—exclamou Rachel.—O mesmo que foi para o Brazil; o mesmo que era ha cinco annos... Não se admire da nenhuma surpreza com que lhe fallo porque eu já sabia que o vinha encontrar. A mãi, quando o senhor chegou, mandou-m'o dizer para a quinta, e deu-me sempre noticias suas. Agora pertence-me a mim perguntar-lhe se me acha muito mudada.—Quando, ha cinco annos, me despedi de v. exc.ª—disse o poeta—se bem me recordo, tive a honra e o prazer de ser propheta, dizendo-lhe que a viria encontrar cinco, dez, ou vinte annos depois, bella como a deixava, minha senhora. Noto-lhe apenas uma differença sensivel.—Qual?—perguntou D. Marianna com solicitude de mãi.—Acho-a mais bella—respondeu o poeta.Por entre os dizeres usuaes que vem sempre depois de um dito feliz como aquelle, ouviu-se a voz aspera do snr. Manoel Pereira, marido de Rachel, dizendo:—Então, vamos a isto?—E escolhia cartões do quino.Queria dizer na sua o snr. Manoel Pereira que bastava já de comprimentos, em que a formosura de suamulher era encarecida por um homem da antipathia d'elle.As senhoras sentaram-se, e Rachel, obrigada, pela indicação do marido, ficou com as costas voltadas para o jornalista.—Não vem jogar?—disse Rachel ao hospede.—Vou, sim, minha senhora.As damas deram-lhe lugar immediato a Rachel. Manoel Pereira estorcegou machinalmente um cartão entre os dedos convulsos, e fez-se escarlate, cravando os olhos no rosto descuidado de sua mulher.O jornalista viu tudo isto, e riu-se para dentro.Agora descreve-se Rachel; depois Manoel Pereira; por fim alguns traços geraes d'esta familia, e fechará o capitulo.Rachel tem vinte e quatro annos. É encorpada, mas a robustez não desdiz da gentileza. Não tem attitude alguma de estudo, e parece esculptural em todas ellas. Nos mais communs movimentos ostenta graça, e garbo que vem de seu natural, e ninguem o dirá se a não tiver visto em toda a sua desaffectada singeleza no recesso das suas occupações caseiras. Quando Rachel está n'um baile... N'um baile foi que eu a vi a primeira vez. Era ella solteira, e teria quinze annos. Isto já lá vai ha quinze. Se eu me não lembrar do que ella era então, melhor me será despedir de mim esta bruta alma que nem para a saudade já serve. As minhas reminiscencias dão-me Rachel vestida de branco. Não lhe hei-de aqui chamar anjo, porque não foi essa a impressão. Era tudo magestade, tudo estatuario n'aquella criança; não a vi a descer do céo, onde os poetas teimam em ir buscar tudo que é excellente, como se o céo não fosse um puro congresso de espiritos que valem de certo lá muito mais do que pesam, mas que passariam desapercebidos nos nossos bailes, se não tivessem a esperteza de entrarem em corpos como o de Rachel. Eu quando a vi lembrou-mea Grecia, as artes, em requinte de pompas, a numerosa familia das Venus, todos esses marmores eternos, que hão-de sobreviver á mythologia dos anjos, dos archanjos e dos seraphins. Os olhos de Rachel... estou-os vendo; nem as franjas sedosas e longas das palpebras m'os escondem; poderiam as arcadas espessas e travadas do sobr'olho quebrar a luz d'aquelles olhos; mas nem assim! Como tu olhas, Rachel! Diz a antiguidade que na Scythia havia umas mulheres que matavam olhando se o rancor lhes fuzilava nas pupillas; porém tu que paixão tiravas da alma toda amor, para a lançares de ti como um incendio que te abrasaria, se eu, se todos, que te viam, não tomassem de joelhos um quinhão d'esse fogo! Que haverá alli de mysterios n'aquelles olhos, se o fluido electrico não basta a dizer o que é que vem de lá como corpo estranho que vos entra no seio, e vos não cabe na alma, e quer fugir ás ancias do coração que o aperta, e vos leva do amor ao transporte, do extasis ao phrenesi, do rir ébrio da felicidade ás lagrimas incessantes de noites desveladas! E, depois, porque não eram só os olhos o condão d'esta mulher? Diante de Deus todos somos iguaes! Na alma se quizerem, e o Creador, lá se avenha com os que o injuriam assim; mas que desigualdade diante do divino artista! Lembra-me que a um lado de Rachel estava uma menina de olhos vesgos; do outro lado uma senhora com um nariz impio; mais longe outra menina em torturas para esconder quatro dentes enclavinhados; além aquell'outra franzindo os labios, e exercitando uma laboriosa mechanica do sorriso para corrigir a natureza que lhe dera uma bocca limitrophe das orelhas. E ella, Rachel, toda primores, a estremecida creatura, com uma luz serena de céo n'aquella face em que se espelhava o seu Creador, o Deus que nos fez para a adorarmos, a rever-se n'ella! Abençoada sejas tu de todas as venturas, que tão perfeita és, tão cheia de tua belleza,tão digna dos thronos da terra, já que o Creador, o teu Pygmaleão, te não arrebatou para si! Onde está, ó Senhor Deus das maravilhas, o homem digno d'aquella obra tua, aqui posta entre nós que apenas temos thronos, imperios, talentos, epopeas, as riquezas da Asia, e o sangue das nossas veias para lhe offerecer! De que barro, ó mão divina, fizeste o homem que ha-de primeiro embriagar-se nos aromas que recende aquella virgem? Onde está o homem que...O homem elle aqui está. É o snr. Manoel Pereira. Já quinou tres vezes. Feliz no jogo, infeliz no amor; é certo o proverbio... até com elle!Manoel Pereira tem cincoenta e cinco annos! estatura mean, cabeça quadrilatera, e plana como um queijo do Além-Tejo desde o occipicio até á cisura do coronal. As arcadas zygomaticas (vejam um compendio de anatomia comparada) entestam com o rebordo esponjoso dos olhos arrastando cada uma para o seu lado a venta correspondente que termina em fórma de fava. O nariz não tem canas; parece que é formado de parafusos. Começa do centro da testa por uma verruga, transforma-se em lobinho, ladea em pequenos abscessos escarlates, e pega no beiço superior, repuxando por elle de modo que o dono não póde exercitar as funcções olfactorias sem enviezar o beiço. Este nariz ha-de ser lithographado e distribuido aos assignantes, concluido o romance. O nariz é o homem. Quem o vir organisa o complexo de Manoel Pereira, como Cuvier recompunha o reptil iguanodo, e o megaterio.Temos á roda da mesa a snr.ª D. Marianna e quatro filhas. É de notar em Rachel o typo perfeito d'aquella familia. A mãi, senhora de quarenta annos, é bonita ainda. Se a perfeição das raças é admissivel, nunca mais sensivel foi a gradação do aperfeiçoamento como entre D. Marianna e Rachel. Das outras filhas, uma é formosa, se bem que já ferida da tisica, que d'ahi a mezesa levara para o lado de uma sua irmã que a mesma enfermidade matou, quando lhe sorriam duas primaveras, a das flôres, e a dos prazeres da vida. Outra é uma linda criança de doze annos, com os olhos de Rachel. A que porfia em belleza desvantajosamente com a mais bella é já casada, e tem vinte annos. Ha uma outra de aspecto vulgar, posto que o não pareça entre outras que não sejam suas irmãs.Bernardo Joaquim Ferreira, o pai d'estas lindas meninas, tem uma agradavel physionomia de homem de cincoenta annos, e maneiras polidas, sem embargo do trafego commercial em que labuta desde rapaz. Revela a esperteza ordinaria na sua classe, temperada pelo uso da boa sociedade em que desbravou as rudezas congeniaes, e as adquiridas nos seus primeiros annos.Ãcerca d'esta familia, outras miudezas seriam intempestivas agora.Saudemos com lagrimas a entrada de Rachel n'esta historia, que principia desde hoje a tomar as proporções d'um escandalo monumental.XIX.—Não sabes quem hoje me escreveu?—disse D. Marianna a Rachel, terminada a partida do quino?—A minha Antoninha do convento.—Sim? que novas lhe dá ella do filho? A mãi disse-me que a pobre senhora vivia muito consternada com a paixão do rapaz pela tal Silvina.—Segundo me ella diz, continuou D. Marianna, o pobre Jorge está enfeitiçado, e cuida ella que a maneira de o desenguiçar é mandal-o para aqui, a fim de elle, á vista do comportamento de Silvina, se desenganar. Acho esquisito o remedio.—O remedio é eficacissimo, snr.ª D. Marianna—disse o litterato.—O que a mim me espanta é ser uma senhora quem o receita. O fim da sua amiga é fazercom que o filho se sinta aviltado por amor de uma mulher ridicula. O amor rompe todos os tropeços, transige com muitos defeitos e mesmo vicios da pessoa ou... cousa amada; mas da mulher escarnecida é que não ha cegueira que o aproxime.—Conhece a tal Silvina de Mello?—disse Rachel.—Já a encontrei em algumas partidas na Foz, minha senhora.—Que idéa fez d'ella? A sua apreciação deve chegar-se muito á verdade.—Pareceu-me, respondeu o poeta, que era galante, e até mesmo esperta. Ouvi-a declamar acrimoniosamente contra uns folhetins que denominaFelizardasas senhoras provincianas, e pasmei da imprudencia com que desprimorou as damas portuenses, chacoteando-as por um lado que é justamente, a meu vêr, o mais vulneravel da fidalga do Minho...—Qual é?—interrompeu Rachel com vivacidade. O jornalista, reconhecendo a inconveniencia da resposta ajustada, fez, como por disfarce, esta pergunta:—Não é certo estar tractado o casamento da tal senhora com um commendador fulano de tal Andraens?—Assim dizem—respondeu D. Marianna—pelo menos cuido que...—Parece-me que não é anno de fortuna para ella... atalhou o snr. Manoel Pereira, coçando a verruga media da aza esquerda do seu nariz.—Por que?—disse Rachel olhando de través o marido.—Por que o meu amigo commendador, desde que foi o baile do visconde dos Lagares, nunca mais se levantou, e vai cada vez a peor. O homem já soffria molestia interior, e comeu tanto á ceia, que esteve a rebentar-lhe a tripa... Ainda ha quem queira bailes!... Se elle estivesse em sua casa...Rachel, prevendo que seu marido aproveitava o ensejo para uma enfadosa e desconchavada diatribe contra os bailes, cortou-lhe logo o fôlego comprido das tolices com esta fina ironia:—Nem toda a gente leva aos bailes as tripas dos teus amigos... Com que então—continuou ella, voltando-se para o jornalista—o amor não será capaz de vencer a indigestão do noivo?—Segundo ouço ao snr. Manoel Pereira—respondeu o litterato em tom lastimoso—a gentil menina está em risco de vêr o coração, que tão caro lhe era, romper-se, batido pelas explosões do estomago que rebenta, deixando a seu dono a gloria de morrer como Tito.Rachel e uma das irmãs sorriam; Manoel Pereira desconfiou do riso da mulher, e disse mal encarado, com o nariz já roixo:—Se elle quizesse mulher tão bonita e mais rica que ella, não lhe faltavam por ahi ás duzias.—Ninguem contesta o dito de v. s.ª—redarguiu o escriptor.—Mas o senhor parece que estava caçoando com o meu amigo...—tornou Manoel Pereira.—É injusto o cavalheiro. Eu se tivesse quatro irmãs dar-me-ia por ditoso se o seu amigo quizesse casar com todas quatro, e lamento não saber o segredo de um tal Lucius que Plinio viu transformar-se em mulher; por que se me eu podesse felizmente mudar em mulher, havia de galantear o amigo de v. s.ª, e morrer de amores por elle se uma indigestão rival m'o arrebatasse.Rachel soltou uma risada contagiosa: riram todos, salvo Manoel Pereira, cujo nariz reluzia ao reflexo da luz, em differentes côres desde o açafrão até ao talo da couve lombarda.O jornalista continuou, fallando para D. Marianna:—Tive tambem occasião de conhecer no hotel daAguia d'Ouro o filho da amiga de v. exc.ª Fallei com elle, e fez-me bem o perfume d'aquelle coração em flôr. Que candura, que adoravel innocencia a dos vinte annos de Jorge... creio que se chama Jorge! E, ao mesmo tempo, que singularissimo typo de rapaz eu conheci com elle, e todos os dias encontro por ahi atraz de uma prima de Silvina, e de um tal Guimarães, linheiro, ou pregueiro, ou cousa que o valha... Que homem se fará d'alli, se o céo o não leva d'este mundo e d'esta sociedade que tanto precisa de um cenaculo d'aquelles apostolos!... V. exc.asde certo não conhecem Leonardo Pires de Albuquerque, fidalgo da Maya, descendente de D. Martim Pires da Maya, que gerou D. Pedro Pires, que gerou D. frei Martim Martins, mestre da ordem do Templo no seculo XIII? De certo não conhecem...—Nem é preciso conhecerem—exclamou Manoel Pereira—É um patife, que concorreu muito para a doença do meu amigo Andraens!—Eu não pensava—replicou o poeta—que Leonardo Pires era um alimento indigesto!... Se bem me recordo, v. s.ª disse ahi que a enfermidade do snr. Andraens era uma indigestão!—Como de facto; mas, pelos modos, o tal brejeiro insultou-o no baile, o homem atrigou-se, e sahiu cá para fóra afflicto, e nunca mais foi bom.—Não sabia isso; apenas me disseram que elle recommendára ao snr. Andraens que não comesse tanto; e quer-me parecer que este conselho, longe de ser insultuoso, tendia a prevenir a indigestão fatal que se deu.—Deixemo-nos de contos...—instou o marido de Rachel.O sorriso d'esta era já forçado por vêr que o jornalista não tinha a cortez caridade de conter as ironias que Manoel Pereira não percebia.—E D. Antonia que diz, mãi?—interrompeu Rachel.—Diz que Jorge Coelho vem para esta casa.—Para esta casa?!—acudiu Manoel Pereira abrindo a bocca, e arregaçando o nariz até á testa.—Não tenho n'isso duvida nenhuma—respondeu Bernardo Joaquim Ferreira, que tinha sahido e voltára momentos antes.—E dou-te parte, Marianna, que Jorge já está na hospedaria, e não sei se será dever meu ir já buscal-o esta noite. Aqui tenho um bilhete d'elle, pedindo-me que o desculpe de não vir directamente aqui.—Como ainda é cedo, disse D. Marianna, podes ir buscal-o. O quarto está preparado. A mãi descrevendo n'um estado tal de amargura que eu tenho pena de o deixar sosinho na hospedaria.—Mas ha um inconveniente—redarguiu o snr. Bernardo.—Tenho gente no escriptorio á minha espera para liquidar umas contas, e não posso deixal-as para ámanhã, que os negociantes são da provincia, e partem de madrugada. Se o snr. Pereira tivesse a bondade de ir á Aguia d'Ouro...—Homem, eu a fallar-lhe a verdade—disse Manoel Pereira—tenho aqui n'este pé direito uns callos que me não deixam dar passada; se não da melhor vontade; mas, sempre lhe direi o que penso respeito á vinda d'elle para aqui. Eu não sei o que me parece metter n'uma casa onde ha meninas novas um peralvilho que não gosa dos melhores creditos, e que de mais a mais é amigo do tal Pires, que ha-de cá vir onde a elle, e o mundo pega logo a fallar pr'aqui, pr'acolá, e ás duas por tres... Em fim, meu sogro lá sabe o que faz...D. Marianna replicou com vehemencia:—O snr. Pereira não ouviu dizer aqui a este senhor que o filho da minha amiga era um moço muito digno?!—Todos elles são muito bons, mas em minha casaé que elles não põem o pé.—Disse Manoel Pereira, e fez menção de procurar o chapéo.Rachel relanceou sobre o marido um olhar severo. O escriptor fazia figuras geometricas com as marcas do quino. As meninas olhavam-se entre si com sorrisos rebeldes á prudencia. O bom Ferreira, apesar da sua superioridade relativa de sisudeza e bom senso, não deixou de vacillar ao choque das reflexões do genro. D. Marianna, porém, voltando-se com energia para o jornalista, disse-lhe:—O senhor faz-me um favor dos que se pedem sem embaraço a um amigo antigo?—Faça-me a honra de mandar-me, minha senhora.—Tem a bondade de ir á hospedaria, e acompanhar o filho da minha amiga, o filho d'uma senhora a quem eu devi na minha mocidade o que não posso pagar-lhe d'outro modo?O jornalista ergueu-se, e disse, tomando o chapéo:—Se elle estiver doente, ou na cama fatigado, mandarei um bilhete para que o não esperem. Até já, ou muito boas noites, minhas senhoras.Sahira o jornalista, e D. Marianna enxugando lagrimas que não tinham na apparencia muito cabimento alli, fallou assim:—Eu nunca disse a minhas filhas os favores que devo á mãi do meu hospede; escutem-me, e depois dirão se o filho de tal anjo não será digno de ser recebido como seu irmão. Eu fiquei orphã e pobre aos onze annos. Entrei nas ursulinas de Braga, entregue á caridade da prelada, que me achou com habilitações para ser uma simples criada grave de convento. D. Antonia de Sepulveda tinha tambem entrado, n'essa occasião, e era rica. Tratei-a com respeito, e ella a mim com familiaridade, para chegar ao fim de me offerecer metade da sua mesada, e habilitar-me a ser senhora entre as outras, que me olhavam com desestima, e com a falsa piedade dasricaças do convento. Aceitei os favores da minha amiga, e tão suave era o dever-lh'os, que nunca me julguei devedora, se não depois que vim a esta sociedade conhecer o valor dos beneficios que recebi de Antonia. Vivi cinco annos á sombra da generosidade d'ella: prendei-me á sua custa, instrui-me com ella d'essa apoucada educação que nos davam no convento; e já depois que a minha amiga sahiu para casar obedecendo ás ordens de seus paes, continuei a receber as mezadas e os presentes que ella recebia. Casei tambem passado um anno, fui feliz, enriqueci, presenteei-a, mas a cada lembrança de amiga que lhe eu mandava, respondia ella com mais valiosos mimos da sua casa. Penso ha vinte e quatro annos no modo de ser util á minha querida Antonia; a Providencia depara-me agora occasião de velar as commodidades do filho d'ella. Haja ahi uma pessoa de boa fé a dizer-me que devia ser outro o meu procedimento...—Ninguem se atreve a tanto.—disse Rachel com enfado.—Eu, se minha mãi, por desgraça nossa, não existisse, levaria para minha casa o filho da nossa amiga, da protectora de nossa mãi. Se eu tivesse um marido que me quizesse roubar o prazer da gratidão em tão pequeno serviço, amaldiçoaria a hora em que meus paes me subjugaram a tal homem...—Não te irrites assim, Rachel...—disse Bernardo Ferreira, ferido pelas palavras da filha, que lhe apontavam direitas á consciencia, onde as fibras do remorso doiam sempre.Entretanto, Manoel Pereira, franzindo o nariz, dilatava as ventas hediondas, por onde vaporava a zanga.O incidente, passados minutos, foi cortado por um bilhete do escriptor, dizendo que Jorge Coelho pedia desculpa, agradecia extremamente a delicadeza, e convalescia da fadiga para no dia seguinte cumprir as ordens de sua mãi.XX.O jornalista encontrou Jorge Coelho na cama, e Leonardo Pires sentado á banca. No semblante de ambos eram visiveis os signaes da altercação, que fôra interrompida pela chegada do terceiro. O filho de D. Antonia estava escarlate de febre, e anciado; o da Maya, se bem que de má catadura, esboçava distrahidamente, a lapis, uns perfis de narizes caprichosos. Jorge conheceu o litterato, e maravilhou-se da visita; Leonardo Pires, mais familiarisado com o sujeito, ergueu-se, abraçou-o, e exclamou:—Aqui está o teu medico, Jorge! o teu Christo, Lazaro!—Temosecce homo?! Dar-se-ha caso que o snr. Pires—disse o jornalista sorrindo—me prepare algumcalvario?... Como está o snr. Jorge Coelho? O aspecto denota inquietação...—Não é inquietação;—atalhou Pires—é a sina maldita d'este desgraçado que nos tortura a ambos...—Todos temos o nosso demonio familliar, snr. Pires—tornou o escriptor—Socrates queixava-se do seu, e eram nada menos de dous os demonios do divino philosopho, sendo o peor dos dous uma tal Xantippa... Querem vêr que o snr. Jorge é energumeno d'alguma Xantippa ideal, que... (O jornalista escreveu, e entregou a um criado o bilhete que foi recebido em casa de D. Marianna). Jorge entretanto, sorrindo contrafeito, respondia:—Não, senhor. Eu sou apenas victima das loucuras do meu condiscipulo.—Ó cavalheiro—clamou Pires irritado—diga ahi a esse ingrato quem é Silvina de Mello. Não se trata aqui de desfolhar lindas chimeras, e matar illusões queridas. A paixão de Jorge é uma nodoa que eu quiz delir-lhe do coração, á custa mesmo do meu descredito e abominação n'esta sociedade devassa. Tenha vossê a franqueza de dizer a esta criança o que eu tenho sido, já que eu tive a boa sorte de lhe referir ao senhor as minhas acções e palavras.O romancista achou de riso a gravidade da appellação de Pires para o seu testemunho; mas perseverou-a na seriedade que o proposito pedia, e disse:—O snr. Leonardo Pires tem dado provas exuberantes de amisade ao snr. Coelho, verberando com prosperos sarcasmos uma menina em tudo respeitavel, menos na sua virtude.—É de mais!—atalhou Jorge—Póde ser que Silvina mereça censura como inconstante, sem com isso...—Deixar de ser virtuosa?...—interrompeu o poeta...—Justamente.—Não julga bem, snr. Coelho. A deshonestidade não póde ser virtude. A mulher que enfeira o coração, e o põe á concurrencia, mirando ás vantagens do pedido, poderá ser uma sagaz professora de economia politica applicada ás mercadorias do coração, mas virtuosa é que ella de certo não é. Para mim tenho que a virtude póde coexistir com a miseria da mulher perdida que não tem a hypocrisia de expor o coração á venda; porém, quero eu que não prostituamos a palavra, que é santa, cedendo-a á que cuida cobrir as suas ulceras com o amicto de virgem. A snr.ª D. Silvina de Mello, que eu vim, depois de cinco annos de ausencia, encontrar occupando a vagatura d'outras aventureiras que eu cá deixei, é uma senhora aleijada.—Ainda mais essa!—atalhou Pires—Eu nunca dei pelo aleijão de Silvina!—Aleijada de espirito, quero eu dizer, snr. Albuquerque. Que outro nome se ha-de dar á lamentavel enfermidade moral d'uma menina que desperta das suas illusões de infancia, esfrega os olhos, e começa a procurar em redor de si um homem com alguns saccos de dinheiro? Ha ahi nada mais torpe, mais nauseabundo na face da terra! A mulher que assim faz tem alluido a sua virtude pela base, que é a vergonha. D'ahi ávante o pudor é uma mentira, as côres que sahem ao rosto são irrupções de sangue como as empigens, é um mechanismo da materia que o observador encontra mesmo nos prostibulos. Que é o que bate no peito d'essa mulher, desde que a ancia do dinheiro fez d'ella um estimulo de sensações? Quando ella fallar nos affectos da sua alma, qual é de nós o que voluntariamente se immolará ao escarneo de sua propria consciencia, respondendo ás Silvinas com expressões de candura e boa fé? O snr. Jorge Coelho tem a sinceridade de me dizer se me entende?—Entendo; mas não creio que Silvina seja a mulher que o senhor qualifica.—Eu não a qualifiquei ainda: o que eu quiz foi a certeza de que o meu joven amigo me entendeu a theoria: agora pertence á pratica o qualificar Silvina. Está o snr. Jorge Coelho no Porto. Fez bem em vir. Isto é uma questão de tempo. Faça as suas experiencias desde ámanhã em diante; mas tenha a condescendencia de me ir communicando os seus descobrimentos. Entretanto, restitua ao snr. Leonardo Pires o bom conceito em que o tinha, que estes amigos são raros. Outro objecto. A minha commissão não era vir discutir Silvina: Eu fui aqui enviado pela snr.ª D. Marianna Ferreira e seu marido a fim de conduzir o snr. Jorge a casa d'elles, onde foi recebida uma carta de sua mãi.—Oh! bravo!—exclamou Pires.—Temos homem!—Não atino com o seu enthusiasmo, snr. Albuquerque!—disse o escriptor.—Que mulheres, que mulheres tu vaes vêr, ó Jorge!—continuou bracejando o da Maya.—As Ferreiras! a nata, a quinta essencia das mulheres bellas do Porto! E a Rachel! ai! aquella Rachel, casada com o nariz mais indecente que fez o acaso estupido, a quem o Creador entregou a repartição dos narizes! A Rachel! a mulher dos olhos de antilopa! as mais bellas carnes que ainda vestiram uma alma, se é que uma mulher d'aquellas precisa de ter alma para ser perfeita! Ó Jorge, tu estás curado! Quando vires Rachel, sentirás um coração novo, um coração caldeado nas fragoas dos olhos d'ella! Eu vi-a uma vez, e creio que se a visse segunda...—Iria á missa dos Clerigos vêl-a terceira, não é assim?—interrompeu o poeta, rindo, com Jorge, dos transportes sinceros de Pires.—Rachel é uma bella senhora, e uma nobilissima alma—continuou o escriptor gravemente.—Mas, segundo a sua theoria—atalhou de golpe Jorge Coelho—essa Rachel é uma das muitas aleijadasque por ahi ha. Não a conheço; mas sei que ella casou com um brazileiro hediondo e rico.—Aquelle nariz!—disse Pires.—Tambem me quer parecer que a mulher pouco vale na alma, quando contemplo o nariz de Manoel Pereira!—E eu creio que a sociedade—tornou Jorge—não desconsidera Rachel porque ella escolheu um homem rico, podendo ter aceitado a desinteressada pobresa e o coração opulento de muitos rapazes que a cortejavam. Já se vê que a opulencia d'um sordido não desluz aos olhos da sociedade a virtude d'uma senhora que se deu por ella.—São contos largos...—disse o romancista.—Custa-me que o cavalheiro confunda Rachel com Silvina. Creia que offende uma martyr, snr. Coelho, Rachel supporta o supplicio de Mezencio, com a resignação que santifica a baixeza, se ella tivesse existido, e as culpas futuras, se ellas podem existir. Não levo em paciencia o aggravo feito á pobre menina. Vou contar-lhe em quinze minutos a historia do casamento de Rachel. Bernardo Joaquim Ferreira conhece o valor do dinheiro, e duvida da existencia d'umas paixões, que podem vingar e prosperar sem dinheiro.Ãs filhas chama-lhe suas, e não exclue d'esta propriedade o coração. O seu pensamento fixo d'elle é casar ricas as filhas. Rachel era querida de alguns amigos meus, espiritos dignos d'ella, que lhe teriam dado a ventura, se os encontros predestinados dos espiritos não fossem o mentiroso poetar de infelizes que nunca se encontram. Um d'esses amigos, fui procural-o ao hospital de alienados, quando desembarquei ha cinco mezes em Lisboa. Conheceu-me ainda, e as primeiras palavras que me disse foram: «Morreu Rachel! A minha alma foi com ella.» Pobre moço! bem sentia elle que já não tinha alma! Depois de dous annos de loucura, por ignorados motivos, esquecido de tudo que fôra, tinha umasó reminiscencia, como se todo o seu passado se concentrasse n'ella... Vamos ao ponto, e desculpem-me d'estas intercadencias melancolicas. Os senhores não sabem ainda o que é olhar para o passado aos trinta e cinco annos, e vêr uma longa fila de espectros uns gotejando sangue, e outros lagrimas...O poeta dissera isto tão do intimo amargurado, que nem Leonardo Pires deixou de o escutar com magoa. Jorge, já dorido de suas tristezas, não era para espantar que desse em lagrimas uma prova de sympathia á dôr alheia.Proseguiu o romancista:Ha seis annos eram dous os homens indicados para maridos de Rachel. Quem os indicava, e negociava com ardis, e negaças ignobis, sobre serem immoraes, era o pai. Rachel detestava-os ambos. Manoel Pereira era um; o outro era brazileiro tambem, menos repulsivo, melhor alma talvez, e amigo do primeiro. Desde que se toparam a amar a mesma mulher, odiaram-se, intrigaram-se e depreciaram mutuamente os seus haveres, porque bem sabiam que Ferreira tinha a filha em almoeda. O primeiro que a pediu foi Manoel Pereira, abonando-se com cem contos. O segundo não dizia o seu valor. Foi o primeiro preferido, sem ser consultada a victima.N'este tempo, Manoel Pereira entra em transacções com o governo, e perde cincoenta contos. Ferreira, sabedor da perda, acolhe de novo o outro concurrente, e cede-lhe a filha. Este carecia de ir liquidar o seu negocio ao Rio de Janeiro. Mas, como a liquidação se detivesse mais d'um anno, Manoel Pereira aventura-se em especulações mercantis, estas prosperam-lhe, restaura-se das perdas, e rehabilita-se para esposar Rachel. O negociante, que sabia o anexim do passaro na mão, receia que o outro não volte, e quebra pela terceira vez o contracto. Rachel ignorava estas asquerosas mercadorias.Annuncia-lhe o pai que ella é esposa promettida de Manoel Pereira. A pobre menina quer defender-se primeiro com razões, depois com lagrimas. Tudo lhe é rebatido com indifferença, ou com palavras violentas de soberania paternal. Desde o dia em que se fizera definitivamente a operação commercial dos quinze annos d'um anjo formoso, como a esperança d'uma alma pura, com o homem de cincoenta annos, sem o desconto de alguma feição boa do corpo ou da alma, Rachel era perseguida pelo seu porco demonio de todas as horas. Se acontecia Manoel Pereira estar na sala, e a lagrimosa criança se demorava no seu quarto para encurtar as horas do supplicio, ia lá o pai buscal-a; e se as grosserias a não compelliam a aligeirar o passo, não era raro ameaçal-a de pancadas, e mesmo fazer executiva a paternal justiça. Quantas vezes Rachel entrou na sala, com as faces escarlates das bofetadas que o pai lhe dava como incentivo para saber aproveitar-se da fortuna caprichosa! Era esta a lastimosa situação de Rachel quando eu fui para o Brazil. Recordo todas as palavras que a formosa criança me disse a ultima vez que fallamos.—Tenha animo para a obediencia—disse-lhe eu—Bem póde ser que Deus a remunere d'essa virtude com imprevistas felicidades.—Eu dou por terminada a minha vida—respondeu-me Rachel com os olhos enxutos—Tenho quinze annos, e ha tres mezes que olho para a minha existencia, como se ella fosse já longa de trabalhos. Os paroxismos hão-de ser rapidos. Sei que nem eu nem alguma de minhas irmãs podemos sobreviver á mocidade. Estamos todas feridas da mesma morte. D'aqui a pouco lançarei o coração em golfadas de sangue, e meu pai não terá remorsos de ter cooperado para a minha morte, por que elle já viu dous irmãos meus cahirem no verdor dos annos na sepultura onde cahiremos todos. Vá, que não me torna a vêr...Eu sahi de ao pé de Rachel, com o coração opprimido, mas contente de mim porque chorava as primeiras lagrimas, depois d'outras que eu julguei serem as ultimas... Rachel casou. Não morreu. Mentiu-lhe o anjo que fallava áquella sua innocentissima alma. Vive. É uma agonia sem nome... O quarto de hora já lá vai. Agora, meus amigos, não venha mais o nome de Silvina como um escarro á face de Rachel. Até ámanhã, snr. Jorge. Depois d'estas reminiscencias, eu tenho um singular coração que se brutifica, e uma alma que detesta a sociedade. Boas noites.XXI.Cuidava o leitor que estava livre do sujo José Francisco Andraens; do estouvado Leonardo Pires; do nariz de Manoel Pereira; da erudição mythologica de fr. Antonio; do mettediço jornalista; da fidalga de Margaride, adeleira fraudulenta do seu roto coração; da Francisquinha da Cunha, promettida esposa do linheiro das Hortas; do morgado de Santa Eufemia, rival do Andraens; do Egas de Encerra-bodes, illustrissimo sangue neogothico; de Jorge Coelho, alma pura e candida e apaixonada até enfastiar o bom siso de quem nos atura, a elle e a mim; e, finalmente, de Rachel.Ai! não me digam que estavam enfastiados de Rachel!... As lindas mulheres só enfastiam os seus maridos, e desagradam ás mulheres feias. Parece que a propriamoral, severa como a directora d'um collegio, se compraz ás vezes de as vêr louquinhas, se o ellas são. A belleza é o poder moderador dos delictos do coração. Uns lindos olhos são a mais commovente rhetorica em defeza das culpas que a intolerancia lhes assaca. Um braço gentil, que descuidosamente se denuncia nu, abala o animo do juiz austero com mais vehemencia que a mimica de Hortencio e Mirabeau. O sorriso discreto, se não é bem despreso nem expressão de orgulho da culpa, abranda e enternece mais o peito abroquelado de indifferença, que a lacrimosa peroração dos que vingam apertar com os cilicios da piedade o coração de um jury.Mas a que proposito cahe esta especie de defeza de Rachel?! Peccou ella, por ventura? Não, minhas senhoras. Rachel tem um só peccado de fraqueza; foi optar pelo marido, entre o marido e o suicidio. Desceu ao plebeismo das outras, que lhe haviam dado o exemplo da renuncia de si proprias, podendo afidalgar-se e ser unica pelo heroismo de se entregar á justiça de Deus, fugindo ás injustiças do mundo. A morte moral, que a sociedade inflige ás malfadadas, que a cupidez d'um pai acorrentou a um marido abominavel, se o coração, em phrenesis rompeu o grilhão, é, mais dolorosa que o suicidio tantas vezes, quantos são os repellões que a sociedade lhes dá até as engolfar no abysmo sem sahida.Querem dizer-me que Rachel, se tivesse aceitado o beijo da morte, e fugisse ao beijo marital de Manoel Pereira..., (um beijo de Manoel Pereira, com aquelle nariz na vanguarda... santo Deus!) ninguem se lembraria do seu heroismo a estas horas? Dizem mais que o desdem da gente séria, e a censura da gente religiosa, e a irrisão da gente parvoa, e o contentamento de outra que Manoel Pereira iria escolher, entre mil, n'esta grande feira, fariam do suicidio de Rachel assumpto de reprovação e de affronta á sua exquisitice? Tambem openso assim. Estou que ninguem já hoje se lembraria do pobre anjo que fôra queixar-se a Deus de o terem querido despir de suas pompas, de suas flôres, de sua aureola, de sua virginal pureza, para o prostituirem aos regalos d'um satyro revelho, que perdeu alma e coração no grangeio da riqueza, com a qual vem mercar um recreio para a sensação do corpo, abrazeado na vida ociosa! Ninguem se lembraria da nobre alma, que preferira deixar as graças do corpo aos vermes, para o não dar ao cêvo de uma besta-fera. Assim é; porém, se uma vez Rachel voltar o rosto de enojada do cadaver a que a prenderam; se a força, que o coração lhe fizer, tiver comsigo a força do exemplo bem succedido e quisto da sociedade; se o seu fragil batel de virtude, forçada e violenta, se desconjuntar e abrir, rebatido pela tempestade das paixões; se em fim, aquella honra, a constrangimento, e não de vontade aceite, se fôr a pique, a sociedade que dirá?A sociedade—replica o leitor que a conhece e se conhece—a sociedade faz-se desentendida por cortezania; por conveniencia; porque sabe a historia do olho com trave, que se abria espantado de vêr uma aresta no olho alheio. A sociedade fez uma convenção tacita, de que é fiadora a civilisação. Em substancia, este contracto social dá os seguintes resultados:1.º Respeitar a liberdade do coração humano, sem prejuizo do soalheiro das salas, em que é preciso entreter o tempo, e fingir a gente que não conhece senão as pessoas que estão fóra das salas.2.º Fingir, outro sim, a gente que está convencido da tolice dos outros, para que os outros nos tenham em conta de boçaes de boa fé, e não de espertos sem pudor. Dá-se um exemplo em hypothese: tal marido sabe que o mundo o lastima ou moteja; mas como a lastima e a irrisão cauterisam, sem curar, a chaga do vilipendio, o lazaro finge-se de optima saude, e aproveita occasiãode gemer pela molestia do seu amigo, gafado da mesma lepra. Estes dous homens, se se topam, e fallam da corrupção social, voltam as costas a rir um do outro, e vão cada qual por seu lado, espalhando a risada contagiosa.3.º Não perdoar o que se chama «escandalo». Escandalo é não ter a sagacidade da hypocrisia, e o despejo de injuriar o senso publico, tratando-o de nescio. Escandalo é tomar a serio as brincadeiras do coração, e vir dar alguem á sociedade uma prova de que despresa o contracto social. Escandalo é cahir da prostituição legal á honra do coração, que cuida ennobrecer-se e regenerar-se; victimando o nome, o estado, e o que a inveja chama fortuna, ao goso de conhecer a liberdade na miseria. Escandalo, a final, o escandalo maximo e abominavel e imperdoavel é a mesma miseria.A sociedade sabe que o crime é um dos elementos da ordem das cousas, e julga-o um mal necessario, sem o qual não haveria bem-aventurança nem inferno, nem anjos, nem demonios, e Deus seria inutil por não ter que fazer, visto que os theologos lhe não attribuem occupação que não seja julgar, premiar, condemnar, e perdoar, segundo lhe pedem, ou conforme a sua espontanea misericordia quer. Ora, sem o crime, este complicadissimo funccionalismo, cujo presidente é o Creador do céo e da terra, do mar e do sol, da avesinha que regorgeia nas moitas, e do leão que atrôa os desertos, do homem como Alexandre e Napoleão e do homem como José Francisco Andraens, e Manoel Pereira... dizia eu... eu! eu não dizia nada: quem dizia que o crime é necessario era o jornalista, amigo de Guilherme do Amaral, conversando na «Aguia d'Ouro» com Jorge Coelho, alguns dias depois do encontro em que os vimos no capitulo ultimo da primeira parte d'estas biographias.Vamos agora á historia.Achou Jorge em casa de D. Marianna Ferreira o seu quarto e sala adornados com muito aceio e selecção. Melhor que isto, era o gosto de se vêr acolhido sem estranhesa nem demasias de ceremonia. Os filhos e filhas de D. Marianna, logo ao segundo dia, o tinham como pessoa da familia, e porfiavam em divertil-o d'aquelle geito de tristeza, que era natural, e das abstracções penosas, que tinham a sua razão de ser na dôr do coração.D. Marianna, senhora algum tanto despreoccupada do artificio, que tão preciso é, chamado delicadeza, logo que Jorge lhe deu uma aberta, fallou na paixão, que o seu hospede tinha por Silvina, e nos desgostos, nascidos d'esse louco amor, para a sua querida Antonia.D. Marianna, em termos desabridos, disse de Silvina o que era notorio, e talvez lhe exagerasse os defeitos.Jorge escutou-a respeitosamente, e ao mesmo tempo admirou-se de ouvil-a assim fallar na presença de suas filhas, que todas estavam presentes, salvo Rachel, a quem elle não tinha ainda visto.Lembrado está o leitor de ter sahido Manoel Pereira zangado de casa de sua sogra, por que a maioria lhe rejeitára o parecer de não ser recebido Jorge em casa d'aquella. Como Rachel sahisse então da sua paciente annuencia aos votos irracionaes do marido, este, mal afeito a ser contradictado, protestou convencer a mulher e a sogra de que não queria relações com tal sujeito.No dia seguinte, ao abrir da manhã, mandou preparar alguns bahus, entrou n'uma carruagem com Rachel, e foi conduzil-a a uma quinta, seis leguas distante do Porto, nas immediações de Barcellos. Quizera a submissa senhora despedir-se de sua familia; mas Manoel Pereira, franzindo as verrugas do nariz, e enviezando o beiço na sua ordinaria expressão de zanga, atalhou as intenções da saudosa Rachel, dizendo que a mulher casadanão tinha familia senão seu marido. E Rachel, fitando os olhos coruscantes de raiva no nariz do esposo, disse com o fel do coração nos labios, que sorriam sardonicamente:—Deus te livre que eu alguma hora me esqueça de que tenho uma familia, que não é meu marido... Se lhe eu perder o respeito a ella, se os estimulos de minha exemplar mãi me faltarem, tu verás então que eu não tenho outra familia.O marido, arregaçando os musculos businadores, e as azas nasaes com elles, regougou:—Põe lá essas doutorices em miudos, que eu não te entendo.—Se me tu entendesses—redarguiu Rachel—nunca me forçarias a fallar assim á tua ignorancia.Manoel Pereira cascalhou uma risada de velhaco, e coçou-se atraz da orelha esquerda.Não se trocaram palavra no decurso de seis leguas. Rachel ia linda pelo escarlate da sua colera; e Manoel Pereira bufava, quando não cabeceava de somno jogando contra o hombro de sua mulher.A gentil senhora, a espaços, encarava no marido, e dizia entre si: «Que destino o meu! Este é o homem, que me deram para a vida! Querem que seja d'este homem o meu coração! Ter uma só existencia, e curta como hade ser a minha, e hei-de sacrifical-a toda a esta cousa que vale duzentos contos de réis!«Que aproveitou meu pai d'este monstruoso enlace? Que lucrou este homem em se aviltar para me chamar sua, se elle mesmo conhece que lhe obedeço abominando-o? Mas eu não devia soffrer, porque Deus bem sabe que fui levada de rastos, e que me perdi por ser boa filha, e me tenho atormentado para ser uma victima obediente dos calculos de minha familia! Calculos! quaes, e de que serviram? Quem foi feliz com elles?!...»Estes mentaes soliloquios eram cortados por algum ronco pavoroso, ou espertar estremunhado do negociante de couros, quando não era uma pancada da mão esponjosa que algum sonho sacudia ao peito de Rachel.Chegaram ao seu destino, e pouco depois as cargas da bagagem, e as criadas de Rachel. Manoel Pereira passou na quinta aquelle dia e o seguinte; ao outro, voltou para o Porto a fim de fazer uma carregação de couros, e activar uma leva de escravos brancos para o Rio de Janeiro.Rachel, á hora crepuscular da noite d'esse dia, foi sósinha sentar-se nas escadas do cruzeiro, que defrontava com o portal da quinta, e então chorou as lagrimas represadas em tres dias de exasperada angustia.Como tu serias linda alli de uma formosura do céo, Rachel! Qual Magdalena mais linda inventou o buril aos pés da cruz misericordiosa! E se anjo tu eras de purissima alma; se as mesmas lagrimas te depuravam de intenções culposas, que alegria não seria a do teu Creador, vendo-te assim incontaminada, com menos ventura que muitas que não tinham no coração uma fibra incorrupta!Se a essa cruz voltares, n'outra tarde, a pedir perdão da queda, hão-de os anjos chorar-te, ó Rachel; mas pedirão a Deus que te leve para si e para elles, como se houvesses cumprido immaculada o teu desterro do céo.
Traslado fiel de uma carta de Leonardo Pires a Jorge Coelho:
«São 6 horas da manhã. Venho do baile do visconde dos Lagares. Tenho o coração a trasbordar de amargura! Deixal-o trasbordar, que é uma gotta de absintho n'um oceano de champagne. Um bago de uva matou Anacreonte. Eu sinto-me triplicar de existencia na uva.Evohé!Como a vida é linda! que vergeis de flôres recendem á tona d'este lamaçal! Vem cá, Fortuna! Schakspeare chamou-te prostituta. Linda, vem cá, que eu bem te vi no baile, como o poeta inglez te via nos paços e nas tavernas! Senta-te aqui nos meus joelhos, impudica! Solta d'essa larynge recozida de alcool um dithyrambo! Ri-te commigo, e não me venhas dizer que és filha da Providencia, infame blasphema!...
Cançou-me o folego, Jorge! O meu vinho nunca foi para grandes apostrophes. O descriptivo é o meu forte.
Fui ao baile. Pude lograr a causa da moral publica. Deves presumir que estou desacreditado no Porto, e em vesperas de um duello. Sou o varão justo a braços com a adversidade:vir fortis cum mala fortuna compositus—a maravilha que punha Seneca em extasis! O champagne do visconde é litterario como as aguas da Aganippe. Que abundancia de pegasos eu vi beber na sala da ceia, e apparecerem Homeros na sala do baile!
Pedi a quatro conhecidos que me arranjassem convite. Era impossivel. O visconde respondia que eu era umbolas, que descompozera no largo da Batalha uma menina, noiva de um seu amigo. Eis que encontro o João da Thereza da Cancella! Este João é meu caseiro ha cincoenta annos. Vê-me, corre a abraçar-me, e exclama: «Fidalgo, o meu Francisco chegou!»—«Quem é o teu Francisco, amigo João?»—«O meu Francisco—tornou elle—que estava no Maranhão! pois não sabe?»—«Não sabia... Vem rico?»—«Rico como um burro!»—«Está bom; estimo; é barão de...?»—«Não, senhor; barão ainda não é; mas está aquartelado em casa do snr. visconde dos Lagares.»—«Sim?!»—«É como digo, fidalgo, e, pelos modos casa-lhe com a filha; é arranjo tratado já lá do Brazil.»—«Fazes-me um favor, João?»—«É pedir por bocca.»—«Teu filho será capaz de me arranjar que eu seja convidado para um baile que vai dar o visconde amanhã?»—«Que remedio tem elle, senão arranjar?! Quem foi que lhe pagou a passagem para o Rio senão o paisinho do fidalgo?!»—«Vai depressa, e volta aqui com a resposta.»
Meia hora depois, voltou João da Thereza da Cancella, com a carta, e disse-me: «Olhe que o homem não queria dar o officio; foi preciso eu dizer que dava duas libras por elle, sendo preciso; o meu Francisco chamou-mebruto, e depois lá se mexeram como poderam, e aqui tem.»
Dei um abraço democrata no meu caseiro; procurei os meus quatro conhecidos, mostrei-lhes o cartão, e fiz o elogio do seu valimento d'elles.
Apenas entrei no baile, fui comprimentar a viscondessa, que fallava com Silvina. Esta, quando me viu, resfolegava como se eu fosse uma grande botija destapada de vinagre de sete ladrões. Retirei-me a rir, e, na reviravolta impetuosa, bati n'uma grande esponja: era José Francisco Andraens.—Perdão!—disse-lhe eu. José Francisco grunhiu, e enviezou-me um olhar sanhudo—Perdão!—tornei eu. O cerdo poz as mãos na linha hemispherica do seu globo, constituiu-se vaso etrusco, e regougou: «O senhor anda a embarrar pela gente?!»—Foi umaembarraçãoinopinada, snr. Andraens!—repliquei eu—Se lhe offendi os tecidos, desculpe-me.—«Estes meliantes...» disse o brazileiro, e foi-se embora.
Adiante encontrei os morgados de Santa Eufemia, e de Matto-grosso.
—Que ha de novo?—perguntei eu.
—O casamento de Silvina com o brasileiro está definitivamente tratado—disse-me Egas de Encerra-bodes.
—Com o brazileiro?
—Com o brazileiro. Veiu ahi o pai d'ella; expoz á filha as vantagens do casamento, e ella poz os olhos no céo, e disse:—cumpra-se a vontade do Senhor,... e a de meu pai!
—E cá o amigo Christováo Pacheco que diz a isso?—perguntei eu, voltando-me para o de Santa Eufemia, em quanto Egas ria estrondosamente.
—Eu digo—respondeu elle—que já cá botei as minhas contas, e que hei-de tourear o tal José Francisco!... Estou civilisado;—cá o primo tosqueou-me o pello.
—Vi-te n'aquelle momento, meu caro Jorge. Vi a tua candida alma, n'esse ermo, a penar, em quanto a vil, que te mentira o apunhalara, se andava alli glorificando de que a indigitassem como futura quinhoeira dos duzentos contos do negreiro. Fervia-me o sangue em borbotões de raiva. Jurei tirar alli uma vingança em teu nome, a vêr se me assim despenava da culpa de te apresentar, de te immolar aos rasos instinctos d'aquella mulher. Busquei ensejo de fallar-lhe; mas ella evadia-se, não largando nunca o braço de um ou outro homem. O millionario, filho do João da Thereza, levou-me á casa da ceia, e serviu-me tres copos de um vinho que tinha um nome barbaro. Abrazou-me as arterias; mas a minha raiva medrava nas chammas como a salamandra. Tornei ás salas, encontrei Francisca da Cunha pelo braço do linheiro das Hortas; parei diante d'elles, e disse, com a solemnidade do estilo:—Boccacio e Fiammentta! Bettina e Goethe! Fornarina e Rafael de Urbino!
O linheiro, voltou-se para Francisca e murmurou:—Não conheço este sujeito.
Eu continuei: Beatriz e Bernardim!
—O senhor está enganado comnosco—disse o linheiro na sua boa fé de linheiro. Francisca, tirou-lhe pelo braço com força, e afastaram-se. Não sei o que lhe ella segredou. O homem, pouco depois sahiu-me de cara, e disse-me:
—V. s.ª parece que, ha bocado, me quiz insultar.
—Eu não o quiz insultar ha bocado, senhor... como é a sua graça?
—Eu chamo-me Antonio José Guimarães.
—Pois senhor Antonio José Guimarães, como passou?
O linheiro açafroou-se, mediu-me tres vezes perpendicularmente, e disse:
—O senhor ha-de dar-me uma satisfação.
—N'esse caso, satisfaça-se, e, quando estiver satisfeito, avise-me, snr. Antonio.
—Na rua nos encontraremos.
—Pois sim, repliquei eu, na rua nos encontraremos. O snr. Antonio quer duello a todo o trance e sem misericordia? Eu não me bato com armas brancas nem pretas. O snr. Antonio, como tem a materia prima de casa, leve uma corda, que o hei-de enforcar.
O linheiro ficou chumbado ao tapete, e suava como uma abobora porqueira em manhã de orvalho.
Tocou á ceia. Entrei na sala. O champagne estalava. Os crystaes retiniam. Os talheres tilintavam. Eu tinha no craneo a musica das espheras. José Francisco Andraens ia atamancando um empadão de pombos, cujos arcabouços lhe pendiam das belfas em fragmentos. Silvina defrontava com elle, e comia a duodecima Sandwich. Estavam tres perús, ou seis, ou não sei quantos perús intactos na mesa. Fui collocar-me atraz de José Francisco Andraens, e chamei um servo agaloado de prata. O snr. commendador Andraens—disse-lhe eu a meia voz—quer que vossê leve um d'estes perús de mando d'elle áquella senhora que tem uma grinalda de flôres brancas. Disse e fui collocar-me a pouca distancia de Silvina.
Chegou o criado com a travessa, e disse:—Minha senhora, o snr. commendador Andraens manda isto a v. exc.ª
—Isto a mim!—tartamudeou ella entre admirada e vexada.
—Sim, minha senhora, a v. exc.ª—teimou o criado.
Silvina pregou os olhos abrasoados em José Francisco, que lhe abria um sorriso apaixonado por entre o costado d'um pombo. Ao sorriso respondeu ella com um tregeito de colera. Cheguei ao ouvido de Silvina, e segredei-lhe:
«Minha senhora, José Francisco envia-lhe um suspiro d'alma; e como a alma de José Francisco é uma ucharia, os suspiros de José Francisco são perús.»
Quando Silvina volvia os olhos fuzilantes, tinha eu desapparecido. Fui ao ouvido de José Francisco, e disse-lhe á puridade:
—A sua noiva está indignada de o vêr comer assim! Sacrifique a Cupido o oitavo pombo, amigo José.
O que decorreu depois d'isto, não sei dizer-te meu caro Jorge. A minha cabeça não podia já com encargo da chronica até final: sahi. O ar fresco da madrugada, que aspirei até ás cinco horas, restituiu-me á bestial vida commum. Não posso mais.
—Resta-me dizer-te que, se choraste uma lagrima por Silvina, envergonha-te de chorar segunda.
Adeus. Teu
L. PIRES.»
Verificaram-se os presagios do padre João. Jorge, depois da ultima carta d'aquelle singular e diabolico Pires, quiz reanimar-se, e já não pôde. Debil de compleição, quebrantado de insomnias, sorvido incessantemente na funesta scisma de que não havia ahi na terra voz humana que o chamasse ao amor da vida, nem no céo misericordia que o remisse da immerecida pena, Jorge, sem um queixume, sem uma lagrima, sem dar de si incentivo á piedade dos seus, desculpou-se com um ligeiro incommodo, e ficou um dia no leito. A pobre mãi alvoroçou-se, e com ella toda a familia, que via chorar. Veiu logo a sciencia que trata magistralmente dos achaques do estomago, e d'outras visceras nobres, e declarou que a molestia do doente era cousa moral, paixão, hypocondria,ou romance. O facultativo capitulou assim a enfermidade com um sorriso supicaz, e disse á viuva que não era nada aquillo, e ao padre, piscando o olho, acrescentou que era aquella uma das feridas que se curam com o pello do mesmo cão. Chiste de cirurgião de aldêa.
D. Antonia recobrou-se do seu desmaio; mas o egresso entrou em maiores cuidados.—Para o Porto, e sem demora, o rapaz—disse o padre á cunhada.
—Mas o cirurgião não receia, nem Jorge se queixa...—acudiu D. Antonia, temerosa da separação.
—Deixe fallar o cirurgião, senhora. Seu filho morre sem se queixar.
—Não me diga isso!...—exclamou a mãi consternada.—Pois as suas palavras tão persuasivas, mano, e a religião não hão-de poder nada?
—A religião póde muito: se elle fizer uma confissão contricta, e morrer com sincera dôr dos seus peccados, a religião encaminha-o para Deus; mas o que nós queremos é que elle viva. Que me responde a isto, mana Antonia?
—Eu antes o queria com Deus, que perdido no mundo—disse ella suffocada pelos gemidos.
—Respondeu acertadamente; mas a supposição de que Jorge se perde no mundo, acho-a exagerada. Deixe-o ir onde elle se envergonhe de padecer, que eu lh'o dou por salvo. Torno a repetir-lhe, mana, que eu fui homem antes de ser frade, e a senhora foi sempre o que é—uma alma cheia de innocencia, de bondade, e de ignorancia.
—Pois bem, meu amigo, faça o que entender, mas salvem-me o meu filho.
—Aceito o encargo com uma condição: a mana não chora mais uma só lagrima na presença de seu filho; finge acreditar que elle precisa de banhos do mar; exige que vá já para o Porto, e de lá para Coimbra, sefôr vontade d'elle ir a Coimbra este anno. Conforma-se com isto?
—Com tudo que de mim quizerem—murmurou ella enxugando as lagrimas.
—Agora cuide da bagagem de Jorge, que eu vou fallar-lhe.
Jorge Coelho estava sentado na cama, lendo aNova Heloisade J. J. Rousseau. O egresso foi de mansinho ao pé do leito, tirou pausadamente os oculos d'um enorme estojo escarlate, montou-os na ponta do nariz, abriu e arredondou os beiços, pendido o queixo, e examinando o livro, disse:
—Era um grande homem esse Saint-Preux, ó Jorge!...
—Pois o tio conhece Saint-Preux?!
—Relacionei-me com esse cavalheiro e com outros da sua estofa ha bons quarenta annos. Nunca t'o apresentei, quando praticavamos litteratura, por que sempre entendi que o ias encontrar a Coimbra, de parçaria com os muitos filhos que elle gerou para amparo de muitas Heloisas novissimas, de que está inçado o mundo, graças ás novellas, e ao descredito a que baixou a roca e o fuso. Que carta lés?
O egresso levantou o nariz com os oculos á linha horisontal dos olhos, e leu algumas linhas da pagina.
—Ah!—continuou elle—trata do suicidio... Está mui atiladamente debatida a questão por uma e outra parte. O Rousseau era mestre em paradoxos; e sabia bastante de musica; mas os paradoxos dava-os de mimo á humanidade, e para elle guardava a vida com todas as suas paixões villãs, mal resguardadas por uma côdea de soberba e orgulho. Ensinava o mundo a educar os filhos, e mandava os d'elle para a roda. Atassalhava a impudicicia do seu confrade Voltaire, e escrevia as suasConfissões, com esqualido recheio de desvergonhamentos, para prova de que até o impudor tem a suasoberba. E depois, meu sobrinho, o philosopho, a luminaria do seculo, vendo que a ulcera, aberta no coração da sociedade pelas más doutrinas, ia lavrando, defendeu de concerto com os seus tresvalios, uma these apologetica da ignorancia... Vou-me alongando, e já receio de ter dito de mais. Isto são reminiscencias das minhas leituras de ha quarenta annos. Quando orçares pelos sessenta, Jorge, has-de abrir a tuaNova Heloisan'essa pagina, e has-de rir da impressão, que te magoava, quando a lêste, aos vinte annos.
—Não me sinto magoado por impressão alguma, meu tio—disse Jorge, sorrindo, e depondo o livro.
—Não mintas, meu sobrinho—tornou o padre com branda severidade—Faz quanto em ti couber por salvar dos teus temporaes desfeitos do coração, o melhor thesouro d'elle, averdade, filho. Sofres, e soffres muito, Jorge. Pensas em morrer, e dás de bom grado a tua vida a Deus, se é que a Divina Providencia transluz nas tuas imaginações negras. Não te culpo, rapaz de vinte annos. O mesmo seria culpar-te e reprehender o naufragado que não soube salvar-se. Nem de fraco te accuso. Se eu quizer que uma tenra vergontea, dobrada pelas minhas mãos, se levante commigo, não hei-de molestar-me se me chamarem insensato. No mais verde dos annos, não responde o mancebo de suas fraquezas: a sociedade que responda por elle, e o temperamento tambem. Isto dotemperamento, digo-to aqui muito á puridade, que nós cá, os theologos, não queremos ceder nada aos temperamentos. Ora vamos, Jorge, a pé d'essa cama!
—A pé!—disse Jorge—e poderei eu?!
—Pódes porque queres. Hoje e ámanhã de convalescença; depois de ámanhã para banhos do mar.
—De que me servem banhos de mar, meu tio?
—A resposta é do fôro da medicina. Vaes para o Porto. Hospedas-te em casa de D. Marianna Ferreira, aamiga da creação de tua mãi. Vaes do Porto á Foz tomar o teu banho. Se, no fim do mez, quizeres ir frequentar o primeiro anno juridico, vai; se não quizeres, fica o inverno no Porto, e vem para casa em Maio, caso tenhas saudades nossas e da primavera dos teus arvoredos.
—Peço licença—disse Jorge com amargura sincera—para contrariar a vontade de meu tio.
—Teu tio não concede a licença pedida.
O moço fitou os olhos nas mãos cruzadas sobre o seio, e não respondeu. O egresso lançou-lhe sobre o leito o fato, e sahiu, dizendo:
—Vou mandar pôr o teu talher na mesa.
Jorge disse entre si:—Morrer aqui ou lá... que importa?
Na passagem do seu quarto para a casa de jantar, Jorge recebeu de um criado duas cartas. Uma era de Leonardo Pires; o sobrescripto da outra fez-lhe uma convulsão: era de Silvina. Abriu, e leu o seguinte:
«Não sei que mal fiz a v. exc.ª para merecer-lhe uma vingança tão baixa! Collocou ao meu lado um insultador petulante que me vexa em toda a parte. Que fiz eu ao snr. Jorge Coelho?
«Aceitei os seus galanteios com amor, e aceitei o seu abandono com paciencia. Que queria que eu fizesse para não ser insultada pelo seu amigo? Diga-me se é necessario pedir-lhe perdão de ter sido abandonada. Não hesitarei em fazel-o com tanto que v. exc.ª me garanta a certeza de que não serei injuriada nas praças e nos bailes. De v. exc.ª—eu muito respeitadora,Silvina de Mello.»
Jorge cahiu extenuado n'uma cadeira: a orla roixa das palpebras fez-se negra; apanharam-se-lhe as faces, como se a doença, em poucos minutos, progredisse mezes. D. Antonia vinha chamal-o, e encontrou-o assim, com a carta na mão tremula.
—Que tens, meu filho?—clamou ella ajoelhando diante d'elle, e abraçando-o.
—Nada, minha mãi, é fraqueza... Não chore, por piedade, não chore, que eu estou bem.
E, erguendo-se com vacillante esforço, foi para a mesa. Forcejou por comer; mas as lagrimas cahiam-lhe das faces no prato, e a violencia não conseguia desentalar-lhe a garganta.
—Que é isto?—disse o egresso.
—Foi uma carta...—respondeu D. Antonia.
—Não é nada, meu tio. Recebi uma carta que me fez mal. A impressão gasta-se, e eu d'aqui a pouco estou bom. Agora pedia licença para me erguer da mesa, e dar um passeio no jardim.
—Vai—disse o padre.
—Eu vou comtigo, meu filho—acudiu a mãi levantando-se.
—Não vai, mana; deixe-o ir sosinho.
Eram imperiosas as palavras do padre: D. Antonia sentou-se. Jorge desceu ao jardim, e foi sentar-se n'um banco de cortiça encostado a um maciço. Abriu a carta de Pires, que resava assim:
«A Providencia não é uma mentira. José Francisco Andraens apanhou uma indigestão de pombos, salame e salmão no baile do visconde, e está em risco de rebentar. Eu estou de atalaia a vêr quantos Jonas sahem d'aquelle bojo! O morgado de Santa Eufemia veiu dar-me a noticia, jubiloso, como quem espera empalmar Silvina, extincto o bruto. O qual bruto já se confessou, a vêr se a gente se persuade que existe uma alma n'aquellas cavernas de sebo!
Parte o correio.
Teu do intimo
L. Pires.»
«P. S.O linheiro das Hortas ainda não appareceu com a corda.»
Se a carta de Silvina fosse uma dorida invocação ao amor de Jorge, simulando razões e desculpas, ou accusando o silencio do desleal amante, que a despresara sem motivar o menospreso immerecido, é de presumir que o brioso moço nem respondesse á carta, nem se doesse dos hypocritas queixumes de uma caprichosa estouvada. Porém, o estilo, assim magoado como arrogante d'aquella carta, turvou de tal sorte a cabeça e o coração do academico, que já elle a si mesmo se accusava de indiscreto, de ingrato e de extremamente facil em acreditar o tio. E—o que é mais é—sentiu rancor áquelle leal amigo da Maya, que, por conta d'elle, se andava expondo no Porto a ser expulso de todas as casas!
Quantas idéas lhe occorreram todas advogavam a innocencia de Silvina. Absolvida e amada eram a mesma cousa. Agora já a esperança de ir vêl-a ao Porto lhe era um desafogo, e não sei mesmo se contentamento. O pobre moço, como nem sabia se quer contrafazer-se, denunciou nos exteriores de inquieto regosijo quanto a resolução do tio lhe era grata. A mãi, compondo a roupa no bahu, chorava sempre; os irmãos choravam ao pé d'elle, e elle fugia de todos para que o não vissem alegre.
O leitor é uma pessoa de juizo limado e occupações serias. Estou que não lê romances de ninguem, e muito menos os meus, que são escriptos em lingua portugueza e modelados em cousas de Portugal, onde é sabido que não ha imaginação que invente a novella, nem modos de vida que saiam bem no romance. D'onde vem que o romance portuguez, se não é copia do estrangeiro, e aborrecida inverosemelhança, orça por cousa peor, que é a semsaboria.
Eu tenho escripto alguns volumes de semsaborias: creio que são vinte e tantos. Entre estes, mergulharam de cachapuz no rio
do negro esquecimento e eterno somno
tres livros denominados: ONDE ESTà A FELICIDADE—UM HOMEM DE BRIOS—e a VINGANÇA.
N'estes tres romances figura um homem, ao qual eu nunca puz nome. Umas vezes chamei-lhe poeta, outras jornalista, outras litterato, e assim fui aguentando com embaraços da composição, mas venci a minha. Custava-me a falsificar o nome d'um homem que copiei com esmeros de rigorosa fidelidade; figurava-se-me irreverencia o que em si não era senão escrupulo banal. Ainda agora me deixo levar da criancice, e não acabo commigo dar um nome qualquer ao homem. Quer-me parecer que ha uns longes de poesia n'este segredo. Diga o leitor que é tolice, e saldemos assim as contas amigavelmente: eu dou-lhe a troco da injuria esta revelação da minha crendice, e guardo as chimeras como o homem de boa fé guarda o tôco de cera benta para se alumiar á hora da morte.
Pois é verdade. Aquelle poeta era o amigo de Guilherme do Amaral e de Augusta.
Espectros sombrios, memorias queridas e amargas da minha alma em infancia de illusões, passai um instante luminosos na escuridade d'esta recamara da sepultura, onde até a lampada da esperança se vai extinguindo na mão do anjo do conforto! Vinde a mim, corações amigos, cujas lagrimas eu vi, e contei uma a uma, quando apenas tinha a intuscepção da alma, predestinada ao vosso fel, para lhes avaliar o travo. Na vossa mortalha foi o melhor da minha vida, o crêr nas promessas do coração, nos levantados desejos do espirito que não caiam á terra sem se infamarem; foi comvosco a fé na religião da poesia, que era a minha fé unica, porque não havia crêr nem sentir em mim em que não estivesse Deus, que eu convidava, sem temor sacrilego, a gosar-se das delicias que eram d'elle, creações suas, umas sujas, outras empestadas pelas mãos dos homens! Comvosco foi o meu ultimo dia de oração, a minha ultima acção degraças, a palavra final da profissão de fé, que devia, a meu vêr, remontar-me ao céo, e que, ao revez das mais espirituaes theorias de Platão, de Socrates, de Jesus, e de todos os Messias da redempção das almas, deu commigo em baixo n'um golfão de lama, onde ha o ranger de dentes d'estas bestas feras, que até na lama sustentam o egoismo da sua propriedade!
Ó visões immorredouras, que me ensinastes o amor e o sentimento, e levastes comvosco o segredo de morrer antes do longo paroxismo do tedio da vida, vós bem vistes com que saudosa unção eu vos offertei dous livros e um ramo de perpetuas, que valiam mais que os livros, e menos que esta pagina em que bem vedes com que fervor me atrevo á prosa d'estes annos, á mofa d'estes industriaes, que me estão perguntando se a apostrophe ha-de ser muito comprida, para tomarem fôlego, e accenderem o seu charuto.
Pois accendam o seu charuto, e retirem-se as almas evocadas, e mais os romances, que não tem que vêr com elles o leitor, que tanto conheceu as almas, como se lhe dá dos romances.
Veiu isto a ponto de estar aqui já comnosco o amigo de Guilherme do Amaral e d'aquella Augusta por quem choram as flôres do Candal, e as almas desamparadas d'aquelles que... Lá ia já sahindo outra tirada de sentimento. É enguiço, que me ha-de retirar a protecção de muita gente boa, que não precisa de lêr um folhetim para convencer-se do seu direito de espriguiçar-se, e voltar a gazeta de costas, e calcular perspicuamente as relações economicas que podem dar-se entre a alta do cravo dito girofe e a baixa do cacau.
Ora ahi vai agora o conto direito. O antigo jornalista, amigo da defuncta baroneza de Amares, estava no Porto de visita em casa de Bernardo Joaquim Ferreira, ahi nos ultimos dias de Outubro de 1855.
D. Marianna, esposa do snr. Ferreira, e suas quatrofilhas, e dous meninos, e varias outras pessoas, estão sentadas em roda de uma grande mesa jogando o quino. O jornalista está sentado n'um sophá, conversando com o dono da casa, sobre cousas do Brazil, d'onde o primeiro tinha vindo depois de cinco annos de ausencia. A conversação foi interrompida pela entrada de uma filha do snr. Ferreira, que a mãi e irmãos receberam com muitas vozes de alegria, ás quaes ella respondeu dando um beijo na fronte da mãi, e outro nos labios das irmãs. Com a bem vinda entrou tambem o marido. O litterato, já de pé, deu dous passos, e disse á dama que entrára:
—Quero vêr se me conhece ainda, minha senhora.
—Se o conheço!—exclamou Rachel.—O mesmo que foi para o Brazil; o mesmo que era ha cinco annos... Não se admire da nenhuma surpreza com que lhe fallo porque eu já sabia que o vinha encontrar. A mãi, quando o senhor chegou, mandou-m'o dizer para a quinta, e deu-me sempre noticias suas. Agora pertence-me a mim perguntar-lhe se me acha muito mudada.
—Quando, ha cinco annos, me despedi de v. exc.ª—disse o poeta—se bem me recordo, tive a honra e o prazer de ser propheta, dizendo-lhe que a viria encontrar cinco, dez, ou vinte annos depois, bella como a deixava, minha senhora. Noto-lhe apenas uma differença sensivel.
—Qual?—perguntou D. Marianna com solicitude de mãi.
—Acho-a mais bella—respondeu o poeta.
Por entre os dizeres usuaes que vem sempre depois de um dito feliz como aquelle, ouviu-se a voz aspera do snr. Manoel Pereira, marido de Rachel, dizendo:
—Então, vamos a isto?—E escolhia cartões do quino.
Queria dizer na sua o snr. Manoel Pereira que bastava já de comprimentos, em que a formosura de suamulher era encarecida por um homem da antipathia d'elle.
As senhoras sentaram-se, e Rachel, obrigada, pela indicação do marido, ficou com as costas voltadas para o jornalista.
—Não vem jogar?—disse Rachel ao hospede.
—Vou, sim, minha senhora.
As damas deram-lhe lugar immediato a Rachel. Manoel Pereira estorcegou machinalmente um cartão entre os dedos convulsos, e fez-se escarlate, cravando os olhos no rosto descuidado de sua mulher.
O jornalista viu tudo isto, e riu-se para dentro.
Agora descreve-se Rachel; depois Manoel Pereira; por fim alguns traços geraes d'esta familia, e fechará o capitulo.
Rachel tem vinte e quatro annos. É encorpada, mas a robustez não desdiz da gentileza. Não tem attitude alguma de estudo, e parece esculptural em todas ellas. Nos mais communs movimentos ostenta graça, e garbo que vem de seu natural, e ninguem o dirá se a não tiver visto em toda a sua desaffectada singeleza no recesso das suas occupações caseiras. Quando Rachel está n'um baile... N'um baile foi que eu a vi a primeira vez. Era ella solteira, e teria quinze annos. Isto já lá vai ha quinze. Se eu me não lembrar do que ella era então, melhor me será despedir de mim esta bruta alma que nem para a saudade já serve. As minhas reminiscencias dão-me Rachel vestida de branco. Não lhe hei-de aqui chamar anjo, porque não foi essa a impressão. Era tudo magestade, tudo estatuario n'aquella criança; não a vi a descer do céo, onde os poetas teimam em ir buscar tudo que é excellente, como se o céo não fosse um puro congresso de espiritos que valem de certo lá muito mais do que pesam, mas que passariam desapercebidos nos nossos bailes, se não tivessem a esperteza de entrarem em corpos como o de Rachel. Eu quando a vi lembrou-mea Grecia, as artes, em requinte de pompas, a numerosa familia das Venus, todos esses marmores eternos, que hão-de sobreviver á mythologia dos anjos, dos archanjos e dos seraphins. Os olhos de Rachel... estou-os vendo; nem as franjas sedosas e longas das palpebras m'os escondem; poderiam as arcadas espessas e travadas do sobr'olho quebrar a luz d'aquelles olhos; mas nem assim! Como tu olhas, Rachel! Diz a antiguidade que na Scythia havia umas mulheres que matavam olhando se o rancor lhes fuzilava nas pupillas; porém tu que paixão tiravas da alma toda amor, para a lançares de ti como um incendio que te abrasaria, se eu, se todos, que te viam, não tomassem de joelhos um quinhão d'esse fogo! Que haverá alli de mysterios n'aquelles olhos, se o fluido electrico não basta a dizer o que é que vem de lá como corpo estranho que vos entra no seio, e vos não cabe na alma, e quer fugir ás ancias do coração que o aperta, e vos leva do amor ao transporte, do extasis ao phrenesi, do rir ébrio da felicidade ás lagrimas incessantes de noites desveladas! E, depois, porque não eram só os olhos o condão d'esta mulher? Diante de Deus todos somos iguaes! Na alma se quizerem, e o Creador, lá se avenha com os que o injuriam assim; mas que desigualdade diante do divino artista! Lembra-me que a um lado de Rachel estava uma menina de olhos vesgos; do outro lado uma senhora com um nariz impio; mais longe outra menina em torturas para esconder quatro dentes enclavinhados; além aquell'outra franzindo os labios, e exercitando uma laboriosa mechanica do sorriso para corrigir a natureza que lhe dera uma bocca limitrophe das orelhas. E ella, Rachel, toda primores, a estremecida creatura, com uma luz serena de céo n'aquella face em que se espelhava o seu Creador, o Deus que nos fez para a adorarmos, a rever-se n'ella! Abençoada sejas tu de todas as venturas, que tão perfeita és, tão cheia de tua belleza,tão digna dos thronos da terra, já que o Creador, o teu Pygmaleão, te não arrebatou para si! Onde está, ó Senhor Deus das maravilhas, o homem digno d'aquella obra tua, aqui posta entre nós que apenas temos thronos, imperios, talentos, epopeas, as riquezas da Asia, e o sangue das nossas veias para lhe offerecer! De que barro, ó mão divina, fizeste o homem que ha-de primeiro embriagar-se nos aromas que recende aquella virgem? Onde está o homem que...
O homem elle aqui está. É o snr. Manoel Pereira. Já quinou tres vezes. Feliz no jogo, infeliz no amor; é certo o proverbio... até com elle!
Manoel Pereira tem cincoenta e cinco annos! estatura mean, cabeça quadrilatera, e plana como um queijo do Além-Tejo desde o occipicio até á cisura do coronal. As arcadas zygomaticas (vejam um compendio de anatomia comparada) entestam com o rebordo esponjoso dos olhos arrastando cada uma para o seu lado a venta correspondente que termina em fórma de fava. O nariz não tem canas; parece que é formado de parafusos. Começa do centro da testa por uma verruga, transforma-se em lobinho, ladea em pequenos abscessos escarlates, e pega no beiço superior, repuxando por elle de modo que o dono não póde exercitar as funcções olfactorias sem enviezar o beiço. Este nariz ha-de ser lithographado e distribuido aos assignantes, concluido o romance. O nariz é o homem. Quem o vir organisa o complexo de Manoel Pereira, como Cuvier recompunha o reptil iguanodo, e o megaterio.
Temos á roda da mesa a snr.ª D. Marianna e quatro filhas. É de notar em Rachel o typo perfeito d'aquella familia. A mãi, senhora de quarenta annos, é bonita ainda. Se a perfeição das raças é admissivel, nunca mais sensivel foi a gradação do aperfeiçoamento como entre D. Marianna e Rachel. Das outras filhas, uma é formosa, se bem que já ferida da tisica, que d'ahi a mezesa levara para o lado de uma sua irmã que a mesma enfermidade matou, quando lhe sorriam duas primaveras, a das flôres, e a dos prazeres da vida. Outra é uma linda criança de doze annos, com os olhos de Rachel. A que porfia em belleza desvantajosamente com a mais bella é já casada, e tem vinte annos. Ha uma outra de aspecto vulgar, posto que o não pareça entre outras que não sejam suas irmãs.
Bernardo Joaquim Ferreira, o pai d'estas lindas meninas, tem uma agradavel physionomia de homem de cincoenta annos, e maneiras polidas, sem embargo do trafego commercial em que labuta desde rapaz. Revela a esperteza ordinaria na sua classe, temperada pelo uso da boa sociedade em que desbravou as rudezas congeniaes, e as adquiridas nos seus primeiros annos.
Ãcerca d'esta familia, outras miudezas seriam intempestivas agora.
Saudemos com lagrimas a entrada de Rachel n'esta historia, que principia desde hoje a tomar as proporções d'um escandalo monumental.
—Não sabes quem hoje me escreveu?—disse D. Marianna a Rachel, terminada a partida do quino?
—A minha Antoninha do convento.
—Sim? que novas lhe dá ella do filho? A mãi disse-me que a pobre senhora vivia muito consternada com a paixão do rapaz pela tal Silvina.
—Segundo me ella diz, continuou D. Marianna, o pobre Jorge está enfeitiçado, e cuida ella que a maneira de o desenguiçar é mandal-o para aqui, a fim de elle, á vista do comportamento de Silvina, se desenganar. Acho esquisito o remedio.
—O remedio é eficacissimo, snr.ª D. Marianna—disse o litterato.—O que a mim me espanta é ser uma senhora quem o receita. O fim da sua amiga é fazercom que o filho se sinta aviltado por amor de uma mulher ridicula. O amor rompe todos os tropeços, transige com muitos defeitos e mesmo vicios da pessoa ou... cousa amada; mas da mulher escarnecida é que não ha cegueira que o aproxime.
—Conhece a tal Silvina de Mello?—disse Rachel.
—Já a encontrei em algumas partidas na Foz, minha senhora.
—Que idéa fez d'ella? A sua apreciação deve chegar-se muito á verdade.
—Pareceu-me, respondeu o poeta, que era galante, e até mesmo esperta. Ouvi-a declamar acrimoniosamente contra uns folhetins que denominaFelizardasas senhoras provincianas, e pasmei da imprudencia com que desprimorou as damas portuenses, chacoteando-as por um lado que é justamente, a meu vêr, o mais vulneravel da fidalga do Minho...
—Qual é?—interrompeu Rachel com vivacidade. O jornalista, reconhecendo a inconveniencia da resposta ajustada, fez, como por disfarce, esta pergunta:
—Não é certo estar tractado o casamento da tal senhora com um commendador fulano de tal Andraens?
—Assim dizem—respondeu D. Marianna—pelo menos cuido que...
—Parece-me que não é anno de fortuna para ella... atalhou o snr. Manoel Pereira, coçando a verruga media da aza esquerda do seu nariz.
—Por que?—disse Rachel olhando de través o marido.
—Por que o meu amigo commendador, desde que foi o baile do visconde dos Lagares, nunca mais se levantou, e vai cada vez a peor. O homem já soffria molestia interior, e comeu tanto á ceia, que esteve a rebentar-lhe a tripa... Ainda ha quem queira bailes!... Se elle estivesse em sua casa...
Rachel, prevendo que seu marido aproveitava o ensejo para uma enfadosa e desconchavada diatribe contra os bailes, cortou-lhe logo o fôlego comprido das tolices com esta fina ironia:
—Nem toda a gente leva aos bailes as tripas dos teus amigos... Com que então—continuou ella, voltando-se para o jornalista—o amor não será capaz de vencer a indigestão do noivo?
—Segundo ouço ao snr. Manoel Pereira—respondeu o litterato em tom lastimoso—a gentil menina está em risco de vêr o coração, que tão caro lhe era, romper-se, batido pelas explosões do estomago que rebenta, deixando a seu dono a gloria de morrer como Tito.
Rachel e uma das irmãs sorriam; Manoel Pereira desconfiou do riso da mulher, e disse mal encarado, com o nariz já roixo:
—Se elle quizesse mulher tão bonita e mais rica que ella, não lhe faltavam por ahi ás duzias.
—Ninguem contesta o dito de v. s.ª—redarguiu o escriptor.
—Mas o senhor parece que estava caçoando com o meu amigo...—tornou Manoel Pereira.
—É injusto o cavalheiro. Eu se tivesse quatro irmãs dar-me-ia por ditoso se o seu amigo quizesse casar com todas quatro, e lamento não saber o segredo de um tal Lucius que Plinio viu transformar-se em mulher; por que se me eu podesse felizmente mudar em mulher, havia de galantear o amigo de v. s.ª, e morrer de amores por elle se uma indigestão rival m'o arrebatasse.
Rachel soltou uma risada contagiosa: riram todos, salvo Manoel Pereira, cujo nariz reluzia ao reflexo da luz, em differentes côres desde o açafrão até ao talo da couve lombarda.
O jornalista continuou, fallando para D. Marianna:
—Tive tambem occasião de conhecer no hotel daAguia d'Ouro o filho da amiga de v. exc.ª Fallei com elle, e fez-me bem o perfume d'aquelle coração em flôr. Que candura, que adoravel innocencia a dos vinte annos de Jorge... creio que se chama Jorge! E, ao mesmo tempo, que singularissimo typo de rapaz eu conheci com elle, e todos os dias encontro por ahi atraz de uma prima de Silvina, e de um tal Guimarães, linheiro, ou pregueiro, ou cousa que o valha... Que homem se fará d'alli, se o céo o não leva d'este mundo e d'esta sociedade que tanto precisa de um cenaculo d'aquelles apostolos!... V. exc.asde certo não conhecem Leonardo Pires de Albuquerque, fidalgo da Maya, descendente de D. Martim Pires da Maya, que gerou D. Pedro Pires, que gerou D. frei Martim Martins, mestre da ordem do Templo no seculo XIII? De certo não conhecem...
—Nem é preciso conhecerem—exclamou Manoel Pereira—É um patife, que concorreu muito para a doença do meu amigo Andraens!
—Eu não pensava—replicou o poeta—que Leonardo Pires era um alimento indigesto!... Se bem me recordo, v. s.ª disse ahi que a enfermidade do snr. Andraens era uma indigestão!
—Como de facto; mas, pelos modos, o tal brejeiro insultou-o no baile, o homem atrigou-se, e sahiu cá para fóra afflicto, e nunca mais foi bom.
—Não sabia isso; apenas me disseram que elle recommendára ao snr. Andraens que não comesse tanto; e quer-me parecer que este conselho, longe de ser insultuoso, tendia a prevenir a indigestão fatal que se deu.
—Deixemo-nos de contos...—instou o marido de Rachel.
O sorriso d'esta era já forçado por vêr que o jornalista não tinha a cortez caridade de conter as ironias que Manoel Pereira não percebia.
—E D. Antonia que diz, mãi?—interrompeu Rachel.
—Diz que Jorge Coelho vem para esta casa.
—Para esta casa?!—acudiu Manoel Pereira abrindo a bocca, e arregaçando o nariz até á testa.
—Não tenho n'isso duvida nenhuma—respondeu Bernardo Joaquim Ferreira, que tinha sahido e voltára momentos antes.—E dou-te parte, Marianna, que Jorge já está na hospedaria, e não sei se será dever meu ir já buscal-o esta noite. Aqui tenho um bilhete d'elle, pedindo-me que o desculpe de não vir directamente aqui.
—Como ainda é cedo, disse D. Marianna, podes ir buscal-o. O quarto está preparado. A mãi descrevendo n'um estado tal de amargura que eu tenho pena de o deixar sosinho na hospedaria.
—Mas ha um inconveniente—redarguiu o snr. Bernardo.—Tenho gente no escriptorio á minha espera para liquidar umas contas, e não posso deixal-as para ámanhã, que os negociantes são da provincia, e partem de madrugada. Se o snr. Pereira tivesse a bondade de ir á Aguia d'Ouro...
—Homem, eu a fallar-lhe a verdade—disse Manoel Pereira—tenho aqui n'este pé direito uns callos que me não deixam dar passada; se não da melhor vontade; mas, sempre lhe direi o que penso respeito á vinda d'elle para aqui. Eu não sei o que me parece metter n'uma casa onde ha meninas novas um peralvilho que não gosa dos melhores creditos, e que de mais a mais é amigo do tal Pires, que ha-de cá vir onde a elle, e o mundo pega logo a fallar pr'aqui, pr'acolá, e ás duas por tres... Em fim, meu sogro lá sabe o que faz...
D. Marianna replicou com vehemencia:
—O snr. Pereira não ouviu dizer aqui a este senhor que o filho da minha amiga era um moço muito digno?!
—Todos elles são muito bons, mas em minha casaé que elles não põem o pé.—Disse Manoel Pereira, e fez menção de procurar o chapéo.
Rachel relanceou sobre o marido um olhar severo. O escriptor fazia figuras geometricas com as marcas do quino. As meninas olhavam-se entre si com sorrisos rebeldes á prudencia. O bom Ferreira, apesar da sua superioridade relativa de sisudeza e bom senso, não deixou de vacillar ao choque das reflexões do genro. D. Marianna, porém, voltando-se com energia para o jornalista, disse-lhe:
—O senhor faz-me um favor dos que se pedem sem embaraço a um amigo antigo?
—Faça-me a honra de mandar-me, minha senhora.
—Tem a bondade de ir á hospedaria, e acompanhar o filho da minha amiga, o filho d'uma senhora a quem eu devi na minha mocidade o que não posso pagar-lhe d'outro modo?
O jornalista ergueu-se, e disse, tomando o chapéo:
—Se elle estiver doente, ou na cama fatigado, mandarei um bilhete para que o não esperem. Até já, ou muito boas noites, minhas senhoras.
Sahira o jornalista, e D. Marianna enxugando lagrimas que não tinham na apparencia muito cabimento alli, fallou assim:
—Eu nunca disse a minhas filhas os favores que devo á mãi do meu hospede; escutem-me, e depois dirão se o filho de tal anjo não será digno de ser recebido como seu irmão. Eu fiquei orphã e pobre aos onze annos. Entrei nas ursulinas de Braga, entregue á caridade da prelada, que me achou com habilitações para ser uma simples criada grave de convento. D. Antonia de Sepulveda tinha tambem entrado, n'essa occasião, e era rica. Tratei-a com respeito, e ella a mim com familiaridade, para chegar ao fim de me offerecer metade da sua mesada, e habilitar-me a ser senhora entre as outras, que me olhavam com desestima, e com a falsa piedade dasricaças do convento. Aceitei os favores da minha amiga, e tão suave era o dever-lh'os, que nunca me julguei devedora, se não depois que vim a esta sociedade conhecer o valor dos beneficios que recebi de Antonia. Vivi cinco annos á sombra da generosidade d'ella: prendei-me á sua custa, instrui-me com ella d'essa apoucada educação que nos davam no convento; e já depois que a minha amiga sahiu para casar obedecendo ás ordens de seus paes, continuei a receber as mezadas e os presentes que ella recebia. Casei tambem passado um anno, fui feliz, enriqueci, presenteei-a, mas a cada lembrança de amiga que lhe eu mandava, respondia ella com mais valiosos mimos da sua casa. Penso ha vinte e quatro annos no modo de ser util á minha querida Antonia; a Providencia depara-me agora occasião de velar as commodidades do filho d'ella. Haja ahi uma pessoa de boa fé a dizer-me que devia ser outro o meu procedimento...
—Ninguem se atreve a tanto.—disse Rachel com enfado.—Eu, se minha mãi, por desgraça nossa, não existisse, levaria para minha casa o filho da nossa amiga, da protectora de nossa mãi. Se eu tivesse um marido que me quizesse roubar o prazer da gratidão em tão pequeno serviço, amaldiçoaria a hora em que meus paes me subjugaram a tal homem...
—Não te irrites assim, Rachel...—disse Bernardo Ferreira, ferido pelas palavras da filha, que lhe apontavam direitas á consciencia, onde as fibras do remorso doiam sempre.
Entretanto, Manoel Pereira, franzindo o nariz, dilatava as ventas hediondas, por onde vaporava a zanga.
O incidente, passados minutos, foi cortado por um bilhete do escriptor, dizendo que Jorge Coelho pedia desculpa, agradecia extremamente a delicadeza, e convalescia da fadiga para no dia seguinte cumprir as ordens de sua mãi.
O jornalista encontrou Jorge Coelho na cama, e Leonardo Pires sentado á banca. No semblante de ambos eram visiveis os signaes da altercação, que fôra interrompida pela chegada do terceiro. O filho de D. Antonia estava escarlate de febre, e anciado; o da Maya, se bem que de má catadura, esboçava distrahidamente, a lapis, uns perfis de narizes caprichosos. Jorge conheceu o litterato, e maravilhou-se da visita; Leonardo Pires, mais familiarisado com o sujeito, ergueu-se, abraçou-o, e exclamou:
—Aqui está o teu medico, Jorge! o teu Christo, Lazaro!
—Temosecce homo?! Dar-se-ha caso que o snr. Pires—disse o jornalista sorrindo—me prepare algumcalvario?... Como está o snr. Jorge Coelho? O aspecto denota inquietação...
—Não é inquietação;—atalhou Pires—é a sina maldita d'este desgraçado que nos tortura a ambos...
—Todos temos o nosso demonio familliar, snr. Pires—tornou o escriptor—Socrates queixava-se do seu, e eram nada menos de dous os demonios do divino philosopho, sendo o peor dos dous uma tal Xantippa... Querem vêr que o snr. Jorge é energumeno d'alguma Xantippa ideal, que... (O jornalista escreveu, e entregou a um criado o bilhete que foi recebido em casa de D. Marianna). Jorge entretanto, sorrindo contrafeito, respondia:
—Não, senhor. Eu sou apenas victima das loucuras do meu condiscipulo.
—Ó cavalheiro—clamou Pires irritado—diga ahi a esse ingrato quem é Silvina de Mello. Não se trata aqui de desfolhar lindas chimeras, e matar illusões queridas. A paixão de Jorge é uma nodoa que eu quiz delir-lhe do coração, á custa mesmo do meu descredito e abominação n'esta sociedade devassa. Tenha vossê a franqueza de dizer a esta criança o que eu tenho sido, já que eu tive a boa sorte de lhe referir ao senhor as minhas acções e palavras.
O romancista achou de riso a gravidade da appellação de Pires para o seu testemunho; mas perseverou-a na seriedade que o proposito pedia, e disse:
—O snr. Leonardo Pires tem dado provas exuberantes de amisade ao snr. Coelho, verberando com prosperos sarcasmos uma menina em tudo respeitavel, menos na sua virtude.
—É de mais!—atalhou Jorge—Póde ser que Silvina mereça censura como inconstante, sem com isso...
—Deixar de ser virtuosa?...—interrompeu o poeta...
—Justamente.
—Não julga bem, snr. Coelho. A deshonestidade não póde ser virtude. A mulher que enfeira o coração, e o põe á concurrencia, mirando ás vantagens do pedido, poderá ser uma sagaz professora de economia politica applicada ás mercadorias do coração, mas virtuosa é que ella de certo não é. Para mim tenho que a virtude póde coexistir com a miseria da mulher perdida que não tem a hypocrisia de expor o coração á venda; porém, quero eu que não prostituamos a palavra, que é santa, cedendo-a á que cuida cobrir as suas ulceras com o amicto de virgem. A snr.ª D. Silvina de Mello, que eu vim, depois de cinco annos de ausencia, encontrar occupando a vagatura d'outras aventureiras que eu cá deixei, é uma senhora aleijada.
—Ainda mais essa!—atalhou Pires—Eu nunca dei pelo aleijão de Silvina!
—Aleijada de espirito, quero eu dizer, snr. Albuquerque. Que outro nome se ha-de dar á lamentavel enfermidade moral d'uma menina que desperta das suas illusões de infancia, esfrega os olhos, e começa a procurar em redor de si um homem com alguns saccos de dinheiro? Ha ahi nada mais torpe, mais nauseabundo na face da terra! A mulher que assim faz tem alluido a sua virtude pela base, que é a vergonha. D'ahi ávante o pudor é uma mentira, as côres que sahem ao rosto são irrupções de sangue como as empigens, é um mechanismo da materia que o observador encontra mesmo nos prostibulos. Que é o que bate no peito d'essa mulher, desde que a ancia do dinheiro fez d'ella um estimulo de sensações? Quando ella fallar nos affectos da sua alma, qual é de nós o que voluntariamente se immolará ao escarneo de sua propria consciencia, respondendo ás Silvinas com expressões de candura e boa fé? O snr. Jorge Coelho tem a sinceridade de me dizer se me entende?
—Entendo; mas não creio que Silvina seja a mulher que o senhor qualifica.
—Eu não a qualifiquei ainda: o que eu quiz foi a certeza de que o meu joven amigo me entendeu a theoria: agora pertence á pratica o qualificar Silvina. Está o snr. Jorge Coelho no Porto. Fez bem em vir. Isto é uma questão de tempo. Faça as suas experiencias desde ámanhã em diante; mas tenha a condescendencia de me ir communicando os seus descobrimentos. Entretanto, restitua ao snr. Leonardo Pires o bom conceito em que o tinha, que estes amigos são raros. Outro objecto. A minha commissão não era vir discutir Silvina: Eu fui aqui enviado pela snr.ª D. Marianna Ferreira e seu marido a fim de conduzir o snr. Jorge a casa d'elles, onde foi recebida uma carta de sua mãi.
—Oh! bravo!—exclamou Pires.—Temos homem!
—Não atino com o seu enthusiasmo, snr. Albuquerque!—disse o escriptor.
—Que mulheres, que mulheres tu vaes vêr, ó Jorge!—continuou bracejando o da Maya.—As Ferreiras! a nata, a quinta essencia das mulheres bellas do Porto! E a Rachel! ai! aquella Rachel, casada com o nariz mais indecente que fez o acaso estupido, a quem o Creador entregou a repartição dos narizes! A Rachel! a mulher dos olhos de antilopa! as mais bellas carnes que ainda vestiram uma alma, se é que uma mulher d'aquellas precisa de ter alma para ser perfeita! Ó Jorge, tu estás curado! Quando vires Rachel, sentirás um coração novo, um coração caldeado nas fragoas dos olhos d'ella! Eu vi-a uma vez, e creio que se a visse segunda...
—Iria á missa dos Clerigos vêl-a terceira, não é assim?—interrompeu o poeta, rindo, com Jorge, dos transportes sinceros de Pires.—Rachel é uma bella senhora, e uma nobilissima alma—continuou o escriptor gravemente.
—Mas, segundo a sua theoria—atalhou de golpe Jorge Coelho—essa Rachel é uma das muitas aleijadasque por ahi ha. Não a conheço; mas sei que ella casou com um brazileiro hediondo e rico.
—Aquelle nariz!—disse Pires.—Tambem me quer parecer que a mulher pouco vale na alma, quando contemplo o nariz de Manoel Pereira!
—E eu creio que a sociedade—tornou Jorge—não desconsidera Rachel porque ella escolheu um homem rico, podendo ter aceitado a desinteressada pobresa e o coração opulento de muitos rapazes que a cortejavam. Já se vê que a opulencia d'um sordido não desluz aos olhos da sociedade a virtude d'uma senhora que se deu por ella.
—São contos largos...—disse o romancista.—Custa-me que o cavalheiro confunda Rachel com Silvina. Creia que offende uma martyr, snr. Coelho, Rachel supporta o supplicio de Mezencio, com a resignação que santifica a baixeza, se ella tivesse existido, e as culpas futuras, se ellas podem existir. Não levo em paciencia o aggravo feito á pobre menina. Vou contar-lhe em quinze minutos a historia do casamento de Rachel. Bernardo Joaquim Ferreira conhece o valor do dinheiro, e duvida da existencia d'umas paixões, que podem vingar e prosperar sem dinheiro.
Ãs filhas chama-lhe suas, e não exclue d'esta propriedade o coração. O seu pensamento fixo d'elle é casar ricas as filhas. Rachel era querida de alguns amigos meus, espiritos dignos d'ella, que lhe teriam dado a ventura, se os encontros predestinados dos espiritos não fossem o mentiroso poetar de infelizes que nunca se encontram. Um d'esses amigos, fui procural-o ao hospital de alienados, quando desembarquei ha cinco mezes em Lisboa. Conheceu-me ainda, e as primeiras palavras que me disse foram: «Morreu Rachel! A minha alma foi com ella.» Pobre moço! bem sentia elle que já não tinha alma! Depois de dous annos de loucura, por ignorados motivos, esquecido de tudo que fôra, tinha umasó reminiscencia, como se todo o seu passado se concentrasse n'ella... Vamos ao ponto, e desculpem-me d'estas intercadencias melancolicas. Os senhores não sabem ainda o que é olhar para o passado aos trinta e cinco annos, e vêr uma longa fila de espectros uns gotejando sangue, e outros lagrimas...
O poeta dissera isto tão do intimo amargurado, que nem Leonardo Pires deixou de o escutar com magoa. Jorge, já dorido de suas tristezas, não era para espantar que desse em lagrimas uma prova de sympathia á dôr alheia.
Proseguiu o romancista:
Ha seis annos eram dous os homens indicados para maridos de Rachel. Quem os indicava, e negociava com ardis, e negaças ignobis, sobre serem immoraes, era o pai. Rachel detestava-os ambos. Manoel Pereira era um; o outro era brazileiro tambem, menos repulsivo, melhor alma talvez, e amigo do primeiro. Desde que se toparam a amar a mesma mulher, odiaram-se, intrigaram-se e depreciaram mutuamente os seus haveres, porque bem sabiam que Ferreira tinha a filha em almoeda. O primeiro que a pediu foi Manoel Pereira, abonando-se com cem contos. O segundo não dizia o seu valor. Foi o primeiro preferido, sem ser consultada a victima.
N'este tempo, Manoel Pereira entra em transacções com o governo, e perde cincoenta contos. Ferreira, sabedor da perda, acolhe de novo o outro concurrente, e cede-lhe a filha. Este carecia de ir liquidar o seu negocio ao Rio de Janeiro. Mas, como a liquidação se detivesse mais d'um anno, Manoel Pereira aventura-se em especulações mercantis, estas prosperam-lhe, restaura-se das perdas, e rehabilita-se para esposar Rachel. O negociante, que sabia o anexim do passaro na mão, receia que o outro não volte, e quebra pela terceira vez o contracto. Rachel ignorava estas asquerosas mercadorias.Annuncia-lhe o pai que ella é esposa promettida de Manoel Pereira. A pobre menina quer defender-se primeiro com razões, depois com lagrimas. Tudo lhe é rebatido com indifferença, ou com palavras violentas de soberania paternal. Desde o dia em que se fizera definitivamente a operação commercial dos quinze annos d'um anjo formoso, como a esperança d'uma alma pura, com o homem de cincoenta annos, sem o desconto de alguma feição boa do corpo ou da alma, Rachel era perseguida pelo seu porco demonio de todas as horas. Se acontecia Manoel Pereira estar na sala, e a lagrimosa criança se demorava no seu quarto para encurtar as horas do supplicio, ia lá o pai buscal-a; e se as grosserias a não compelliam a aligeirar o passo, não era raro ameaçal-a de pancadas, e mesmo fazer executiva a paternal justiça. Quantas vezes Rachel entrou na sala, com as faces escarlates das bofetadas que o pai lhe dava como incentivo para saber aproveitar-se da fortuna caprichosa! Era esta a lastimosa situação de Rachel quando eu fui para o Brazil. Recordo todas as palavras que a formosa criança me disse a ultima vez que fallamos.—Tenha animo para a obediencia—disse-lhe eu—Bem póde ser que Deus a remunere d'essa virtude com imprevistas felicidades.
—Eu dou por terminada a minha vida—respondeu-me Rachel com os olhos enxutos—Tenho quinze annos, e ha tres mezes que olho para a minha existencia, como se ella fosse já longa de trabalhos. Os paroxismos hão-de ser rapidos. Sei que nem eu nem alguma de minhas irmãs podemos sobreviver á mocidade. Estamos todas feridas da mesma morte. D'aqui a pouco lançarei o coração em golfadas de sangue, e meu pai não terá remorsos de ter cooperado para a minha morte, por que elle já viu dous irmãos meus cahirem no verdor dos annos na sepultura onde cahiremos todos. Vá, que não me torna a vêr...
Eu sahi de ao pé de Rachel, com o coração opprimido, mas contente de mim porque chorava as primeiras lagrimas, depois d'outras que eu julguei serem as ultimas... Rachel casou. Não morreu. Mentiu-lhe o anjo que fallava áquella sua innocentissima alma. Vive. É uma agonia sem nome... O quarto de hora já lá vai. Agora, meus amigos, não venha mais o nome de Silvina como um escarro á face de Rachel. Até ámanhã, snr. Jorge. Depois d'estas reminiscencias, eu tenho um singular coração que se brutifica, e uma alma que detesta a sociedade. Boas noites.
Cuidava o leitor que estava livre do sujo José Francisco Andraens; do estouvado Leonardo Pires; do nariz de Manoel Pereira; da erudição mythologica de fr. Antonio; do mettediço jornalista; da fidalga de Margaride, adeleira fraudulenta do seu roto coração; da Francisquinha da Cunha, promettida esposa do linheiro das Hortas; do morgado de Santa Eufemia, rival do Andraens; do Egas de Encerra-bodes, illustrissimo sangue neogothico; de Jorge Coelho, alma pura e candida e apaixonada até enfastiar o bom siso de quem nos atura, a elle e a mim; e, finalmente, de Rachel.
Ai! não me digam que estavam enfastiados de Rachel!... As lindas mulheres só enfastiam os seus maridos, e desagradam ás mulheres feias. Parece que a propriamoral, severa como a directora d'um collegio, se compraz ás vezes de as vêr louquinhas, se o ellas são. A belleza é o poder moderador dos delictos do coração. Uns lindos olhos são a mais commovente rhetorica em defeza das culpas que a intolerancia lhes assaca. Um braço gentil, que descuidosamente se denuncia nu, abala o animo do juiz austero com mais vehemencia que a mimica de Hortencio e Mirabeau. O sorriso discreto, se não é bem despreso nem expressão de orgulho da culpa, abranda e enternece mais o peito abroquelado de indifferença, que a lacrimosa peroração dos que vingam apertar com os cilicios da piedade o coração de um jury.
Mas a que proposito cahe esta especie de defeza de Rachel?! Peccou ella, por ventura? Não, minhas senhoras. Rachel tem um só peccado de fraqueza; foi optar pelo marido, entre o marido e o suicidio. Desceu ao plebeismo das outras, que lhe haviam dado o exemplo da renuncia de si proprias, podendo afidalgar-se e ser unica pelo heroismo de se entregar á justiça de Deus, fugindo ás injustiças do mundo. A morte moral, que a sociedade inflige ás malfadadas, que a cupidez d'um pai acorrentou a um marido abominavel, se o coração, em phrenesis rompeu o grilhão, é, mais dolorosa que o suicidio tantas vezes, quantos são os repellões que a sociedade lhes dá até as engolfar no abysmo sem sahida.
Querem dizer-me que Rachel, se tivesse aceitado o beijo da morte, e fugisse ao beijo marital de Manoel Pereira..., (um beijo de Manoel Pereira, com aquelle nariz na vanguarda... santo Deus!) ninguem se lembraria do seu heroismo a estas horas? Dizem mais que o desdem da gente séria, e a censura da gente religiosa, e a irrisão da gente parvoa, e o contentamento de outra que Manoel Pereira iria escolher, entre mil, n'esta grande feira, fariam do suicidio de Rachel assumpto de reprovação e de affronta á sua exquisitice? Tambem openso assim. Estou que ninguem já hoje se lembraria do pobre anjo que fôra queixar-se a Deus de o terem querido despir de suas pompas, de suas flôres, de sua aureola, de sua virginal pureza, para o prostituirem aos regalos d'um satyro revelho, que perdeu alma e coração no grangeio da riqueza, com a qual vem mercar um recreio para a sensação do corpo, abrazeado na vida ociosa! Ninguem se lembraria da nobre alma, que preferira deixar as graças do corpo aos vermes, para o não dar ao cêvo de uma besta-fera. Assim é; porém, se uma vez Rachel voltar o rosto de enojada do cadaver a que a prenderam; se a força, que o coração lhe fizer, tiver comsigo a força do exemplo bem succedido e quisto da sociedade; se o seu fragil batel de virtude, forçada e violenta, se desconjuntar e abrir, rebatido pela tempestade das paixões; se em fim, aquella honra, a constrangimento, e não de vontade aceite, se fôr a pique, a sociedade que dirá?
A sociedade—replica o leitor que a conhece e se conhece—a sociedade faz-se desentendida por cortezania; por conveniencia; porque sabe a historia do olho com trave, que se abria espantado de vêr uma aresta no olho alheio. A sociedade fez uma convenção tacita, de que é fiadora a civilisação. Em substancia, este contracto social dá os seguintes resultados:
1.º Respeitar a liberdade do coração humano, sem prejuizo do soalheiro das salas, em que é preciso entreter o tempo, e fingir a gente que não conhece senão as pessoas que estão fóra das salas.
2.º Fingir, outro sim, a gente que está convencido da tolice dos outros, para que os outros nos tenham em conta de boçaes de boa fé, e não de espertos sem pudor. Dá-se um exemplo em hypothese: tal marido sabe que o mundo o lastima ou moteja; mas como a lastima e a irrisão cauterisam, sem curar, a chaga do vilipendio, o lazaro finge-se de optima saude, e aproveita occasiãode gemer pela molestia do seu amigo, gafado da mesma lepra. Estes dous homens, se se topam, e fallam da corrupção social, voltam as costas a rir um do outro, e vão cada qual por seu lado, espalhando a risada contagiosa.
3.º Não perdoar o que se chama «escandalo». Escandalo é não ter a sagacidade da hypocrisia, e o despejo de injuriar o senso publico, tratando-o de nescio. Escandalo é tomar a serio as brincadeiras do coração, e vir dar alguem á sociedade uma prova de que despresa o contracto social. Escandalo é cahir da prostituição legal á honra do coração, que cuida ennobrecer-se e regenerar-se; victimando o nome, o estado, e o que a inveja chama fortuna, ao goso de conhecer a liberdade na miseria. Escandalo, a final, o escandalo maximo e abominavel e imperdoavel é a mesma miseria.
A sociedade sabe que o crime é um dos elementos da ordem das cousas, e julga-o um mal necessario, sem o qual não haveria bem-aventurança nem inferno, nem anjos, nem demonios, e Deus seria inutil por não ter que fazer, visto que os theologos lhe não attribuem occupação que não seja julgar, premiar, condemnar, e perdoar, segundo lhe pedem, ou conforme a sua espontanea misericordia quer. Ora, sem o crime, este complicadissimo funccionalismo, cujo presidente é o Creador do céo e da terra, do mar e do sol, da avesinha que regorgeia nas moitas, e do leão que atrôa os desertos, do homem como Alexandre e Napoleão e do homem como José Francisco Andraens, e Manoel Pereira... dizia eu... eu! eu não dizia nada: quem dizia que o crime é necessario era o jornalista, amigo de Guilherme do Amaral, conversando na «Aguia d'Ouro» com Jorge Coelho, alguns dias depois do encontro em que os vimos no capitulo ultimo da primeira parte d'estas biographias.
Vamos agora á historia.
Achou Jorge em casa de D. Marianna Ferreira o seu quarto e sala adornados com muito aceio e selecção. Melhor que isto, era o gosto de se vêr acolhido sem estranhesa nem demasias de ceremonia. Os filhos e filhas de D. Marianna, logo ao segundo dia, o tinham como pessoa da familia, e porfiavam em divertil-o d'aquelle geito de tristeza, que era natural, e das abstracções penosas, que tinham a sua razão de ser na dôr do coração.
D. Marianna, senhora algum tanto despreoccupada do artificio, que tão preciso é, chamado delicadeza, logo que Jorge lhe deu uma aberta, fallou na paixão, que o seu hospede tinha por Silvina, e nos desgostos, nascidos d'esse louco amor, para a sua querida Antonia.
D. Marianna, em termos desabridos, disse de Silvina o que era notorio, e talvez lhe exagerasse os defeitos.
Jorge escutou-a respeitosamente, e ao mesmo tempo admirou-se de ouvil-a assim fallar na presença de suas filhas, que todas estavam presentes, salvo Rachel, a quem elle não tinha ainda visto.
Lembrado está o leitor de ter sahido Manoel Pereira zangado de casa de sua sogra, por que a maioria lhe rejeitára o parecer de não ser recebido Jorge em casa d'aquella. Como Rachel sahisse então da sua paciente annuencia aos votos irracionaes do marido, este, mal afeito a ser contradictado, protestou convencer a mulher e a sogra de que não queria relações com tal sujeito.
No dia seguinte, ao abrir da manhã, mandou preparar alguns bahus, entrou n'uma carruagem com Rachel, e foi conduzil-a a uma quinta, seis leguas distante do Porto, nas immediações de Barcellos. Quizera a submissa senhora despedir-se de sua familia; mas Manoel Pereira, franzindo as verrugas do nariz, e enviezando o beiço na sua ordinaria expressão de zanga, atalhou as intenções da saudosa Rachel, dizendo que a mulher casadanão tinha familia senão seu marido. E Rachel, fitando os olhos coruscantes de raiva no nariz do esposo, disse com o fel do coração nos labios, que sorriam sardonicamente:
—Deus te livre que eu alguma hora me esqueça de que tenho uma familia, que não é meu marido... Se lhe eu perder o respeito a ella, se os estimulos de minha exemplar mãi me faltarem, tu verás então que eu não tenho outra familia.
O marido, arregaçando os musculos businadores, e as azas nasaes com elles, regougou:
—Põe lá essas doutorices em miudos, que eu não te entendo.
—Se me tu entendesses—redarguiu Rachel—nunca me forçarias a fallar assim á tua ignorancia.
Manoel Pereira cascalhou uma risada de velhaco, e coçou-se atraz da orelha esquerda.
Não se trocaram palavra no decurso de seis leguas. Rachel ia linda pelo escarlate da sua colera; e Manoel Pereira bufava, quando não cabeceava de somno jogando contra o hombro de sua mulher.
A gentil senhora, a espaços, encarava no marido, e dizia entre si: «Que destino o meu! Este é o homem, que me deram para a vida! Querem que seja d'este homem o meu coração! Ter uma só existencia, e curta como hade ser a minha, e hei-de sacrifical-a toda a esta cousa que vale duzentos contos de réis!
«Que aproveitou meu pai d'este monstruoso enlace? Que lucrou este homem em se aviltar para me chamar sua, se elle mesmo conhece que lhe obedeço abominando-o? Mas eu não devia soffrer, porque Deus bem sabe que fui levada de rastos, e que me perdi por ser boa filha, e me tenho atormentado para ser uma victima obediente dos calculos de minha familia! Calculos! quaes, e de que serviram? Quem foi feliz com elles?!...»
Estes mentaes soliloquios eram cortados por algum ronco pavoroso, ou espertar estremunhado do negociante de couros, quando não era uma pancada da mão esponjosa que algum sonho sacudia ao peito de Rachel.
Chegaram ao seu destino, e pouco depois as cargas da bagagem, e as criadas de Rachel. Manoel Pereira passou na quinta aquelle dia e o seguinte; ao outro, voltou para o Porto a fim de fazer uma carregação de couros, e activar uma leva de escravos brancos para o Rio de Janeiro.
Rachel, á hora crepuscular da noite d'esse dia, foi sósinha sentar-se nas escadas do cruzeiro, que defrontava com o portal da quinta, e então chorou as lagrimas represadas em tres dias de exasperada angustia.
Como tu serias linda alli de uma formosura do céo, Rachel! Qual Magdalena mais linda inventou o buril aos pés da cruz misericordiosa! E se anjo tu eras de purissima alma; se as mesmas lagrimas te depuravam de intenções culposas, que alegria não seria a do teu Creador, vendo-te assim incontaminada, com menos ventura que muitas que não tinham no coração uma fibra incorrupta!
Se a essa cruz voltares, n'outra tarde, a pedir perdão da queda, hão-de os anjos chorar-te, ó Rachel; mas pedirão a Deus que te leve para si e para elles, como se houvesses cumprido immaculada o teu desterro do céo.