A MORTE NEGRA
O terceiro marido de Isabel morreu de uma prolongadaqueixa de peito. A viuva, que era uma rapariga de vinte e seis annos—saudavel, tentadora, appetitosa—de uma forte carnação campesina, com a intensa vitalidade das naturezas creadas em liberdade, poderia definhar-se em virtude de tão successivas desillusões! Porque ella, que passára os ultimos tempos em despezas de casamentos e de enterros, estremecendo com afinco e tenacidade, cada marido recente, tinha de o prantear logo depois, com um tal apparato de palavras inconsolaveis, que sensibilisava todas as pessoas que a ouviam, obrigando-as a tomar parte na sua enorme dôr!
Quando acabou de expirar este ultimo, o José Chibante, Isabel principiou a choral-o, com um desespero tão desgrenhado, que até a propria natureza austera emuda—as altas arvores, os altos montes e os negros penedos—pareciam compungidos!
Estava-se na primavera, mas durante muitos dias caÃra um aguaceiro copioso e subtil, que dava, ao socego das cousas naturaes, um caracter funerario e lugubre! As densas paizagens, envolvidas d’um nevoeiro espesso, não se viam cortadas, ao longe, pelas alegres claridades das habitações. A linha irregular do horisonte não se riscava no azul das tardes serenas e desejadas. O grosso volume das penedias occultava-se nas densas nuvens, que se rasgavam, transpondo montes, transpondo valles, correndo sempre, com uma impassibilidade gigantesca, como de valentes cavallos de posta.
Ora Isabel, viuva pela terceira vez, sentira durante a noite o som ululante do trovão, e presenciara os ultimos momentos angustiosos de seu marido agonisante, encostado ao catre da cama!... Ella, que era uma rapariga forte e com as seducções da belleza e da juventude, sentia-se aniquilada! Exprimia-o com gritos angustiosos, com gestos vehementes, com palavras de desespero, de amor, de saudade!... As suas boas lagrimas, abundantes, sinceras e quentes, tinham attraÃdo, logo de manhã, a caridade de algumas visinhas, que lhe trouxeram as melhores consolações, excellentes palavras, attenções urgentes... n’aquelle momento doloroso. Eram amigas e companheiras nos trabalhos ordinarios da lavoura, e que tinham igualmente assistido, ao caminhar implacavel daconsumpção, em que haviam morrido os outros dois maridos de Isabel!... Por isso conheciammuito bem o que se passava, e, quando ouviram os primeiros gritos alarmantes, fecharam as portas, e pelo caminho para casa da viuva, consideravam cheias de tristeza:
—Então sempre se foi o Chibante?...
—Parece que sim, mulher! Ha pouco mais de um anno que se casaram! Quem o havia de dizer... um rapagão como um castello!...
Uma disse com um modo indagador:
—Eu não sei o que isto é... mas tanto elle como os outros, passante o primeiro mez de viverem com ella, logo arranjaram taes caras de bruxaria que mettiam medo!...
Lindoria, com aspecto compadecido, teve esta opinião:
—Olhae que eutamemtenho pena da rapariga! Digam o que disserem, ha de lhe custar... Tão nova, e já com tres mortes...
—Ora!...—duvidou uma terceira, encolhendo os hombros. A culpa de quem é?!.. É minha?!
Lindoria, que andava sempre por casa de Isabel, interferiu para não deixar concluir:
—Deixae-vos de asneiras... Eu bem sei o que lhe vae lá pelo coração. Ella é uma apegada aos homens!...
—Pois sim—disse uma das companheiras; mas isso é o que não devia ser!...
E caminhando juntas, uma rematou esta conversa dizendo com naturalidade:
—Isto assim não tem geito. Isabel não deve casar mais vez nenhuma.
Entraram na casa da viuva do Chibante, que estavasentada na lareira, com a cabeça energicamente apertada entre as mãos, chorando com desespero.
As suas amigas, para a socegarem, disseram-lhe com os olhos enxutos «que não se affligisse mais, que aquillo foi vontade do Senhor que tudo manda». E acrescentavam com fé e confiança na Infinita Misericordia:
—Olha que elle ha de estar em bom logar!...
—Deus vos ouça, Deus vos ouça... Ao menos que Nossa Senhora o tenha no reino dos céus!...—repetia muitas vezes Isabel.
As outras certificavam-lhe:
—Ha de ter, ha de, rapariga. Ao que elle penou n’este mundo...
—Não que eu lhe desse má vida! Como vós sabeis trazia-o sempre nas palminhas!...
Lindoria concluiu, sorvendo uma pitada:
—Aquem tu o vens dizer, mulher! Era um Santo Antoninho onde te porei.
Depois de conversarem algum tempo familiarmente, foram á cama ver o defunto! Estava escondido por um lençol; mas ellas descobriram-n’o com certa naturalidade, talvez mesmo com irreverencia... Viram-n’o bem, miraram-n’o por todos os lados: o José Chibante, já composto, de costas sobre a cama, tinha os punhos atados sobre o peito, e um lençoamarrando-lheas maxillas, para se conservarem n’uma posição decente. Essa alvura do panno que lhe enquadrava o rosto augmentava-lhe a lividez; as palpebras, cuidadosamentecerradas e presas por um pingo de cêra, accentuavam o ar sereno e grave do cadaver, que todas viam n’uma posição reflectida, com as pernas estendidas e os pés levantados no fundo da cama.
—Eu não sei como pódes fazer isto... Eu cá se me morresse ohomeé que o não vestia—disse uma para a Isabel.
Ella respondeu com voz commum, interrompendo momentaneamente o chôro:
—Pois então?! Ninguem faz estas cousas melhor que a gente. Nós é que sabemos, como elles gostavam de se arranjar...
Porque a camisa de altos collarinhos lavados e as calças de panno azul, tinham sido vestidas ao marido, por sua propria mulher, que lhe quiz fazer este ultimo asseio, o asseio da eternidade! O defunto estava quasi prompto, para a sua festa de enterro. Uma das amigas de Isabel exclamou sinceramente:
—Mas vae bonito e asseiado! Olha que te parece mesme vivo!...
Ella esclareceu, com a sua voz usual, limpando as ultimas lagrimas:
—Leva para a cova a roupa da bôda. Já aos outros dois homes, que Deus Nosso Senhor teve na Sua Divina Vontade tirar-me, fiz o mesmo. Tenho muitaaquellaem que elles vão sempre para o outro mundo como uns cravos!
E concluiu, dizendo que o seu José seria vestido deterceiro, porque erairmão d’esta ordem, e ficava-lhe muito bem o habito, com a sua côr parda e o cordão novoem volta da cintura, caÃndo-lhe as borlas sobre os pés... Lembrava-se muito bem, de quando elle caminhava na ultima procissão de Passos, alinhado cuidadosamente com os outros companheiros, levando uma tocha na mão, muito sério, já com a sua cara magra e doente, amparada nos altos collarinhos da camisa, que agora lhe vestira para o enterro. E, indo á caixa grande buscar ohabito de terceiro, estendeu-o para o verem bem, e disse que o defunto estimava muito aquelle rico traste, que quando era vivo, muitas vezes dissera, ter desejos de o levar para a cova. Por isso Isabel rematou com intimativa:
—Ha de ir á vontade d’elle. Quero-lh’a fazer até á ultima, porque elle tambem sempre foi muito bô para mim.
—Fazes tu muito bem—incitavam fortemente as companheiras. A gente, quando o seu home é bô, deve-lhe sempre andar ao geito.
Uma das amigas da mulher do Chibante foi procurar o Coruja para vir arranjar o habito ao defunto, por que a viuva, attendendo a que sempre era uma cousa benzida, n’esse particular mantinha os seus escrupulos... O coveiro chegou resmungando, e disse palavras desgostosas e insolentes, quando viu o morto quasi prompto. Depois, assobiando canto-chão, e bebendo de uma infuza de vinho, acabou de o arranjar ageitando-o dentro do esquife cuidadosamente, com esmero, compondo-lhe o lençolrebicado, e endireitando-lhea cabeça n’uma posição natural. Logo que isto foi concluido, Isabel e as suas amigas, principiaram a gritar mais alto, com um chôro ganido e espantado, andando em volta do esquife!... O vesgo e cambado Coruja, com os seus arremessos grutescos e irregulares, depois de se ter rido ás gargalhadas, disse de um modo brusco e malcreado, fazendo carantonhas, com a lingua de fóra:
—Por um olho azeite, por outro vinagre, minha corja de mandrongas!... Quem vos não conhecer que vos compre!
E, referindo-se especialmente a Isabel, acrescentou:
—Já trazes outro de olho?...
As mulheres, offendidas, responderam indignadamente:
—Cala-te, bebedo!...
—Olhem o grandissimo borracho!—acrescentou com accento desprezivel a beata Lindoria.
Depois, como o chôro de Isabel se continuava de um modo intenso, e, as suas amigas, pelo que tinham visto das outras vezes, sabiam que lhe fazia mal, produzindo-lhe ataques em que parecia possuida do demonio, uma d’ellas principiou a amesquinhar-lhe o acontecimento, a apresentar-lh’o como um successo natural e simples...
—Olha que não ficamos cá. Cuidas que alguma de nós fica n’este valle-de-lagrimas?!... Estás muito enganada. Tu has de morrer, eu hei de morrer... todas nós havemos de morrer... Um dia toca o sino para esta... outro dia para aquella... é o mundo!
E Lindoria, com um aspecto vulgar e pouco sensibilisador, para mudar de conversa, opinou chegando-se para o esquife, a sorrir:
—Mas o que elle te vae é muito lindo! Pódes ter essa gavança, mulher! Faz gosto olhar para elle. Ninguem ahi põe um defunto na igreja, tão bem arranjado, como tu.
Isabel respondeu:
—Lá isso, hei de fazer sempre assim, emquanto Deus me der vida e saude...
Passado certo tempo, quando todas as idéas tristes pareciam distantes, á Lindoria, que tinha confiança na casa, veio-lhe a lembrança sensatissima, de que Isabel precisaria de comer... Por isso lembrou-lhe:
—Tu has de estar por força fraca e esse chorar faz-te mal... póde-te caÃr no coração.
A viuva recusou-se teimosamente, dizendo que não lhe entraria nem uma bucha de pão na boca... parecia-lhe que tinha comido o seu ultimo bocado... e, fallando em morrer, o seu desespero era enorme e as palavras afflictivas!...
Porém, Lindoria, muito prudente, dizia reprehensiva e com auctoridade:
—Estás tola, rapariga! Não querer comer!!... São lá cousas que se digam! Olha que até offendes ao Senhor, que te creou!... A gente deve fazer bem ao seu corpo, para poder louvar a Deus, e engrandecer a Sua Infinita Misericordia...
E acrescentou, depois de se assoar com estrondo:
—... Ouvi estas verdades da bôca d’aquelle santomissionario que ali esteve em Refuinho, e que teve artes de levar para o reino da gloria a Rosaria do Thomaz do Monte... Sabeis queellajá vos faz tantos milagres que, aos domingos, é uma romaria n’aquella igreja?!..
Com esta auctoridade e saber, sem mesmo consultar a viuva, Lindoria combinou com as outras mulheres, para arranjaremalguma cousaque Isabel podesse comer—alguma cousa que chegasse para ellas tambem, porque se sentiam com bastante fraqueira. Como era no tempo da matança dos porcos, uma, que morava mais visinha da viuva, foi-lhe arranjar uns rojões e trouxe-os, acompanhados de uma boa infuza de vinho... N’uma voz convidativa e discreta, pronunciou estas bôas palavras, logo ao entrar da porta:
—Vamos a elles, emquanto estão quentes e não vem por ahi alguem á agua benta...
—Tens rasão, tens—confirmou a prudente Lindoria, com aspecto guloso.
Isabel, nos primeiros momentos, absteve-se, dizendo com a mão apertada na garganta:
—Esta (a morte do Chibante) não me passa d’aqui. Agora é que fico para toda a vida... O que eu tenho passado em sete annos!...
Era o tempo que lhe tinham durado os tres maridos.
Uma das mulheres, prudentes e sensatas, que a cercavam, disse-lhe:
—É isso verdade rapariga. Rasão tens tu. Mas se é vontade de Deus, que lhe has de fazer?!...—interrogou de cara alta. Sem comer é que não somos nada n’este mundo, e, como te disse aquella (referia-se a Lindoria),até offendes a Deus com essas palavras desagradecidas!...
Abeata, confirmou mais uma vez, esta sua opinião, repetindo:
—Ah! isso offendes e muito! Eu que t’o digo é porque o sei. Mas—rematou—vamos aos rojões, antes que arrefeçam. Frios não prestam.
E para incitarem a viuva do Chibante, para lhe quebrarem os ultimos melindres, principiaram ellas a comer com a mão, e a beber todas pela mesma infuza.
O morto estava deitado no esquife, vestido com o seu habito deterceiro. A côr escura do seu rosto e o pardo da mortalha sobresaÃa... destacava-se da brancura do lençol de panno engommado, que tinha nas ourelas recortes vistosos. As pernas do defunto estavam alinhadas, e as mãos, sobre o peito, agarravam um ramo de oliveira; e no rosto, pallido e soffredor, a dolorosa expressão dos que têem sentido dolorosamente fugir-lhe o ultimo alento de vida!... à cabeceira do esquife, sobre uma velha caixa de pinho coberta por uma toalha, estava um crucifixo, com duas vélas dos lados; aos pés, a caldeira da agua benta, esperava os amigos do finado, que tinham de vir espargil-o com o tosco hyssope, depois de lhe terem resado pela alma, que n’aquelle momento já devia pairar nas regiões incomprehensiveis!... N’aquelle cadaver livido, todo podridão e um proximo repasto de vermes insaciaveis, havia a suprema serenidade da morte—impassivel, austera e absorvente!...
Isabel, depois dos reiterados convites das suas amigas, principiou a comer com moderação e, ao parecer, com pouco appetite.
—Isto é para vos fazer a vontade; porque não me passa d’aqui—dizia, indicando a parte superior do esophago.
Lindoria, com um bom humor descrente, incitava-a:
—Entra-lhe mulher, anda-lhe... Tu não te has de deixar ir assim para a cova...como elle. Se Deus, na sua infinita misericordia t’o roubou, não é rasão para que vás pelo mesmo caminho. Por isso, come-lhe e bebe-lhe que é o melhor que tens a fazer.
E, olhando sagazmente para os lados do caminho, acrescentou com voz familiar e sem imposturas desnecessarias:
—Por ora não vem ninguem... Pódes engulir o teu bocado sem medo.
Mas, pouco depois, quando mastigavam, silenciosas, resignadas e com vontade, sentiram passos de alguem que se aproximava!... Todas deglutiram rapidamente o que tinham na bôca!... Uma d’ellas, com mais sangue frio, metteu no forno, com precipitação, o prato dos rojões, mas deixou, imprevidentemente, a porta aberta. Lindoria, por seu lado, escondeu com sagacidade, a infuza do vinho debaixo de um banco, sentando-se logo por cima d’ella, para a ter melhor escondida com as saias espalhadas. Por fim, como se tivesse havido qualquer convenio anterior, compozeram os semblantes n’uma expressão de tristeza, tomaram attitudes chorosas, e, fingindo a continuação de uma conversa, fallavam comlagrimas no caso presente, lamentando as amigas de Isabel, esta perda doseu homme, procurando dar-lhe as melhores consolações que em taes momentos se podem desejar!...
Os passos que se tinham sentido, eram os do velho Agrella, que vinha resar pelo morto. O alfaiate entrou com face respeitosa e compungida! Resou cordatamente, com sinceridade, e, em seguida, entrou no circulo das creaturas que ensinavam Isabel a resignar-se, trazendo-lhe, elle tambem, as suas palavras de coragem...
A mulher do José Chibante ouvia tudo n’um recolhimento sensato, com intermittencias de sentimentalidade:—umas vezes chorava alto lamentando-se do só que ficava, achando-se enormemente infeliz e desgraçada; outras, entrava socegadamente em detalhes, em referencias, em particularidades do modo como vivera com José, rememorando as circumstancias em que lhe fizera, a ella, as vontades mais exigentes e caprichosas... Era doloroso e sympathico ouvil-a exprimir-se d’este modo, ácerca do terceiro marido que lhe morria!...
No entretanto, um gato preto da visinhança, entrava pela porta dentro sem ser persentido e principiou a observar minuciosamente toda a casa, revolvendo com lentidão os seus olhos redondos e luminosos. Parecia attraÃdo por algum motivo; porque, n’aquella serenidade do seu olhar sagacissimo, conhecia-se-lhe um proposito, um fim... Primeiro attendeu minuciosamente para oesquife, andando duas vezes em volta para se certificar. Depois, aproximou-se das mulheres que choravam, aproveitou do chão uns restos de comida e sentou-se para lamber socegadamente um osso despresado. Por fim, sempre devagar e cauteloso, dirigiu-se, com a imperceptibilidade de uma sombra, para junto do forno... Levantou com mansidão a cabeça e averiguou olfativamente. Sem duvida que foi depois de ter chegado a uma conclusão do seu demorado raciocinio, que o gato se firmou nas patas trazeiras, arqueou o corpo, estendeu-o, retesou-se, e, fazendo um salto, entrou pela porta aberta do forno... onde tinha sido escondido o prato da comida. Pouco depois voltou, saltou para o chão, trazendo um rojão que pousou socegadamente junto do esquife e ali principiou a comel-o, com o sofrego appetite de um golutão...
O Agrella começou por observar este facto com serenidade. O gato preto, logo que acabava de comer um rojão, levantava-se lambendo os beiços, e, sorrateiramente, Ãa buscar mais, que vinha mastigar junto da caldeira da agua benta. O alfaiate, por este signal, percebeu immediatamente tudo quanto se teria passado, antes da sua chegada desagradavel e inconveniente!... A infuza que depois lobrigou debaixo do banco, apesar de Lindoria procurar escondel-a á sua sagacidade, espalhando as saias, completou-lhe o quadro. Porém, o seu rosto foi impenetravel, e, como se nada tivesse visto, continuou a seguir a linha das lamentações, fallando das qualidades excellentes do homem de Isabel, recordando casos que com elle lhe tinham succedido, avivando memorias de tempos passados... E de tal modo e com tal compuncçãoo fazia, que a propria Lindoria—a raposa sagaz da aldeia—sentiu-se dominada pelo tom plangente do Agrella...
A velha beata, compungida e lacrimosa, era quem mais salientemente reclamava as boas palavras, os elegios e as lagrimas para a memoria do defunto, que ali estava, serenamente deitado n’aquelle esquife. Ao mesmo tempo que lamentava os incalculaveis estragos da morte, Ãa reparando... percebendo... apopletica de raiva, que o malvado do gato preto entrava no forno repetidas vezes, trazendo sempre rojões, que vinha comer, impunemente, mesmo junto do esquife. N’um momento, já impaciente e nervosa, não lhe soffrendo o animo consentir que o animal vivesse momentos tão felizes n’uma impunidade odiosa, lançando olhares furtivos aoladrão, pronunciou com voz lamentosa uma d’essas phrases equivocas da linguagem popular, por meio da qual desejava denunciar ás companheiras imprevidentes, aquelle roubo inqualificavel:
—Ah! morte negra, morte negra! que assim os vaes levando um e um!
Queria decerto que o Agrella entendesse que se referia aos homens fallecidos; porém o velho, alfaiate, ouvindo isto, levantou-se sereno e talvez indignado!... Baixou-se sobre o banco, pegou na infuza de vinho escondida, e estendendo-a a Lindoria, disse-lhe n’uma voz compungida e de um comico ardente:
—Pega lá mulher...Aquelles defuntosdo que precisam é d’esta agua benta. Benze-os com esta agua benta, ó Lindoria!...
E dirigindo-se para a porta, disse do limiar com um desdem rancoroso:
—Corja de bebedas! Boa tranca, por essas costas!
E saÃu socegado para o caminho. Lindoria veio até á soleira, com o fim de o amansar, de o adquirir para o convivio das suas amigas. Por isso chamou-o com uma voz convidativa, attraente e cheia de confiança, piscando-lhe um olho:
—Ó Agrella!... Agrella!... Anda cá pedaço de tratante... Andá cá maroto... comer alguma cousa...
E, como o velho alfaiate se voltou para lhe responder, ella, julgando-o dominado, repetiu, mostrando-lhe a infuza:
—Olha que é do da tenda. Boa pinga, verás...
Porém elle, ao riso conciliador e ás boas palavras de Lindoria, respondeu simplesmente comum gestodizendo:
—Olha...
E distanciou-se com passo natural.