OITAVAS

OITAVAS

Que fes de despedida quando de Villa-Viçosa veyo para hum Mosteyro de Lisboa, nas quaes descreveo o triste estado, e o que poderia vir, segundo as pennas, que à acompanhava.

Ficay esteriles campos, calvos montes,Incultas serras, tristes arvoredos,Ribeiras seccas, peçonhentas fontes,Medonhos valles, asperos rochedos;Ficai mal assombrados orizontes,Parados rios, desiguaes penedos,Que jà me naõ vereis como me vistes,Inda que o ser mudeis de serdes tristes.

Meus sentidos trouxestes jà fechados,Que agora sem vos ver já trago abertos,De ouro, e de azul vestistes meus cuidados,Mas agora os vereis de dò cubertos;Se os vistes andar sempre acompanhados,Metidos os vereis pelos desertos,Porque naõ vendo, vejaõ o que naõ viaõE sentindo, naõ sintaõ o que sentiaõ.

Sempre senti pezar, nunca alegria,Nunca em vòs descançei, sempre cançava,O bem que achava em vòs, de mim fugia,Mas se me achava o mal, em mim parava:A treição me dava, e me feriaSe delle por diante me escuzava,Notai deste meu mal este segredo,Que sendo matador, he falso, e tredo.

Em vós todos os bens vi contrafeitos,Cujas internas formas eraõ dores,Em vós topey pastores lobos feitos,Porém ainda em trajos de pastores;A estes procureis, e vãos respeitos,Dos bens alheyos vi destruidores,Gostando só do mal que entaõ causavaõ,E roubando os taes bens, que naõ gostavaõ.

Mais feroces, que lobos, pois que queremSustentar-se dos males, que causarem:Que os lobos mataõ gado por comerem,Mas estes só matavaõ por matarem;Sómente se recream em offenderem,Os que mais suas leys contrariarem,Porque a contradicçaõ faz inimigosDaquelles, que antes della foraõ amigos.

Nenhum seu proprio estado já respeitaE trazem nas aldeas em que moraõRebuços de virtude contrafeita,E rostos naturaes do mal que adoraõ:Condẽnam a ley do Ceo por muito estreita,E em todas por seu mal sempre peòram,Taõ amigos do bem, que vivo o enterram,E taõ destros no mal, que nunca o erraõ.

De Astioge se diz que aborreciaA Cyro moço tenro, e delicado,A quem morte cruel traçava, e ordia;Porque era pretensor do seu Reynado;Porém o odio destes naõ se cria,Por enveja, ou temor demasiado,Sò com odio do bem, o bem perseguem,Por seguirem o mal, que todos seguem.

Mas eu que escrevo, canto, falo, ou digo,Quem me importuna, turba, e desordena,Se a cegueira que tem he seu castigo,E sua mà vontade he sua pena;Quem tem o mundo, que naõ tenha amigo,Se Deos assim o traça, assim ordenaQue tudo quanto ha, tenha adversario,E seja o homem de si cruel contrario.

Saõ estes desliaes adoradoresDa propria vontade cega, e dura,Que fazem de seus vicios seus senhores,E só para seu mal mostraõ brandura,Das sempiternas leys contraditores,Trazendo destas leys a vestidura,Amadores do mal, e da mentira,Filhos da perdiçaõ, e vasos de ira.

Vestem a perversaõ com sua nobreza,Querem fazer da noite claro dia,Sua maldade cobrem, com a riqueza,Rebução com poder a tyrannia:Disfarçaõ sua furia em fortaleza,A vontade cruel julgaõ por pia,Sò tem o mal por bem, que o naõ aborrecẽ,E o bem temno por mal, que o naõ conhecẽ.

Por peccados que Lucio, e Casso acharaõA seus filhos mataraõ por peccarem,Mas estes mais crueis que os que passaraõQuerem-lhos inventar para os matarem;Os bens dignos de premio nunca olharaõ,Sò vem os males para os castigarem,E o que he furia cruel digna de espanto,Chamaõ-lhe sò rigor, e zelo Santo.

Falo com reprovados, que abternoForaõ por culpa sua condemnados,Ao fogo abrazador do escuro inferno,Sepulchro dos que jà saõ reprovados;Juizo foy divino, e sempiterno,Que os juizos humanos traz cançados,Que vivaõ de mistura os escolhidos,Com os que se haõ de perder, e já perdidos.

Mas ay que póde ser q̃ os que reprehendoSubaõ do mal ao bem que naõ conhecem,E póde vir a ser que os que defendoDeçaõ do bem ao mal, que hoje aborrecem,Que quaes saõ os de Deos, eu naõ no entẽdoSenaõ segundo as obras que aparecem:Porèm a graça de huns naõ he segura,E nem a culpa de outros sempre dura.

O Principe das trevas naõ pretendeCom todos seus vassalos preseguirnos?Naõ nos deseja mal, naõ nos offende?E naõ estuda sempre em destruirnos?Naõ temos nòs a Deos que nos defende,Se elle quer offendernos, e oprimirnos?Se nòs sem paixam nossa o desprezamos,Porque com seus ministros nos cançamos?

Que ter amigos taes he sorte boa,Pois saõ occasiões para a vitoria,Artifices sutis da altiva coroa,Que Deos costuma dar na eterna gloria;Naõ quero que me cause, ou que me doa,Trazelos como trago na memoria,Porque, ou sejaõ cilicio, ou disciplina,Saõ meyos de mayor graça divina.

Quem nunca aborreceo o ferro agudoCom que o barbeyro destro dà a sangria,Se para o mal que vem serve de escudo,Lançando à força o mal que havia:Quem trata mal o instrumento tudo,Que dente lhe arrancou, que lhe dohia?Amem-se pois amigos que daõ pena,Pois Deos meyos os faz do bem que ordena.

Chorẽse os dãnos seus que naõ conhecem,Pois que primeiro a si se offendem, e mataõ,Com os males com que os justos enriquecẽ,Que exercitaõ no bem quando maltrataõ,A si oprimem, damnaõ, a si empobrecem,A si destruem, cansaõ, e disbarataõ,A quem dos bens alheyos qualquer copia,Serve de afronta, penna, e magoa propria.

O profeta David Deos defendia,Do Rey perverso injusto que o buscava,Saul por huma parte o perseguia,E Deos por outra parte o sublimava,Levanta-o Deos por Rey, porque o sofria,Destroe Deos o Rey que o invejava,Quem sofre reyna, quem perdoa alcança,He o odio do mào a espada, e a lança.

Assim que està por ley jà definido,A qual se tem no mundo publicado,Que em bẽ redunda o mal quãdo he sofrido,E empena fica o bem quando he passado;Hum passando deixou triste o sentido,Outro durando o traz desenganado;Porque hey de gastar bem que tanto damna,E temer mal que tanto desengana.

Assim Deos o permitte, assim o ordena,Que nesta vida triste, e transitoria,Com gloria vaã se ganhe eterna pena,Com pena temporal eterna gloria:O gosto sempre a alma dezordena,A penna faz a vida meritoria,Quando se gosta o bem entaõ escurece,Quando o trabalho cansa, entaõ enriquece.


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