SEGUNDA PARTE

Decorative border; imagen decorativaSEGUNDA PARTE

Decorative border; imagen decorativa

Jada fatal tragédia retiradasAs restantes ruinas da feresa,Ficaraõ só no cãpo idolatradasHũas breves reliquias da bellesa:Ausente Pedro, sem que as mal logradasLamentasse memorias da firmêsa:Taõ dittoso nas magoas se discorre,Que morre ufâno, sem saber que morre.

Queixosa em fim feneçe a galhardia,Solicîta queixûmes a ternûra,Vendo jà no desdem da tyranniaMenos cruel a Parca, que a ventûra:Que como qualquer dote se avaliaPor symptôma fatal da formosúra,Aquella mesma ditta, que entre sortesCumûla prendas, mutiplîca mortes.

Á ventura se queyxa, que a beldadeFosse causa da perda, porque unidaNaquellas prendas da melhor idade,Fez acabar rigôr, o que era vida;Mas a Parca tyranna por vaidadeSolicita bellesas advertida;Porque dellas talvez se naõ cuidára,Morre fora huma prenda, e só matára.

Só suspiraõ, só choraõ lastimosas(Que naõ pára nas queyxas a finesa)Aquellas, que restaraõ só piedosasTroyas do amor, reliquias da bellesa:Aquellas, digo, prendas lachrimosas,Dous Infantes gentîs, a que naturesaDeyxou com vida, porque em seu tribûtoFosse a morte da flor vida do fructo.

Qual nos braços da planta mais visinhaEm roupas de rubîm, cama olorosa,Sentindo huma lanceta em cada espinha,Sangrada no jardim fenece a Rosa:Consagrando-se flor, quem foy Rainha,Em vivos holocaustos sanguinosa,De cujas cinzas restaõ por grinaldaReliquias de ouro em cófre de esmeralda.

Que pesáres, que penas, que rigoresAmor formáva, cada qual sentia,Qual nos gemidos soluçando amores,Em carinhossas magoas confundia:Qual desmayado no tapiz das flores,Se recosta trophéo da tyrannia,Notando aquelle peito, cujo enfeiteLhe troca em pena, quanto foy deleite.

Quantas vezes fallando enternecidos,Em soluços lhe pára o doce alento!Quantas na voz do monte repetidosOs saudosos ays lhe torna o vento:Quantas a ser naufragio dos sentidos,Se deriva em chrystaes o sentimento;Pois quer a dor, querendo amor agora,Chórem dous Soes a falta de huma Auróra.

Alentado o rigor, duplîca em tiros,Se bem globos de fogo, esphéras de agoa;Naõ resiste Clavêl, que nos retiros,Naõ morra espûma, e naõ feneça fragoa:Multiplica-se o vento nos suspiros,Fogósos rayos lhe despede a magoa:Já naõ sabe nascêr, nem brilhar Rosa,Que naõ pasme defuncta mariposa.

Nem tribûtaõ lisonjas aos sentidosNestas mudas razoens, que amor ordena,Que sujeitos amantes desunidos,Aquelle, que mais chóra, esse mais pena:E se lagrimas saõ nos mais sentidosAlmas do coraçaõ, bem se condenaQualquer a mais sentir; pois he patente,Que quem mais almas tem, muito mais sẽte.

A solidaõ de Pedro imaginada,Lhe accende as almas, lhe distilla os peytos,Que nem morrêra Ignez, se retirada,Naõ sentira distante os seus effeitos:Que como seja amor, muito apertada,Se gentil, uniaõ de dous sujeitos;Quando matar hum delles amor trata,Se desunir os dous hum só naõ matta.

Assi passaõ da mágoa a ser espantoOs dous ayos do mimo, os dous Cupìdos,Narciso cada qual do proprio pranto,Phaetontes em fim de seus gemidos:Se foraõ gala da bellesa, em quantoEraõ gentîs desvelos dos sentidos,Lastimas ficaõ já da tenra idade,Culpas de amor, delictos da beldade.

Quaes simples avesinhas, que roubadasÁs lisonjas de Abril, mimos de Flora,Dos maternaes alentos apartadas,Suspira cada qual, cada qual chóra:As que foraõ do campo idolatradasOraculos do Sol, linguas da Auróra,De si mesmas agora occulta fragoa,Concebem pena, quando abortaõ magoa.

Mas já funesta voz, turbado alentoPor linguas de metal enrouquecidoFormava o Semideos monstro violento,Gigante pela fama conhecido.Aquelle, cujo aládo atrevimentoSe remonta veloz, e taõ subido;Porque nelle talvez o mundo vejaVoarem pennas a pesár da inveja.

La fez a túba lastimoso effeitoNos alentos de Pedro, que em suspirosOs mais dos eccos lhe interpréta o peitoDobrando mágoas, renovando tiros:Quando apenas em fim na dôr desfeitoO coraçaõ se pasma, que em retirosSuffocado talvez da intensa calma,Se isentou de correr por conta da alma.

No combáte fatal deste desmayo(Lastimoso parenthesis da vida!)Tribûta vivas ao mortal ensayo,A sentinella da alma já vencida:Naõ morre Pedro, naõ, que aquelle rayoFoy lançada de amor, que repetida,Se pertende matár, a quem suspira,Menos o mata, se lhe a vida tira.

Assi vivendo morre, quando amante;Assi morrendo vive, quando ausente;Que se morre, pois pena por distante,Vive tambem, pois ama, porque sente:Mas em fim naõ passâra tanto ávanteNas finesas amor, que fora urgenteAcabar-se na vida, se roubára,E taõ fino naõ ser, se naõ matára.

Mas quem diria agora o que sentisteNesta, Pedro, de amor menos ventura,Dos carinhos ausente, que já visteBrotar melindres, produsir brandûra?Oh! que dirias, Pedro, quando abristeAquelles dous conceitos da ternûra!Os olhos digo; mas amor ordenaParte das queixas interpréte a pena.

Já no pardo capuz, roupas saudosasEmmudecida a terra se encobria,E nos hombros das nuvens tenebrosasAtaúdes de sombra o tempo erguia,Consagrando com tochas lachrimosasMudas exequias ao defuncto dia,Dando claros sinaes ao Jovem louroEm torres de Zaphir os signos de ouro.

Quando a favor da vida o sentimentoNovos em Pedro reproduz gemidos,Sendo sumilher da alma o novo alento,Que lhe corre as cortinas aos sentidos:Mas já liquida dôr, claro tormentoSe acredita nos olhos advertidos,Que quem nas penas solitario mora,Só lhe resiste vivo, em quanto chora.

Solicita retîros, em que unidasSe acreditaõ de finas as saudádes,Que saõ mais primorosas, se sentidas,Naõ permittem motivos a piedades:Tributaraõ labéos de mal nascidas;A naõ passarem móstra de vaidades,Quando naõ foraõ mais, que eternisadas,Solitarias, occultas, retiradas.

E já nas solidoens entretenidoInterpréta lisonjas aos cuidados,Pois vay vendo nas flores advertidoMorraes prendas, alinhos mal logrados:Mas apenas se lembra enternecidoDaquelles Soes agora imaginados,Quando já vacilante se discorre,Aqui pasma, allî geme, acolá morre.

Qual Girasol gigante, que atrevidoA beber rayos amoroso aspira,Se bem, que entre zeloso, e presumidoDesdenha ufâno, temoroso gira:Mas vendo apenas, que o galân queridoCom disfarces de nacar se retira,Porque se vê das glorias todo ausente,Languido pasma, cuidadoso sente.

Em fim rompe nas queixas amorosasAgora Pedro, quando as vê sentidas,Que naõ pódem livrar-se de penosas,Quando sabem fugir a ser ouvidas:E só discretas saõ, se rigorosas,As que menos se presaõ de entendidas;Que já por isso Pedro se as pertende,He só porque a si mesmo naõ se entende.

Ay! gloria minha, diz, gloria sonhada!Minha te chamo, quando assi perdida,Que se naõ tens as veras de lograda,O desár naõ padeces de esquecida:Como gloria maltratas, se lembrada?Como molestas gloria possuida?Na pósse logras ancias de fallivel,Na memoria rigores de impossivel.

Como soube deixar-me assi frustradoEste rigor, que gloria se habilita,Quando me fez mayor, que o mesmo Fado,Mayor, que amor, mayor q̃ a mesma dita?Quem me disséra então, que este cuidadoFosse Rosa, que apenas se acredita,Quando se vê nas maõs da naturesaTrophéo da dôr, sangria da bellesa.

Ay triste solidaõ! ay pena ingrata!Quanto menos cruel foras agora,Se permittindo a magoa, que maltrata,Naõ roubáras a gloria, que te adóra:Mas esta dôr naõ fora, que assi mata,Rigoroso pesár, se assi naõ fora;Pois naõ se méde o mal de quem suspira,Pelo que tem, senaõ pelo que tira.

Mas inda mais avante acompanhadaDesta dôr outra pena já me alcança;Pois na magoa da perda lamentadaOs alivios me rouba da esperança:Mas como, se naõ fora eternisada,Maltratára das glorias a mudança?Que o pesár sem remedio padecido,Mata porque hade ser, e porque ha sido.

Nem pódem mitigar esta saudadeAssistencias de amor, porque resisteOutra nova razaõ da soledade,Que nas distancias desse amor consiste:Que como aquelle objecto da vontadeHoje feito impossivel naõ me assiste,Sendo vinculo amor entre subjeitos,Naõ tendo extremos, naõ produz effeitos.

Só deixára de ser eternisadaEsta dor, mas só fora divertida,Se a memoria da pena imaginadaNaõ passára a ser pena padecida:Só razão de praser, quando lembrada,Essa gloria tivera, que he perdida,Se sendo assi passada na lembrançaSoubéra ser futûra na esperança.

Nem queixumes de lagrimas sentidasAlivios pódem ser nesta saudade,Que sendo partes da alma desunidas,Saõ causas naturaes da soledade:Porque quando nos olhos advertidas,Procuraõ fugitivas liberdade,Aquella mesma vida, que me alenta,Tambem nellas partida se me ausenta.

Oh quem me déra já ser assistidoDos penhascos talvez, que o monte cria!Mas quem naõ tem razoens para sentido,Naõ póde ter nas magoas companhia:E hum rigor por ausencias padecido,Com nenhuma presença se alivîa;Que quem nas ancias, que padece hũ triste,Juntamente naõ pena, naõ lhe assiste.

E menos me permitte esta esquivançaSer de vós assistido, lindas flores,Pois por gentis emblemas da mudançaJeroglyphico sois de meus amores:E se produzis glorias na lembrança,Mal podeis assistir a meus rigores;Que naõ faz assistencia nos retiros,Quem motiva principios aos suspiros.

Nem já, féras, talvez vossa brutesaResta para topar branda piedade;Mas como póde ser, se a naturesaAs noticias vos néga da saudade?E no fatal rigor de huma tristesa,Nos efeitos mortaes da soledade,Naõ póde ser a dor compadecida,Sem que seja na causa conhecida.

Nem sereis, avesinhas, no saudôsoCompanheiras gentîs a meus retiros,Que diversos sujeitos no penoso,Tem diversas as magoas nos suspiros:E bem se vê, que o mal todo invejosoMais a mim, do que a vós fulmina os tiros;Pois nûm rigôr fatal hum, damno esquivo,Mais mata o racional, que o sensitivo.

E menos podeis ser a meus sentidosDeleitoso carinho na saudade,Lisonjeiros arroyos, que atrevidosSolicitaes dos olhos a vaidade:Mas como? se a meus ays, e a meus gemidosMultiplicaes melhor a soledáde;Pois em vós retratado, e descontente,De mim mesmo me vejo estar ausente.

Mas ainda assi paray, que se melhoraNestas lagrimas minhas vosso augmento:Se professais correntes, como agoraSabeis livres fugir ao sentimento?Paray, naõ murmureis, que nisso foraMuito mais conhecido vosso alento;Olhay que se condena, ou se aventûra,A naõ fazer remansos quem murmûra.

E vós paray nas queixas amorosas,Galantes cortesans da soledade,Que naõ fazeis os pontos de queixosasQuando dais tantas falsas na saudade:Paray, digo, a meus ays, paray piedosas,Paray nos quebros, tende a liberdade,Aprendereis a ser nestes retirosHum Féniz cada qual de meus suspiros.

Paray gentîs emblemas da vaidade,Flores, digo, paray, paray saudosas,Naõ bebais presunçoens, que a pouca idadeSereis de meus incendios mariposas:Aprendey dos alinhos da beldade,De vossa vida, digo, a ser piedosas;Que sempre foy nas regras da ternûraMuy capaz de liçoens a formosura.

Paray féras tambem nesses ruidos,Guardas do monte, archeiros da ferêsa,Fazey caso das penas, que os bramîdosArgumentos parecem da brutêsa:Isto basta, paray, que os entendidosPódem talvez notar vossa estranhesa:Minhas queixas ouvi, que alivio fora,Quem naõ póde fallar, me ouvisse agora.

Paray broncos penhascos, que o Céo criaPara pardos Atlantes dos retiros,Se vos vence huma liquida porfia,Como já resistis a meus suspiros?Mas oh! que digo! páre a covardia,Exhále o peyto, multiplique os tiros,Duplîque amor, e dobre o sentimento,Agoa nos olhos, nos suspiros vento.

Ferîdo o coraçaõ tribûte em fogoUndósa parte, derretido alento,Se liquida sangrîa ao desaffogo,Lisonjeira lancêta ao sentimento:Se excessivo queixúme, ardente rogo,Se verte em nuvem, se distille em vento,Naõ fique planta, que a pesár do espanto,Naõ morra em fogo, naõ se afogue em prãto.

Sejaõ linguas dos olhos mudas agoas,Intérpretes da dor tristes retiros,Eloquencias do peito vivas fragoas,Razoens do coraçaõ ternos suspiros,Rhetóricas da pena ardentes magoas,Elegancias de amor dobrados tiros:Emmudeça a razaõ, que só parece,Sabe tambem sentir, quando emmudece.

Distille o coraçaõ, duplique o ventoEthnas a seu pesár, agoas ao rogo;Morra por glorias de seu mesmo alentoTroya nas ondas, e Narciso em fogo:Incendios solicîte ao sentimento,Diluvios multiplìque ao desafogo,Sendo de seu rigor o mesmo ensayo,Nas causas nuvem, nos effeitos rayo.

Naõ cresça lirio, que naõ sinta os tiros,Clavél naõ gire, que naõ pasme em fragoas;O que Féniz naõ for entre os suspiros,Morra já Faetonte sobre as agoas:Sejaõ vozes as magoas nos reriros,Que melhor nos retiros se ouvem magoas,Se se póde na dor, que amor ordena,Ouvir a magoa sem sentir a pena.

Naõ reste planta, que se atreva a tãto,Que naõ murche dos ays enternecidos,Rosa naõ fique, que, a pesár do espanto,Se naõ séque ludibrio dos  gemidos:Em fim, duplique a dor, prodûza o prantoLastimosos naufragios dos sentidos;Seja neste pesár, nesta esquivançaCharybdes da alma o Cabo da esperança.

Mas ay! que as plantas no desdẽ da idade,Mas ay! que as flores no rigor de hũ vento,A naõ serem Jasmins na brevidade,Naõ seriaõ Perpetuas no tormento:Só tu terrivel ancia da saudadeEternizas agora o sentimento;Porque quando matar-me amor ordena,Me deixas vida, com que o corpo pena.

Quem soubéra cuidar, que a mais crescidaTyrannîa cruel da dor mais forteFosse, quando nas perdas de huma vidaImpossiveis sentisse de huma morte:Mas he rigor da magoa repetidaPor industria fatal da iniqua sorte;Porque quando talvez matar-me trata,Por topar-me sem vida, naõ me mata.

E se fora da vida roubadoraEsta sorte fatal, tormento esquivo,Tivera só por pena matadoraQualidades de grande no intensivo:Mas naõ, que como amor pertende agoraCumulár intensoens ao sensitivo,Naõ quer, que amor me mate, pois duráraMuito menos a pena, se matára.

Agora alcançarás, prenda querida,Os rigores de amor na minha sorte,Pois agora me quer roubar a vida,Só por ma naõ tirar primeyro a morte:Mas ay! que a pena se duplîca unida:Mas ay! que a magoa se eternisa forte;Pois que vejo na dor do mal esquivo,Que naõ posso morrer, porque naõ vivo.

Mas agora na pena, que me entrega,Vejo, que quer a dôr, e a mais aspira,Que padeça na morte, que o mal nega,E que pene na vida, que amor tira:Aqui verás, Ignez, a quanto chegaEsta pena de amor, que amor, conspira;Pois agora naõ sey, no que discorro,Se vivo ausente, nem se ausente morro.

Mas em fim: que me queixo dos rigores,Com que talvez amor me tyrannisa,Quando mais martyrisaõ seus favores,Onde qualquer lembrança os eternisa:Pois quando apenas se alentaraõ flores,Passaraõ quasi flor, que se agonìa;Por isso a minha queixa mais se ordenaA sentir seu desdem, que a minha pena.

Oh duro amor! oh fragoa dos gemidos,Prisaõ da vida, Argel da liberdade,Martyrio da alma, guerra dos sentidos,Encanto doce da melhor vontade!Teus favores só foraõ conhecidosPor gentîs prendas da mais tenra idade,A naõ serem primeyro teus favoresSeccas espinhas, que animadas flores.

Que cuidados naõ causas Jovem cego?Que rigores naõ dás ao pensamento?Que delicias naõ roubas ao socego?Que lisonjas naõ finges ao tormento?A que peitos naõ dás custoso emprego?A que vida naõ tiras doce alento?De que genios naõ reinas? de que idades?De que prendas gentìs?  de que beldades?

Quem me disséra, quando Ignez logravaNos carinhos gentîs de seus favores,Quando nelles amor idolatrava,Para poder talvez morrer de amores!Quem me dissera, logo, que aspiravaHum cadúco praser a taes rigores!Quem me disséra então, que da venturaEra mortal delicto a formosura!

Quem disséra, que os laços de alvedrios,Gentîs madeixas, onde a naturesaRepartio liberal por tantos fiosOs melhores extremos da bellesa,Esses agora, que acabarão brios,Se arrastão já bandeiras da tristesa?Mas que muito, se nunca em seus ensayosNenhum por Louro se isentou de rayos.

Oh bem, que pouco duras possuido!Só logras algum ser, quando esperado;Nos molestos receyos de perdidoTyrannizas o gosto de alcançado;Oh sonhada lisonja do sentido!Oh mais terrivel ancia do cuidado!Flor, que apenas se vê, quando se choraEnteada do Sol, filha da Aurora.

Aquelles olhos donde o Sol furtavaOs melhores thesouros da vaidade,E em lusidas capellas consagravaDous altares Amor a huma beldade:Aquelles, cuja luz interpretavaOs occultos archivos da vontade,Estes mesmos erarios da bellesaDeixa a perder de vista huma feresa.

Oh debil gloria lisonjeiro ensayo!Babél da vida, lingua do escarmento,Desfeita sombra do mais breve rayo,Quebrado vidro da mais tibio vento:Jasmim, que pasma de qualquer desmayo,Cravo, que morres de teu mesmo alento!Oh gloria humana! em fim gloria sonhada,Vida, Sombra, Jasmim, ou Cravo, ou nada.

Aquella bocca, donde a mais lustrosaSe divisava purpura incendida,Em quem se vio nascendo a bella RosaCom menos folhas, quando mais partidaAgora só se occulta lastimosaEm desmayos de neve amortecida;Mas que prenda não tem que formosura,Muito menor a vida que a ventura!

La pretende nascer Cravo lusido,Mas em casa gentil botão fechado;Porque aquella manhaã, que o vê nascido,O chorasse primeyro amortalhado:Quem, ô purpurea flor, taõ presumido?Mas quem, Cravo gentil, taõ lastimado?Que lhe chegue a tecer a naturesaA mortalha primeyro, que a bellesa.

Aquelle brando afleyo da ternûra,Aquelle doce Argél da liberdade,Aquelle emblema só da formosura,Aquelle bello encanto da vontade,Aquelle gentil pasmo da ventura,Aquelle rico erario da vaidade,Nos alinhos se vê já confundida,Troféo da morte, lastima da vida.

Que pouca duraçaõ, que mal segura,Tem nas prendas da vida huma bellesa!Só vive em quanto nasce a formosura,Espira, em quanto vive a gentilesa:Em fim, mais morre, quãto em fim mais dura,Mortalidades traz por naturesa;Quanto mais alentada, e mais lusida,Mais accidentes logra, e menos vida.

Mas se saõ melindrosa enfermidadePrendas de amor, e dotes de huma vida,Que muito, bella Ignez, que essa beldadeFosse de teus alentos homicida:Comtigo a morte foy no Abril da idade,Menos ambiciosa, que atrevida,Sem reparar, Ignez, que teus rigoresPerdessem fructos por cortarem flores.

Mas viveràs, Ignes, que amor ordenaNestas memorias, donde a tyranniaPor naõ lograr-se mal a minha pena,Debuxàra melhor tua galhardia:Aqui veràs, Ignes, se me condenaAmor, que por tyranno se avalia,A fazer impossiveis, pois discorroViver lembrado, quando auzente morro.

Morra no ramalhete flor cobardeA que Rosa nasceo  mais alentada,Vomitando rubins pague na tardeQuantas perolas bebeu na madrugada:Seja bruto fiscal de tanto alardeO mesmo dia, que  a chorou cortada,Que nenhuma manhãa, nem tarde temoAs contas tomar possa a tanto extremo.

Aqui passo tal vez a mais quererte,Onde chego mais fino a mais lembrarme,Porque foraõ distancias de naõ verteIncentivos quiçà para olvidarme:Mas nem topo motivos de perderteNesses teus infalliveis de deixarme,Que, sendo vida minha, sò puderaPor perdida julgarte, se eu morrera.

Assim se queixa Pedro, quando ausenteDaquellas prendas nunca esquecidas,Pois amor, que lembradas as consente,As pintou bellas, quando as vio perdidas;Quando nas pennas, que dobradas sente,Quando nas queixas, que repete unidas,Jà desmayando pasma, porque ordenaA mesma queixa, que se calle a penna.

Qual o Lyrio gentil nas mãos da tarde,Quando fragoas se alenta, incendios gyra,Funesta tumba de seu mesmo alarde,Bebendo rayos, abrazado espira:O que roxo matìz a pennas arde,Parda nuvem murchando se retira,Em quanto a Aurora tarda, q̃ de hum rayoLhe corre galas para novo ensayo.

Assim Pedro se pasma, e naõ consenteOs sentidos queyxumes, que derrama,Que se vive queixoso quem mais sente;Poem limite nas queixas quẽ mais ama;Mas aqui lhe concede amor presenteAquellas prendas, com que mais o inflãma,Que saõ talvez motivos do socegoAs memorias gentis do doce emprego.

Agora, humanas prendas, se entendidasO desdem desprezais da infausta sorte,Que naõ duraõ taõ pouco vossas vidas,Que naõ saibaõ passar àlem da morte:Attentay, se notardes advertidas,Que naquelle de amor rigor mais forteAconteceo da misera, e mesquinha,Que depois de ser morta foy Rainha.

FIM

Da segunda parte.

Decorative image; imagem decorativa


Back to IndexNext