XIISol entre nuvens

XIISol entre nuvensVoltemos áquella casa tão risonha do campo do Ourique, aonde ouvimos as imprecações de Manuel Coutinho, as palavras prudentes do bispo de Malaca, e a resposta de Leonor ás propostas de Lagarde. Apenas decorreram algumas semanas, mas os successos precipitaram-se, e tudo mudou de aspecto.Entremos sem ruido pela alcova, cujas portas de vidraça, recatadas pelo reposteiro de seda, abrem sobre a sala, aonde vimos a filha de Paulo de Azevedo jurar ao seu amante eterno amor. Os moveis e o adorno do aposento são ainda os mesmos. Os raios do sol afagam de luz dourada as avezinhas, que saltam nas gaiolas, e beijam as corollas das flores, cujos variados matizes sobresaem, marchetando os bellos ramos, que enfeitam as antigas jarras japonezas em cima do marmore dos tremós.O gato valido dormita enrolado sobre o seu coxim de lã. A agulha continúa esquecida, picando a tela na folha começada mezes antes no bastidor. Lá está aberta a «Imitação deChristo» na pagina, que Leonor lia, quando a entrada de Manuel Coutinho a veiu interromper. Além se descobrem, junto do espelho de talha alta, os outros livros, fieis companheiros da donzella, nas suas horas de tristeza e solidão! Tudo parece o mesmo, e, todavia não sei que invisivel e indiscreto delator logo revela aos olhos, que o infortunio e as magoas já não humedecem de suas lagrimas aquellas paredes, aonde já se respira conforto e alegria.Soam passos e vozes na rua mais proxima do jardim. A areia range debaixo dos pés de tres pessoas, que se encaminham lentamente para a meia laranja rasgada deante da escada de pedra.Todas tres são nossas conhecidas. No meio, mais grave e preoccupado, do que o vimos nos dias de oppressão e de risco, vem o veneravel bispo de Malaca. Conserva ainda o bondoso sorriso e a serena expressão do semblante, mas um véu de melancholia lança-lhe algumas sombras sobre o rosto. Á sua direita Manuel Coutinho com o braço esquerdo ao peito parece escutar com impaciencia as phrases, que Paulo de Azevedo solta com vehemencia, todo inflammado em ira.—Não, Manuel, não me convence! exclamava o velho cavalheiro colerico. A capitulação de Cintra é um opprobrio para nós, e uma infamia para quem a assignou! Se foi para nos tractarem como conquista sua, para nos venderem a honra e a fazenda a retalho, excusavam os inglezes de vir a Portugal. Estrangeiros por estrangeiros cá tinhamos o Junot. Ladrões por ladrões cá estavam Lagarde e Juffré. Não era necessario encommendarem-se os Trant, os Dalrymple, e os Ackland!...—Não vá tão longe, sr. Paulo de Azevedo, não seja injusto! accudiu o bispo, interpondo-semansamente. Louve a Deus pelas maravilhas da nossa restauração, e não se afflija tanto com o mais. Tudo tem remedio.—De mais, observou Manuel Coutinho, estou certo de que os alliados já conhecem o seu erro, e hão de cedo emendar o mal. Sir Arthur Wellesley disse...—Tão bom é elle, como os outros! interrompeu Paulo, levantando a voz. Manuel Coutinho é muito moço. Conto mais annos e mais experiencia. Lembre-se de que tambem os francezes entraram aqui com pés de lã, e depois...—Pois cuida?! É impossivel!...—Cuido, sim, senhor. Não sei o que acham os estrangeiros n'esta tira de terra, mas a verdade é que todos a cubiçam, hespanhoes, francezes e inglezes! Mas se estes de agora imaginam representar ao vivo a fabula da ostra e dos litigantes talvez se arrependam. Não hão de comer a polpa e dar as cascas a Bonaparte e ao principe regente! Em Portugal ainda ha fouces roçadouras e espingardas caçadeiras por essas choupanas para exterminar hereges e traidores!...—Socegue! Pois julga que o governo inglez havia de cair na loucura de querer apoderar-se do reino!? atalhou o bispo sorrindo-se. Os generaes alliados não nos tractaram bem, concedo. Faltaram ao respeito devido á rainha, nossa senhora, dispondo sem audiencia nossa, do que pertence á sua corôa; mas suppor que o fizessem com o ruim sentido de substituir a sua usurpação á de França, não posso crel-o!—Creia o que quizer, senhor bispo; mas saiba que o illude a sua bondade natural. Senão diga-me: Estamos hoje a dez de setembro. Ha oito dias, que o Tejo se vê coalhado de navios de transporte e de vazos de guerra inglezes.Que bandeira tremula em S. Julião, nos fortes, em Paço d'Arcos, e em Belem? Uma commissão de estrangeiros, em que só figura por esmola um portuguez, abriu balcão no largo do Loreto n.º 8, para tomar conta das mobilias dos paços reaes, das repartições publicas, e dos objectos furtados dos arsenaes, como de cousas inteiramente suas! Os francezes acampam nas praças com as peças carregadas! Os inglezes estão quasi ao lado d'elles! Pode dar-me noticia de Bernardim Freire e do exercito portuguez? Sabe aonde pára? Não o pozeram fóra, a elle, que era de casa, para se metterem a si de dentro?!...—É verdade! respondeu Manuel Coutinho um pouco enleiado, porque a amisade e respeito ao velho cavalheiro o prendiam por um lado, em quanto pelo outro se lhe figuravam exageradas suas queixas e apprehensões. Mas a capitulação foi negociada e assignada entre Junot e os alliados! Talvez seja essa a causa da falta do nosso general n'este momento.—E essa falta, attestada pelo protesto, que elle de certo ha de fazer como bom portuguez e bom soldado, é a maior accusação, que existe, contra a insolencia, com que somos tractados! bradou Paulo de Azevedo com os olhos scintillantes. Pois dispõe-se assim da soberania, da independencia, da honra, dos interesses, e dasegurançade um reino amigo sem chamar ás conferencias o general, que o representa, e que empunha as armas para os sustentar?! Aonde estariam a esta hora Wellesley, Dalrymple, Beresford, e Moore, se as nossas villas e cidades se não sublevassem, e se o nosso exercito lhes não cobrisse a marcha sempre? A bordo dos navios, ou vencidos e afogados no mar! São muito esquecidos estes senhores inglezes!—E aonde estariamos nós, tambem, accudiuManuel Coutinho, por fim irritado, se esses inglezes, que o sr. Paulo de Azevedo quasi amaldiçôa, como inimigos, não combatessem pela nossa liberdade na Roliça e no Vimeiro? Julga que as milicias de Bernardim Freire, e os Terços tumultuosos eram capazes de desalojar De Laborde, ou de vencer Junot? Quer que sejamos injustos? Todos viram o que succedeu. Foi ainda hontem! O sangue vertido pelos estrangeiros em nossa defeza está vivo e fresco. Não lhe parece cedo para começarmos a ser ingratos?!...—Ingratos?! Ah! Manuel Coutinho não esperava similhantes palavras da sua bôcca! Pois já se namorou tanto dos estrangeiros n'estes poucos dias, que lhe esqueçam as offensas da patria escarnecida, vilipendiada?...—Ajudei a vingal-as no campo, sr. Paulo de Azevedo! redarguiu o mancebo com alguma altivez. O que digo vi-o por meus olhos. O meu sangue correu tambem alli! Se defendo os inglezes é porque os admirei como soldados, e juro que não receio d'elles, que se nos convertam em inimigos. Acredite! Agora podemos confessar a verdade. As sublevações das provincias não expulsavam os francezes de Portugal!—É tambem o meu voto! disse o bispo, pondo a mão no hombro do velho cavalheiro, e persuadindo-o mais pela amenidade do sorriso e dos modos, do que com as palavras. Nós sós contra tropas firmes e disciplinadas podiamos ennobrecer de victimas o martyriologio nacional; mas vencer parece-me que não. Vamos, meu amigo. Melhor o fará Deus! Estamos em suas mãos, e Elle por sua infinita misericordia não ha de levantar de cima d'este reino a protecção visivel, com que nos está soccorrendo. Não vae tudo tão bem comodevia ir? Fomos offendidos e aggravados? Paciencia! Do mal o menos.—Paciencia! exclamou o pae de Leonor já mais brando. Paciencia?! Sinto arder o sangue nas veias, e o pejo nas faces, quando leio as proclamações e editaes d'esses libertadores, que mandam como se não tivessemos patria, rei, e independencia! Os francezes riem-se de nós como de crianças enganadas. Lagarde entrouxa e enfarda as riquezas de Queluz. Junot tracta do Castello de S. Jorge, e embarca caixotes e caixotes cheios de preciosidades. Os traidores, que nos venderam, vão saír com elle ricos e impunes, e não nos levam amarrados com gargalheiras de ferro ao pescoço para nos venderem, como negros, talvez porque não têem navios para tanta gente!...N'este momento os tres chegavam defronte da escada. No alto, entre os humbraes da porta, despontava, pallida e graciosa, a figura delicada de Leonor, envolta em um penteador de rendas, com um meigo sorriso nos labios.—Alli está a nossa irmã da caridade, a nossa fada! Leio nos seus olhos melhores noticias dos enfermos! accudiu o bispo, acenando risonho á donzella, que esperasse, e começando a subir os degraus com a pausa da edade.Manuel Coutinho córou de alvoroço, e a sua vista, em um relance, disse tantos segredos amorosos ao coração palpitante, que voava para elle, que as faces de Leonor se avivaram de instantaneo rubor.Paulo de Azevedo, no peito do qual principiavam a applacar-se as iras murmurando ainda, apenas fitou a filha, sentiu de repente o animo de todo sereno, e as mais grossas nuvens dissipadas. A alegria intima espraiou-se-lhe pelo rosto, e com a bôcca cheia de riso,exclamou ainda do meio dos canteiros de flores:—Ah! Ah! Pelo que vejo levantámo-nos com a aurora e saímos fresca e viçosa com ella?! Manuel, que fizeste á tua noiva, que não te fala? Temos amuos, ou estaes hoje deveras mal, filhos?Os dois amantes, sorrindo-se, trocaram um volver de olhos tão suave e enlevado, que os anjos custodios de ambos, se não fossem tão puros espiritos, teriam inveja ás felicidades da terra.Paulo percebeu e sorriu-se tambem, offerecendo o braço a Manuel ainda ferido no braço esquerdo, e contuso em uma perna, para o ajudar a subir. Ao mesmo passo ameaçava com o dedo a Leonor, accrescentando:—Bem! Muito bem! Entendo! Estão apostados para enganar o pobre velho, que já não sabe de si, nem dos outros? Pois sim! Quer saber, sr. bispo? Estes dois innocentes, que não pestanejam deante de nós, que não dizem uma palavra com medo de que o ar os toque, vou jurar, que já se viram e se falaram hoje da janella?! Adivinhei? Sim, ou não, Manuel Coutinho?—Adivinhou metade. Já nos vimos, é verdade. Agora falarmos não. Para que?—De certo! atalhou o cavalheiro rindo com malicia. Se não me esqueci do meu tempo de rapaz, para que deu Deus olhos aos amantes, senão para dizerem tudo callados? Vamos! São mais do que horas de almoço. O passeio e a disputa abriram-me o appetite! E d'Aubry? Passou melhor a noite? O accesso não voltou?—Não, meu pae. Graças a Deus, está salvo. Disse-o o medico ainda ha pouco.—Ah! o doutor Thomaz esteve por aqui? Não me chamaram?! Com que então temoshomem? Estimo immenso. D'Aubry, apezar de jacobino, é uma perola, e sou seu amigo verdadeiro. Aquelle coração...—É um nobre e grande coração, sr. Paulo, um coração de ouro! atalhou Manuel Coutinho. Devemos-lhe muito, e ainda bem que o acaso me trouxe pela mão ao sitio em elle de proposito se estava deixando matar!...—E o outro francez, o tenente Lassagne? observou o bispo depois de beijar Leonor na testa com paternal carinho. Tenho por elle tanta sympathia!...—Está livre de perigo tambem, disse-o o doutor, redarguiu Leonor.—Podem pezar-se ambos a cêra, que no estado, em que os vi entrar aqui nas macas, não cuidei nunca que escapassem. É verdade, que reis não eram tractados com mais desvelo. Leonor! Nasceste mesmo para mulher de um capitão. Foste uma enfermeira exemplar.—Devia-o ser, meu pae. Não foi d'Aubry quem abriu as portas da sua prisão e enxugou as nossas lagrimas? Manuel lembrou-se, e, salvando-o, verteu por elle o seu sangue. Eu! Havia de fazer menos e ser ingrata? Quando voltar a França, não ha de dizer, que a nossa memoria foi mais curta, do que o beneficio. Achou em Manuel um irmão...—E em ti uma irmã! Muito bem! Elle merece-o. Sabes a minha pena? É aquelle maldito Lagarde! Porque ha de Aubry ser sobrinho de similhante velhaco?! Se não fosse isso! Antes do senhor intendente nos dizer adeus, havia de ajustar com elle as minhas contas! Entremos. Com aguas passadas não moem moinhos.Os tres entraram, e em quanto elles almoçam e conversam, informaremos nós o leitor em duas palavras dos acontecimentos a que alludiram no jardim, quando os encontrámos.A batalha do Vimeiro provou ao duque de Abrantes, que lhe escasseavam as forças para arrancar os inglezes de Portugal. Kellermann, acompanhado de dois esquadrões de cavallaria, apresentou-se no quartel general inglez, e aproveitando habilmente a timidez e a falta de tacto de sir Hew Dalrymple, negociou com elles a famosa capitulação de 30 de agosto, que tomou o nome de villa Cintra, aonde foi assignada, e que feriu ao mesmo tempo o orgulho britannico e o amor proprio nacional, murchando metade dos louros da victoria, e esmorecendo o enthusiasmo, com que Portugal abria os braços aos alliados, e os acclamava restauradores da sua independencia!Os francezes por ella obrigaram-se a evacuar o reino com armas e bagagens, não como prisioneiros, mas como tropas em armas, que os navios britannicos haviam de desembarcar em Rochefort, podendo servir na guerra apenas entrados na sua patria. As praças de guerra deviam ser entregues aos soldados inglezes! Ao exercito era livre transportar comsigo, além da artilheria e do trem, a caixa militar, e tudo o que pertencesse aos corpos e aos chefes! Os feridos e doentes ficaram entregues ao cuidado do governo inglez. Junot prometteu concentrar as suas divisões a duas leguas de Lisboa, e o general em chefe sir Hew a tres leguas. A convenção affiançou de mais a segurança e a impunidade das pessoas addictas ao dominio dos invasores, e a troca de todos os prisioneiros desde o começo das hostilidades. Dos portuguezes, do seu rei, dos seus direitos, nem uma palavra! Foi como se não existissem! Nem os ouviram, nem os attenderam!O general Bernardim Freire de Andrade, aggravado do completo esquecimento ou antes do desprezo, com que viu omittida a suapatria n'estas memoraveis estipulações, protestou contra ellas em 14 de setembro, e suas justas queixas, inseridas nas folhas de Londres, exacerbaram ainda mais a indignação do povo inglez. A capitulação, condemnada como um acto vergonhoso, mereceu o stygma, de que a flagellou a soberba imprecação de Byron em um dos cantos deChild Harold.O duque de Abrantes affrontou a adversidade com valor, e houve-se com destreza antes, e depois do revés. Escarneceram-o por mandar illuminar Torres Vedras na vespera da batalha, festejando antecipadamente o triumpho! As luminarias eram para illudir e conter as iras da capital. Recolhido de novo á côrte, á testa de suas tropas, a impaciencia dos habitantes, por mais que o desejasse, não poude ler o annuncio do desastre no seu rosto impenetravel. Sereno e intrepido conservou seguras até ao ultimo instante as chaves!A anciedade attribulou muitos dias o animo dos moradores. Lagarde e a Policia, caso raro (!) alcançaram entreter as incertezas, encobrindo a noticia da convenção. Os primeiros signaes da liberdade proxima deu-lh'os sómente em 2 de setembro a entrada dos navios britannicos no Tejo. O exercito francez principiou a embarcar por divisões, e com elle se abrigaram egualmente debaixo dos estandartes estrangeiros os portuguezes compromettidos, que o odio publico apodava de jacobinos. A bandeira dos alliados hasteava-se em S. Julião e nos fortes das margens do rio, em Paço de Arcos, e em Belem! Os inglezes acampavam em Arroyos e no Campo de Santa Anna, tomando posse dos quarteis, á medida, que os regimentos de Junot os despejavam.Todos estes movimentos, e a vigilanciamilitar e hostil, com que os francezes se guardavam nas praças com as peças carregadas á bôcca das ruas e os murrões accesos, despertavam as esperanças dos nossos, inflammando o seu zelo, reprimido do maior impeto pelos avisos de sir Carlos Cotton, enviados de bordo da nauHybernia, e pelos conselhos prudentes de alguns patriotas respeitados.Ao povo tudo isto se representava um sonho. Aos homens sisudos doiam no orgulho nacional as condições da capitulação, mas temperava-se a magoa d'ellas com a idéa de estar por um fio a queda da usurpação.D'Aubry e Lassagne, perigosamente feridos no Vimeiro, salvos por Manuel Coutinho, e transportados para a casa hospitaleira do bispo de Malaca, graças aos disvelos do mancebo, tornando a si do agudo padecimento, souberam que veriam de novo a França em breve. Seria sem saudade da terra que iam deixar?XIIIConclusão—Então ainda duvida? Somos livres. Não lhe dizia eu que estavamos nas mãos de Deus?!..—Ainda bem que acabou assim, sr. bispo, ainda bem! Mas sou teimoso. Os inglezes portaram-se mal. Não os defenda. Dão ao céu o que o demonio não quiz...—Valham-me os Santos Martyres de Marrocos, sr. Paulo de Azevedo! Nada o contenta. Nem este dia de gloria e de jubilo, em que todos parecemos loucos!?...—Olhe! Quem vai de certo contente é o Junot. Leva ao seu imperador um exercito que devia ficar prisioneiro...—Se o derrotassemos!...—Derrotavamos de certo. Não tinha retirada. E o traficante de Lagarde, que sae a barra cheio, como um ovo, de tudo o que roubou com as garras da policia. A proposito, viu d'Aubry? Como supportou elle a noticia?...—Da capitulação? Como um homem de brios e de grandes espiritos.—E conta partir, e deixar-nos? Que remedio!Sabe que ha de fazer-me falta. Estava costumado aos seus ditos joviaes, e agora!...—Sente a separação? Tambem eu e elle a não sentimos pouco. Lassagne foi com Manuel Coutinho ao quartel general inglez apresentar-se, e tirar guia para o enbarque. Está muito pallido, mas fica-lhe bem. Excellente rapaz!—Vamos nós dar tambem uma volta pela cidade. Apezar de tudo... accrescentou sorrindo, a alegria do povo, mais ou menos, sobe sempre á cabeça dos que não se illudem com as apparencias. O dia 15 de setembro será por muito tempo um dia memoravel nas recordações da patria.—Ora ainda bem que o ouço falar assim. Vamos.E os dois saíram pela porta do jardim.D'Aubry ao mesmo tempo achava-se no vão de uma janella da sala, onde víra Leonor pela primeira vez. Mais desmaiado e mais consumido de physionomia, do que antes dos ferimentos, os olhos conservavam, todavia, o antigo brilho, offuscado n'este momento por um véu de contemplativa melancholia.Tinha na mão um volume aberto, estava de pé, e julgando-se só fugia-lhe a vista com o pensamento das paginas mortas do livro para as paginas vivas das ultimas semanas da existencia. Duas lagrimas furtivas, e a magoada expressão do rosto, revelavam, que, se o corpo convalescia da molestia, a alma traspassada de occultos espinhos ainda continuava enferma.De repente uns dedos melindrosos, tocando-lhe no hombro ao de leve, fizeram-o estremecer. Sem ver adivinhou que era Leonor. A côr afogueou-lhe as faces subi De repente uns dedos melindrosos, tocando-lhe no hombro ao de leve, fizeram-o estremecer. Sem ver adivinhou que era Leonor. A côr afogueou-lhe as faces subitamente, e um sorriso contrafeito passou-lhe pelos labios, mais triste, do que a propria dor immobil.—Que é isto?! accudiu a donzella, fitando-o compassiva e carinhosa. O meu doente aqui, e só, com os olhos no céu, e, Deus me perdoe (!) ainda humidos de pranto!? O que teve Armand? Que mal lhe fizemos para estar assim magoado? Offendi-o sem saber, offendeu-o alguem d'esta casa innocentemente?!...—Offender-me, sr.aD. Leonor! Os anjos deixam saudades e não aggravos! Estava-me lembrando dos ditosos dias que passei aqui...—Ditosos?! Entre dôres, e moribundo?!—Ditosos sim. Que eram as dôres para mim, quando a tinha a meu lado, imagem suave da consolação e do affecto? O corpo parecia morto, estava quasi morto, mas se soubesse o que o espirito vivia e sonhava então!... Delirios de enfermo! Illusões que a realidade cura... cruelmente, é verdade, ou que só o tumulo acaba muitas vezes!...—Não diga isso. O que chama illusões são realidades, todos aqui dariamos a vida, que lhe devemos, para o vermos salvo e satisfeito. Creio que apesar de se ver entre estranhos...—Estranhos?! Não me faça ingrato, que não lh'o mereço. Nunca houve mais extremosos amigos! Deus, compadecido da minha solidão, quiz dar-me antes de morrer, porque me diz o coração que o primeiro campo de batalha será a minha sepultura, a alegria de possuir no seu affecto o que a morte de meus paes me roubou na infancia desamparada. Leonor! Consinta que repita assim o seu doce nome. Disse-me um dia que era minha irmã!...—Acha que o não fui, que o não sou já?! atalhou ella com um sorriso meigo.—Não! Porque me salvou da morte, quando a eu buscava e ella vinha? Minha irmã! Que distancias, que inimigos, e que esquecimento dentro em dias a vão apartar para sempre do triste ferido! É noiva, ámanhã seráesposa! Póde caber no seu peito com o amor... de outro, a memoria do estrangeiro, que lhe passou deante apenas como sombra, que lhe deu occasião de provar os thesouros admiraveis da mais piedosa compaixão?!...E, proferindo estas vozes apaixonadas, o mancebo, pallido, e quasi desvairado, suffocava-se em cada phrase, porque a dôr lhe cortava o peito. Leonor entristecia-se de o ouvir. Aquelles gemidos eram mais do que amisade, eram gritos de uma ternura delirante, que a vontade em vão luctava por conter. Em cada suspiro, em cada palavra gottejava o sangue da alma.A donzella commovida fez-se de repente pallida, como elle; e afogando em um sorriso superficial os sentimentos, que principiavam a combatel-a, respondeu, affectando a serena innocencia da ignorancia:—Somos irmãos, não o disse já? Devo-lhe tanto, que nas orações, nas supplicas, que elevo ao céu, não posso, não sei, separar do nome de meu pae, do nome e do extremo... do que ha de ser meu marido, o nome estimado de Armand d'Aubry! A minha alma é maior do que suppõe. Cabem n'ella amor de mulher, affecto de filha, e amisade de irmã!...—Leonor! Se eu ousasse!... Se quizesse adivinhar? atalhou o sobrinho de Lagarde, em cujas pupillas faiscou momentaneamente um clarão de esperança. É um segredo, que o meu coração calla e recolhe em si, mas que o devora como alguns venenos corroem o vaso que os encerra...—E envergonha-se de o confessar? accudiu ella tremula do estado, em que o via, e receiosa da palavra imprudente, proxima a saltar dos labios do mancebo. Cuida que não adivinho o motivo da sua tristeza, a razão das lagrimas,que esconde, e que são o orgulho da nossa amisade?!...—Ah! Calle-se, Leonor. Calle-se! Não vê que se me espedaça o coração de ouvil-a falar assim!...—Das saudades, que leva d'aqui, e que nos deixa?! proseguiu a filha de Paulo de Azevedo no mesmo tom, mas fria e tremula por dentro da dôr e anciedade comprimida de Aubry. Não se envergonhe d'ellas! Tambem eu as sinto como irmã...—É tão pouco! mumurou Armand quasi desfallecido e a meia voz.Depois, cobrindo o rosto com as mãos, e suspirando, conservou-se por algum tempo mudo. Quando ergueu por fim a fronte, a vista era já mais firme e socegada, e o sorriso doloroso menos cortante.—Perdoe-me, Leonor, affligi-a, bem sei. Somos irmãos, só irmãos, nada mais! Nãopodemosser senão irmãos!... O que disse—o que pensei um momento—foram sonhos, foram delirios. Esqueçamol-os. Não conheci minha mãe. Apenas se inclinou sobre o meu berço para se despedir de mim com um beijo e voar ao seio dos anjos. Nunca amei do coração senão agora! É falso! Nem agora! A minha paixão, a minha esposa, foi sempre a gloria, não quero, não devo ter outra, e ha de ser. O tumulo é o leito nupcial que ella abre aos que a adoram. Se lhe disserem breve, que este amor, o da gloria, me custou a vida, dê-me uma lagrima e uma memoria! Manuel Coutinho não o póde estranhar. Os mortos não causam ciume aos vivos!...—Jesus! Aubry! Que tristes idéas! Magoam-n'o os festejos populares? Se quer vamos para outra casa, aonde se ouçam menos!—Não! Não! A maior dor passou. Veja! Quero outra vez ser o estouvado, que a obrigavaa rir-se de suas eternas distracções! Sae? Mal conto por minutos as horas que tenho de a ver ainda! Não vê que roubar-m'os é quasi um delicto? Recaí nos galanteios francezes, pasto usual de suas ironias. D'esta doença é que me não curo!...Leonor meneou a cabeça. A voz e o gesto desmentiam as palavras. Armand amava-a, e fiel á lealdade jurada e á amisade de Manuel Coutinho, arguia-se do sentimento invencivel como de um crime.A entrada de Lassague, do seu amante, e do cavalheiro de Mafra trouxe diversão salutar á violenta coacção dos dois.Nem um, nem outro podiam já dissimular.—Bravo! gritou da porta Paulo de Azevedo. Não sabes Leonor? A bandeira branca, a bandeira sem mancha, já tremula no castello e nas fortalezas! Os vivas nas ruas da baixa atrôam tudo. Os foguetes em girandolas sobem e estalam nos ares. Os repiques dos sinos, as salvas de artilheria no rio, coalhado de navios e botes, e nas torres, ensurdecem. Os montes da cidade estão negros de gente. É um delirio, uma loucura! Deram-me mais de cem abraços, e não sei ainda a quem os devo! Somos livres. Temos rei e patria!... Manuel Coutinho dentro de tres dias quero que seja meu filho. Temos a dispensa concedida e o padre de casa, o nosso santo bispo. D'Aubry! Deixe rir e cantar os rapazes! Não faça caso. Quando vier a paz geral... venha comer comnosco a Lisboa as broas do natal!...Armand, ouvindo anunciar para tão breve o casamento de Leonor, tinha-se tornado livido como um cadaver, e vacillára. A vista cobriu-se-lhe de nuvens, e se Lassagne o não amparasse, não se sustinha de pé. A donzella, á qual Manuel Coutinho apertava a mão com namorado enlevo, leu a desesperação nos olhos doofficial francez, e sentiu quasi remorsos do amor que o matava a elle. Silenciosa e pallida inclinou a fronte, e sepultou no peito o suspiro, que ia jà a soltar indiscretamente. D'Aubry venceu-se de pressa.Tornando-se a si, adivinhou o que encerrava de affectuoso e nobre o silencio da noiva, e resolveu corresponder-lhe com generosidade egual. Pegando na mão de Manuel e de Leonor, e unindo-as, disse ao velho cavalheiro com um sorriso:—Sr. Paulo de Azevedo! Este dia de jubilo para Portugal não me entristece. Nós o vingaremos, como soldados, em outros campos. Consinta que na hora de partir, e de lhe dizer adeus para sempre, eu beije a mão de minha irmã, e que estreite nos braços o irmão que me salvou!...E depois de abraçar Manuel, os seus labios tocaram por instantes a bella mão de Leonor. A donzella, sentindo caír sobre ella uma lagrima ardente, que lhe escaldou a alma, refugiou-se confusa e anciosa contra o peito do esposo promettido.—Aubry! Não acceito desculpas. Ha de ser dos nossos, assista ao casamento de minha filha!—É impossivel! redarguiu Armand com tristeza, logo dissipada pelo impeto affectado do seu genio jovial. As nupcias de Manuel fizeram-me lembrar, de que tambem tenho uma noiva, a gloria, noiva que espera por mim para consumar o meu destino. Leonor, adeus. É melhor despedirmo-nos já d'aqui... até á eternidade! ajuntou em voz sumida.—Armand! respondeu ella no mesmo tom. Fique! Não vê que a morte, que deseja, é um suicidio?!—Não. É um dever. Adeus. Lassagne! Quando em França nos recordarmos de Portugal...a doce imagem do anjo, que nos salvou, sempre gravada no peito, será a companheira e a consoladora de nossas saudades. Manuel Coutinho! A sua felicidade com a esposa, que vae ter, é para ser invejada até do céu. Não importa, merece-a. Nunca encontrei maior alma, nem coração mais puro. Sr. Paulo de Azevedo! Ficam-lhe dois filhos para amparo da sua velhice. Quer lançar uma benção sobre o terceiro, que não tornará a ver talvez, mas que jura amal-o sempre?O cavalheiro commovido apertou-o nos braços, beijou-o como filho, e arrancando-se a custo ao doloroso enlace, exclamou:—D'Aubry! Se Deus me tivesse dado um filho assim?! Adeus. Não se demore. Faltar-me-ia o animo. Não quero... vel-o partir.Um momento depois Lassagne e Armand volviam para aquella casa um derradeiro e sentido olhar. O primeiro levava só vivas as saudades; o segundo deixava n'ella para sempre metade da sua alma e a alegria de toda a vida.Silenciosa e triste, Leonor seguiu-os com a vista até desapparecerem. Depois enxugou as lagrimas a furto, e suffocou os suspiros.Teria receio de amar de mais o irmão que fugia d'ella para não entristecer a sua felicidade!?Quem se atreverá a decifrar os mysterios do coração feminino?A guerra da independencia prolongou-se. Armand e Manuel Coutinho, pelejando debaixo de bandeiras oppostas, não se encontraram. Paulo de Azevedo e sua filha falavam a miudo do official francez, que o seu coração não sepultára com a ausencia, e o avô, fazendo saltar nos braços o primeiro neto, fructo mimoso do afortunado enlace, muitas vezes repetia comos olhos humidos: Deus te faça um homem, como teu pae, ou como Armand d'Aubry!Quando a batalha de Waterloo encerrou a ultima pagina da epopeia maravilhosa do primeiro imperio, Manuel, que subíra por suas proezas a um posto elevado no exercito, e que teve a gloria de não assistir obscuro áquelle derradeiro feito de armas, levantou do campo o coronel d'Aubry, moribundo e varado de balas nos quadrados da velha guarda. A morte d'esta vez quizera accudir, mas vagarosa e incerta, ao chamamento do mancebo. Tres mezes depois Armand pelo braço do esposo de Leonor batia de novo á porta da casa, de que se despedira sem esperanças de a tornar a ver.A sua presença, festejada por Paulo de Azevedo e pela filha, como verdadeira ventura domestica, avisou a serena alegria, em que se escoavam os ditosos dias dos seus amigos. D'Aubry mostrava ter esquecido na lucta de gigantes da épocha o louco amor, que lhe apressára annos antes a saída de Portugal. Nem um gesto, nem uma palavra revelaram da sua parte a menor fraqueza! Sómente, ao apartar-se, já na vespera de embarcar para Londres, é que o segredo foi revelado por um gemido mais alto do coração. Leonor, sempre discreta, simulou não o entender, mas percebeu que o francez partia para não voltar! A antiga ferida continuava aberta, seria sem remedio d'esta vez?FIM DO SEGUNDO E ULTIMO VOLUME DA«CASA DOS FANTASMAS»NOTAS AO SEGUNDO VOLUMEIAs chacotas os andores, o baile das espadas etc.pag. 7A festa do Corpo de Deus, instituida em 1264 pelo Papa Urbano IV, para dar a Jesus Christo culto particular, era solemnizada nas villas e cidades principaes do reino com exquisitas invenções de figuras, danças, e folias. A procissão saía na primeira quinta-feira, depois da festa da Santissima Trindade, attraindo os olhos, e enlevando a imaginação do povo pelo esplendor e pompa, de que se rodeava.As noticias impressas mais antigas, que sobrevivem ácerca d'ella, encontram-se nasDissertações Chronologicasde João Pedro Ribeiro, e noNovo Regimento para o governo da mesa da bandeira de S. Jorge, fundada nas cartas, alvarás e lembranças do antigo regimento, que se queimou pelo terremoto de 1755, publicado pelos habeis archivistas da camara municipal de Lisboa, em cujo cartorio se guarda.No seu romance intitulado oMonge de Cister, com tanta rasão admirado como primoroso modelo da novella historica, descreve o sr. A. Herculano (tomo II e pag. XVII) a procissão de corpus referida ao anno de 1384; reinado de D. João I; e o quadro do poeta, desenhado do natural, é tão perfeito e verdadeiro, que vemos resuscitadas e vivas n'elle as feições do grande espectaculo religioso da meia edade n'este dia.João Pedro Ribeiro, no tomo III dasDissertações Chronologicas, doc. LII pag. 153, insere um alvará datado de 16 de agosto de 1630, pelo qual o rei ordena, que os tribunaes do Porto acompanhem de futuro a procissãodo Corpo de Deus da mesma fórma, que a tinham acompanhado n'este anno. No tomo IV dasDissertações(doc. XIII a XVI.) publica duas cartas da rainha regente D. Catharina, uma datada de 30 de maio de 1560, e a outra de 13 de maio de 1561, nas quaes dicta alguns preceitos ácerca do modo e fórma de reger a procissão na cidade do Porto, e de cohibir as representações deshonestas e escandalosas, introduzidas n'ella.Outras duas cartas, uma de el rei D. Filippe III, escripta em Aranjuez em 15 de maio de 1607, outra dirigida ao juiz, vereadores e procurador da camara da cidade do Porto, pelo marquez de Castello Rodrigo em 18 de maio de 1608, (doc. XV e XVI), tractando do mesmo assumpto, respondem ás queixas do bispo D. Fr. Gonçalo de Moraes, e providenceiam ácerca d'ellas. Finalmente oRegimento feito pelos officiaes da camara da cidade do Porto para a procissão de corpus com o parecer do Dr. Antonio de Cabral, chanceller da Relação, regimento approvado pelo alvará de 15 de julho de 1621, encerra o plano de distribuição das figuras, córos, danças, folias, monstros, chacotas, imagens, anjos, demonios, andores, charolas, communidades, clero, e tribunaes, que haviam de acompanhar o prestito, determinando o logar, que lhes cabia n'elle, e a ordem em que tinham de caminhar.NoRegimento Novode Lisboa, que já citámos, diz-se que a primeira vez, que o sr. S. Jorge saiu com o seu estado na procissão foi no anno de 1387 por ordem expressa de D. João I. No reinado de D. João III, em 1538, o prestito era tão vistoso e variado pela singularidade e invenções das figuras, e pela opulencia e riqueza que ostentavam as corporações mechanicas, que não admirava que se despovoassem os arrabaldes e até as provincias para assistir a tão sumptuosa festa. Em tempos mais proximos havia toirada no dia da procissão.D. João V, instituindo a Patriarcal em 1717, decretou nova fórma á procissão de corpus, tornada menos profana e mais devota. A grande pompa e o immenso cortejo, que a ennobreceu no anno de 1719, proporcionou fecundo thema á eloquencia do incansavel irmão Barbosa Machado, auctor da obra a que se refere o texto.IIO resto, o peior da empreza, encarregou-se o brigadeiro Margaron de o concluir por ordem de Junot, etc.,pag. 29.Coimbra sublevou-se contra os francezes no dia 22 de junho, formando logo para sua defeza a legião academica, composta dos estudantes ás ordens do vice-reitor. O Porto tinha-se levantado no dia 18, dando o exemplo a toda a provincia do Minho. O Algarve insurgiu-se a 16. A provincia da Beira não se demorou tambem. Dentro de poucos dias o incendio tinha-se extendido a todo o reino, tornando-se geral.Os francezes conservavam guardas avançadas em Pombal e Leiria. Quinze estudantes e um cabo conceberam o projecto de desalojar, e sairam com esse intento de Coimbra no dia 28 de junho. Perto de Leiria foram accommettidos por vinte e dois dragões de Junot; travou-se a peleja; a cavallaria inimiga cedeu, e communicou o panico ao resto da força postada á entrada da ponte. Esta, recuando, dispersou-se, ferida de terror.O governo francez, offendido do atrevimento, decidiu dar um exemplo severo, castigando Leiria. O general Margaron partiu de Lisboa á frente de dois batalhões, de quatro companhias escolhidas, e de seis peças de artilheria, incumbido da execução marcial decretada contra a cidade.A columna provou logo em Alcoentre o seu ardor de vingança. Tomando o innocente cirio da Ameixieira por um tropel de guerrilhas, Margaron manda armar uma embuscada por traz de um pinhal, e o chefe de esquadrão Salm-Salm investe, intrepido e implacavel, os aldeãos devotos, como se fossem leões embravecidos. Aos primeiros tiros caem por terra banhados em sangue o gaiteiro e o prégador. Depois são assassinados indistinctamente homens, mulheres, e crianças. A fuga salva o maior numero da furia dos vencedores, cujos despojos n'esta batalha incrivel são duas bandeiras de Nossa Senhora, expostas como tropheus no quartel general. O boletim de 7 de julho teve a ingenuidade de commemorar como derrota de um exercito de rebeldes esta carnificina do povo inerme!No dia 5 uniu-se o general Thomiéres com 800 homensa Margaron, e marcharam ambos contra Leiria A cidade passou, como é de crer, dos fogosos arrebatamentos de jubilo patriotico a uma sombria apprehensão dos males, que a ameaçavam. Não contava para se defender, senão com os brios já desalentados de algumas companhias de ordenanças, que haviam principiado a organizar-se sob o commando do coronel de cavallaria Rodrigo Barba Allardo, alcaide mór. O capitão mór, Manuel Trigueiros, auxiliava-o com mais zelo, que pericia, e o coronel de milicias Isidoro dos Santos Ferreira procurava reanimar o esforço de todos com seus discursos. Era pouco para arrostar em fortificações, nem meios solidos de resistencia o valor disciplinado dos soldados do exercito da Gironda.A noite, e a noticia do que occorrêra em Alcoentre, acabaram de arrefecer o enthusiasmo amortecido dos moradores. Rodrigo Barba, os magistrados, e o bispo, não julgando prudente, desarmados, como se viam, affrontar as iras dos inimigos, evadiram-se sem ruido durante a calada das trevas. Quando rompeu o dia, apenas oitocentos homens da plebe, e duzentas ordenanças de espingardas e chuços se atreveram com temeridade louca a disputar sem chefes a entrada da cidade aos francezes. Margaron deu-lhes as honras de guerreiros consumados, tomando as disposições, que poderia exigir uma força regular e numerosa. Avançou contra Leiria com as tropas divididas em duas álas e a artilheria no centro. Disparados os primeiros canhões, e dadas as primeiras descargas de mosqueteria, o povo fugiu em confusão, e os francezes apoderaram-se da cidade com perda de um homem morto e de dois feridos!Os vencedores despregaram então toda a crueldade contra velhos, mulheres, e crianças, que imploraram debalde a sua misericordia, e metteram toda a povoação a ferro e saque. O principe de Salm-Salm sobresaiu com ferocidade n'esta campanha contra prisioneiros inermes. O palacio episcopal, a Sé, e os templos foram roubados; as egrejas desacatadas; as casas particulares invadidas e despojadas. O resultado foi incenderem-se mais os odios, e recrudescer a resistencia nacional. (Vid. general Foy tomo II liv. VIII).III

As chacotas os andores, o baile das espadas etc.pag. 7

O resto, o peior da empreza, encarregou-se o brigadeiro Margaron de o concluir por ordem de Junot, etc.,pag. 29.


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