VO lindo Rouflard
Saíndo de casa da sr.ª Montémolly, Casimiro vae passear algum tempo noboulevard; sente o desejo de tomar ar, o que é sempre optimo para a digestão, depois d’um jantar abundante. Casimiro accende um charuto, essa necessidade facticia dos ociosos.
De repente, mexendo n’uma das algibeiras do lado, sente debaixo dos dedos alguma coisa que tem a fórma d’um cartucho de dinheiro. Era effectivamente um d’estes lindos estojos de marroquim, forrados decobre, e feitos de proposito para guardar ouro. O nosso rapaz tira o cartucho da algibeira, desvia-se para um lado e conta o dinheiro que ha no estojo; acha vinte e cinco luizes. Torna a fechar o estojo, e mette-o outra vez na algibeira, dizendo de si para si:
—Quinhentos francos! ella introduziu-me isto no bolso do paletot; terá dito comsigo: «Elle não deve já ter muito dinheiro.» e não se enganou, restavam-me apenas vinte francos; mas receber sempre dinheiro d’esta mulher. Ah! é humilhante, é vergonhoso! ainda se ella me mettesse na algibeira quatro ou cinco mil francos de uma vez, ao menos teria eu para muito tempo sem andar á divina; porém ella terá todo o cuidado em me não dar nunca similhante quantis, quer ter-me sempre debaixo da sua dependencia. E não quer que eu trabalhe; não, teria um desgosto se eu podesse passar sem ella. E diz que me ama, sim, por si, mas não por mim. Infelizmente, nas mulheres, esta maneira de amar é a mais vulgar. Ah! as mulheres de hoje não são como as de Sparta, que diziam ao marido que partia para a guerra: «Volta vencedor ou faze-te matar.» Dir-me-hão talvez que é tambem uma singular maneira de amar qualquer pessoa o dar-lhe de conselho que se faça matar!Ne quid nimis!o excesso em tudo é um defeito. Vamos jogar o bilhar, é a estas horas que Miflaud costuma estar no café do theatro. Ah! diabo! agora me lembro, é hoje o meu dia de lição á menina Proh; irei? Mas eu não estou em estado de dar uma lição de desenho. Ambrosina fez-me beber tantas coisas! Devo mesmo exhalar um forte cheiro a vinho e a licor; não posso apresentar-me n’este estado deante d’uma familia respeitavel, não, seria indecoroso. Ó delicias de Capua! aqui tendes os vossos resultados! Ambrosina faz bem tudo o que é necessario para me tirar o gosto pelo trabalho. Ora adeus! tanto peior! toca a jogar o bilhar.
Quando a gente adquiriu uma vez o habito de não pensar senão, em divertir-se, é muito difficil vencel-o e ter força bastante para rejeitar o prazer que se apresentae preferir-lhe o estudo ou trabalho. É o que acontece n’este momento a Casimiro; este rapaz não é falto de bons sentimentos, do que deu provas encarregando-se de dar lições de desenho á filha da sua vizinha: deseja ganhar dinheiro, já pelo seu talento, já exercendo um emprego em qualquer secretaría; mas lá está a amante para lhe tolher o passo; como é rica, quer monopolizar o amante, quer o que pobre moço não viva senão para ella e por ella! Quando uma mulher, que é ainda muito encantadora, quer subjugar um homem, emprega n’isso todos os seus meios, e para agradar tem ella muitos.
Casimiro não vae dar a lição á menina Angelina; vae para o seu café favorito, onde encontra alguns rapazes, amigos de vádiar como elle; ha mesmo alguns que fazem ainda mais: vêm para o café assim que elle se abre, sentam-se a uma meza e põem-se a jogar o dóminó até á hora do jantar. Acabada esta refeição, voltam muito depressa a continuar o seu joguinho, e não se vão embora senão quando o estabelecimento se fecha. Vão dizer-me que estes rapazes são jogadores e não ociosos ou vádios; é possivel; eu, por mim, chamo vádios áquelles que passam a vida no café.
Depois de muitas horas consagradas ás carambolas, Casimiro lembra-se que a amante quer ir tomar sorvetes ao café Napolitano, antes de ir para o theatro; é pois mister que a vá buscar antes da hora em que deve começar a peça da Opera-Comica. Dirige-se portanto a casa da sr.ª Montémolly, que se acha lindamente vestida, apresentando-se com essa desinvoltura que nem todas as mulheres sabem ter; porque umas conservam-se sempre muito direitas, muito impertigadas, outras mostram demasiado desleixo e indolencia.
—Já jantou? pergunta a formosa dama.
—Não, nem mesmo pensei em tal; não tive appetite.
—Pois bem! nem eu tão pouco. Mas sabe o que devemos fazer? É irmos cear ao café Inglez depois do espectaculo. Agrada-lhe isto?
—Oh! perfeitamente; a senhora tem sempre excellentes idéas.
A menina Adriana foi arranjar uma pequenavictoria, e voltou com ella muito depressa para ficar mais cedo livre de sua ama. Ambrosina e o amante fazem-se conduzir ao café tão affamado pelos seus sorvetes, depois dirigem-se á Opera-Comica, e vão para um camarote que a sr.ª Montémolly mandára alugar antecipadamente.
Cantava-se uma opera nova de Auber, d’esse celebre compositor, ao qual devemos tantas obras primas, tantas operas que ninguem se enfastia de ouvir; vae envelhecendo, dizem algumas pessoas, mas enganam-se; quando um homem compõe tão encantadoras melodias, é porque se conserva sempre moço, para Auber parou o tempo.
Casimiro escutava a musica, emquanto que Ambrosina se entretinha sobretudo em observar se o seu companheiro dirigia o binoculo para algumas senhoras. Mas tudo se passa em bem, porque o rapaz não fixou muito tempo as suas vistas no mesmo lado. Acabada a opera, o par amoroso dirige-se ao café Inglez, que fica apenas a dois passos da Opera-Comica. Alli, pedem um gabinete reservado e mandam vir uma bella ceia, á qual ambos fazem honra. Não lhes direi se esta magnifica ceia é entremeada de ternas caricias e de juramentos de amor, deixo isso á sua discrição; o que é certo, é que são quasi duas horas da madrugada quando a sr.ª Montémolly diz:
—Creio que é tempo de irmos para casa. Diga ao creado que nos vá buscar uma carruagem.
Nunca faltam carruagens n’este rico e elegante bairro, onde se faz da noite dia, de modo que ás duas horas da madrugada está ás vezes mais animado, mais cheio de vida que ao meio dia. Casimiro leva Ambrosina a casa, depois faz-se conduzir ao seu domicilio, na rua de Paradis-Poissonniére, dizendo comsigo:
Aqui está um dia bem empregado; foi um dia cheio.
Mas, ao dizer isto, o rapaz tambem estava bem cheio, porque se não tinha poupado mais á ceia doque ao almoço; o Champagne tinha representado um grande papel em todo este dia; elle não estava bebedo, porque um homem bem educado nunca se embebeda, mas estava n’esse estado de ebriedade que é o meio termo entre a embriaguez e o perfeito juizo.
—Parou emfim a carruagem. Casimiro, que se acha deante da sua porta, paga ao cocheiro, e vae puxar o botão de metal que deve fazer tocar a campaínha e acordar o porteiro, dizendo comsigo:
—Comtanto que o meu estimavel porteiro não tenha o somno muito pezado, e que saiba que não recolhi ainda.
Na occasião de tocar a campainha, Casimiro vê um vulto estendido deante da porta; abaixa-se para ver melhor, estende cautelosamente o pé, o vulto mexe-se; é um homem que está alli deitado.
Casimiro faz um movimento para a rectaguarda, na idéa de que é talvez um ladrão que finge estar a dormir, e elle não tem sequer uma bengala para se defender; mas o vulto não se mexe mais, e o rapaz decide-se a puxar outra vez o botão de metal.
O porteiro não abre ainda, e Casimiro, impacientado, empurra com o pé o individuo que alli está estendido tomando-lhe a passagem; ouve-se um grunhido surdo e levanta-se um pouco uma cabeça, que tinha a cara voltada contra a porta, resmungando:
—Então! olá! o que é que temos?
—O que está aqui fazendo deitado na rua?
—Bem viu que estava dormindo. Então agora já se não pode dormir socegado?
—Não se dorme deante da porta d’uma casa.
—Mas eu sou cá do predio, é o meu domicilio politico... nas aguas furtadas...
—Se mora aqui, porque não entra para sua casa em vez de estar ahi deitado? Estaria muito melhor na sua cama.
—Na minha cama!... é fresca a tal minha cama! um enxergão e milhares de percevejos... nada mais...
—Mas, emfim, na rua não se dorme; se vem porahi alguma patrulha, algum policia, levam-n’o para a estação.
—Isso e o que eu quero é tudo um... estou á espera d’elles. Que afinal quem tem a culpa é o maroto, o patife do Chausson, que me não abre a porta.
—Ah! o porteiro não lhe quer abrir a porta?
—Sim, Chausson, o meu creado.
—Quer dizer, o porteiro?
—Porteiro, é verdade... mas foi meu creado e por muito tempo. Isto fal-o admirar, mas é assim mesmo.
Quando eu era amo d’elle dava-lhe ás vezes umas correcções, elle bebia-me os licores, licores da sr.ª Amphoux... da verdadeira, que me mandava a minha Dulcinéa... e hoje, para se vingar, o meu creado, que veiu a ser meu porteiro, deixa-me ficar de noite no meio da rua.
—Oh! mas ha de abrir a porta por força.
E Casimiro vae puxar com todas as suas forças o botão de metal.
Ao barulho da campainha succede a voz do porteiro, gritando:
—Rouflard! se não acabas de tocar a campainha, faço-te despedir ámanhã.
—Não é Rouflard que toca, sou eu... abra immediatamente, porteiro; mando eu!
—Como! é o sr. Casimiro! Oh! perdão, eu pensava que já estava recolhido ha muito tempo. Ah! se eu soubesse que era o senhor, bem sabe que não costumo fazel-o esperar...
Abre-se a porta effectivamente. Casimiro entra, dizendo ao homem que está deitado no chão:
—Bom! aqui tem a porta aberta... Então agora fica na rua?
O tal individuo, a quem o porteiro chamou Rouflard, parece hesitar em abandonar a sua posição horisontal, decide-se comtudo a fazel-o, ergue-se ou antes enfia pela porta dentro aos trambulhões, e vae agarrar-se á parede. Chausson, o porteiro, levanta-se, veste uma jaqueta, que lhe serve de chambre, e vem com um castiçal na mão tornar a fechar a porta eofferecer luz ao seu joven inquilino para subir a escada.
Casimiro está entretido a examinar o homem que se acha encostado á parede, contra a qual muito lhe custa a segurar-se, porque está completamente ebrio.
—Se o senhor quer levar esta luz para subir a sua casa... sinto immenso tel-o feito esperar; eu bem ouvia tocar, mas pensava que era ainda o Rouflard, e por isso é que não abria...
—Vejam este brégeiro! queria deixar o amo na rua... n’isso reconheço bem o meu antigo lacaio...
—Cale-se, Rouflard; quando um homem se põe n’esse estado, recolhe-se antes da meia noite, ao menos.
—Mas se eu me quero recolher mais tarde, porque assim me dá na vontade, tens obrigação de me abrir a porta, percebeste tu, meu creado?
—Graças a Deus, já não sou seu creado! esse tempo já lá vae.
—Quando me bebias os licores!
—Tu não me pagavas as minhas soldadas, portanto era forçoso que eu apanhasse alguma coisa para me sustentar... mas tu comias tudo!
—Prohibo-te que me trates por tu, percebes meu creado?
—E eu prohibo-te que me chames teu creado... Vae-te deitar, borrachão.
—Vae para o teu cubiculo, perro, ámanhã falaremos... não te digo mais nada... teu amo te ensinará!
Depois de haver atirado esta ameaça, que faz encolher os hombros ao porteiro, Rouflard dirige-se, cambaleando, para a escada, apoia-se ao corrimão e lá consegue subir a muito custo. Casimiro tinha ficado em baixo para assistir ao dialogo entre o bebedo e o porteiro; sentia tambem uma certa curiosidade, e desejava saber como é que aquelle homem, tão mal arranjado, que parecia tão miseravel, pudera ter por creado o sr. Chausson; pergunta pois ao porteiro, assim que Rouflard desapparece na escada:
—Este bebedo, que affirma que o senhor esteve ao seu serviço, fala verdade?
—Oh! sim, senhor, não o nego; mas o que o senhor difficilmente acreditará, vendo-o agora tão miseravel, é que, ha vinte e cinco annos, este mesmo individuo era então um homem da moda, o menino querido de todas as mulheres, que não lhe chamavam senão o lindo Rouflard! o encantador Rouflard! e, a dizer a verdade, era então um bonito rapaz, bem feito, airoso de corpo, uma cara amavel, fino... Oh! o maganão sabia dar aos olhos todas as expressões possiveis para seduzir as mulheres, e, palavra! entendia da coisa... era o seu officio?
—O seu officio? O que quer dizer com isso?
—Pois é bem facil de perceber: quero eu dizer na minha, que o lindo Rouflard não se occupava n’outra coisa senão em fazer a côrte ás senhoras, e atirava-se de preferencia ás senhoras ricas. Então recebia d’uma, e depois de outra! mimos d’esta, presentes d’aquella. Quando os fornecedores, os crédores, lhe vinham pedir dinheiro, nunca era elle quem lhes pagava. Eu estava ao facto de tudo, era o seu creado grave, o seu homem de confiança; elle dava-me as intrucções, dizia-me: «Chausson, has de mandar o meu alfaiate a casa de Leonor e o meu sapateiro a casa da Ernestina, ellas pagarão a esses patifes; não quero descer a pagar aos meus crédores; é de muito máu tom! Ah! é verdade, has de ir a casa da sr.ª fulana, ganhei-lhe hontem cem luizes aoécarté; irás pedir-lh’os, que ella dá-t’os immediatamente, já se sabe; demais, as dividas de jogo são sagradas, pagam-se em vinte e quatro horas. Passarás tambem por casa da baroneza ou da condessinha; apostámos nas corridas, ganhei mil escudos a uma, mil francos á outra, receberei tudo isso, tenho precisão de dinheiro!» Eu ia fazer estes recados, e durante muito tempo aquellas senhoras pagaram, pagaram muito bem sem fazerem a menor observação. Então apanhava eu alguma coisa por conta das minhas soldadas, e bebia licores da sr.ª Amphoux pelo resto. Oh! os licores das ilhas! aquillo era o meu fraco! Mas a pouco e poucoas coisas principiaram a não correr tão bem: Rouflard, que bebia como uma esponja, viu dentro de pouco tempo o nariz pôr se-lhe côr de beterraba; isto fez-lhe muito mal no conceito das amantes; em geral as mulheres não gostam dos narizes vermelhos. Quando meu patrão me mandava buscar a quantia d’uma aposta ou o dinheiro perdido ao jogo, aquellas senhoras diziam-me algumas vezes: «Rouflard engana-se, não fui eu que perdi, foi elle;» ou então: «Sinto muito, mas a minha thesouraria está fechada.» Algumas tinham a confiança de me dizer: Apre! estou farta de aturar esse bebedo do Rouflard, não estou para o sustentar por mais tempo.» Quando eu voltava com estas respostas a meu amo, elle ficava furioso, queria desancar-me: depois, para arranjar dinheiro, via-se obrigado a vender uns apoz outros os lindos presentes, ou as joias que havia recebido das suas apaixonadas. Quando não lhe restou mais nada que vender, e quando eu vi que já lhe não mandavam licores das ilhas, disse commigo: «É tempo de largar o commodo!...» Deviam-se-me seis mezes das minhas soldadas, mas era mister não pensar em tal. Deixei pois o lindo Rouflard, que já não tinha nada de bonito nem se vestia como um elegante, e que para salvar-se das difficuldade, procurava arranjar outra amante nos casos de o sustentar, e consegui achar um bom emprego. Pude ajuntar alguma coisa, casei-me e obtive um logar de porteiro n’esta casa, onde estou ha oito annos, e onde morreu minha mulher, o que me não impede de ser muito feliz. Mas faça o senhor idéa de qual não foi a minha surpreza quando, ha perto de nove mezes, vejo chegar aqui um homem vestido como um mendigo, sujo, desfigurado, que me perguntou se eu tinha no predio um cantinho, um sotão, ou mesmo uma agua-furtada para lhe alugar. Eu não o podia crer; todavia, na expressão do rosto fica sempre alguma coisa do que a gente era, e exclamei: «Deus me perdõe! mas é o sr. Rouflard!...» «Foste tu que o disseste! me respondeu elle; sim, sou o outr’ora bonito Rouflard! que o tempo e as desgraças têem um pouco deteriorado.Mas deixa-me encarar-te bem... Ah! agora!... és o Chausson... és o meu creado, pois bem! aluga-me um quarto, e sê hoje o meu porteiro; tenho tomado muito juizo, deito-me todas os dias ás nove horas, e não bebo senão agua, quando não tenho com que comprar vinho.» A vista da miseria de um homem, que eu tinha conhecido tão elegante, tão appetecido e procurado, fez-me pena, e levou-me a dizer-lhe: «Pois sim, dou-lhe um quarto na agua-furtada; mas o que faz o senhor agora, qual é a sua profissão?» Elle coçou a cabeça por algum tempo, depois respondeu-me: «Faço tudo quanto se quer! recados, cosinha; engarrafo vinhos, tosquio cães, educo papagaios; mas o que é sobretudo a minha occupação favorita, é servir de modelo aos pintores.» «Pois bem! tratarei de lhe arranjar que fazer e vou dar-lhe casa lá em cima; mas estará aqui n’um predio socegado, será pois mister portar-se decentemente.» Elle assim o prometteu; mas Deus sabe como tem cumprido a sua palavra! Arranjei que elle fizesse recados a uma inquilina; mas assim que apanha alguns soldos, o borrachão vae bebel-os de vinho e recolhe-se fóra de horas. Avisei-o de que isto não podia durar assim, elle promette-me emendar-se, quando está em jejum, mas veja como se emenda! Esta noite estava fazendo grande barulho á porta; mas se não fosse o senhor, dou-lhe a minha palavra que teria dormido na rua! Decididamente este Rouflard é um extravagante, um mal procedido! Mas os homens que na sua mocidade vivem á custa das mulheres, devem necessariamente acabar assim, porque o seu ganha-pão é a sua cara bonita, e logo que essa boniteza se vae, boas noites! acabou-se tudo! Casimiro não responde nada, e sobe a escada com ar muito pensativo: a historia do lindo Rouflard fez-lhe passar a embriaguez.