XAinda as creadas
São decorridos quinze dias. Casimiro trabalha com assiduidade no seu quadrosinho de cavallete e da cabeça de Rouflard; este conserva a posição muito regularmente, sobretudo desde que dá as sessões antes do almoço. Mas não conseguiu ainda vencer a resistencia de Lisa, que não quer deixar tirar o retrato. Isto penaliza o joven pintor, que subiu muitas vezes a casa da sua linda vizinha do quinto andar; mas não se demorou muito lá, porque ella parece sempre temer que a vista do rapaz contraríe sua avó, e é mostrando-se bem discreto que Casimiro espera captar a confiança de Lisa e triumphar da sua recusa.
O joven pintor continúa a dar lições de desenho á menina Proh, que não faz nenhum progresso e passa uma semana com a mesma orelha. Começou tambem o retrato da sr.ª Proh, mas pouco trabalha n’elle, e prefere muito mais a cabeça de Rouflard. Emfim, Casimiro acabou a sua pequena paizagem, e mandou-a para uma loja de quadros, deante da qual param de boamente os amadores, porque se expõem alli a miude bonitas coisas e raras vezes má pintura.
Deve-se bem suppôr que a ciumenta Ambrosina, não acceitou sem desgosto, sem receio, o novo modo de viver que o seu amante acaba de adoptar; mas comprehendeu que era preciso fazer algumas concessões para não perder inteiramente o seu imperio. VêCasimiro muitas vezes; mas em vez de passar em casa d’ella uma parte das suas manhãs e das suas tardes, a conversar como costumava, o rapaz almoça agora em sua casa, e trabalha algumas vezes até ás cinco horas da tarde; quando se sente perfeitamente bem, quando está contente de si, custa-lhe muito largar os seus pinceis, e fica muito admirado de vêr com que rapidez se passa um dia todo consagrado ao trabalho, elle que outr’ora achava o tempo bem comprido e não sabia como empregal-o para evitar o aborrecimento.
Ambrosina, que quer certificar-se de que Casimiro não a engana, chega muitas vezes a casa d’elle sem o prevenir da sua visita. Acha-o trabalhando com o seu modelo, e não é Rouflard que pode inquietal-a; encontrou lá tambem uma vez a sr.ª Proh, que dava uma sessão ao seu vizinho, mas a esposa do antigo professor não podia despertar-lhe ciume. Não tinha pois nenhum motivo real para se affligir, e todavia não estava socegada; parecia-lhe que o amante não era já o mesmo com ella, que com o amor inteiramente novo que lhe viera pelo estudo, tinha perdido muito d’aquelle que n’outro tempo lhe dedicára. Não sabia bem o que se passava no coração de Casimiro, mas adivinhava que havia agora entre ambos alguma coisa que devia destruir a sua felicidade. As mulheres teem uma segunda vista, que lhes faz presentir tudo o que tem relação com o seu amor.
Isto devia necessariamente produzir um augmento de crises nervosas, e a menina Adriana era muito a miude enviada á pharmacia que já tivemos o prazer de fazer conhecer aos nossos leitores.
Correndo alli um dia (sabemos já como Adriana corre, que pára a conversar com todos os conhecimentos que encontra,) a gorda creada acha-se outra vez cara a cara com a sua amiga, a menina Rosa, aquella que tem um tão bello commodo em casa d’um homem só, que lhe faz presentes, e que tomou um creado para que ella se não cance muito com o trabalho domestico.
—Bons dias, Adriana.
—Ah! és tu, Rosa! onde vaes d’esse modo?
—Vou alli á pastelaria encommendar umas empadas, que as fazem deliciosas!...
—Ah! bem sei, é tambem onde nós compramos, é a melhor do bairro.
—Ainda estás em casa da tal senhora nervosa?
—Oh! não me fales n’isso! desde algum tempo a esta parte, está constantemente de máu humor! anda furiosa! porque os amores já não correm muito bem! Eu bem vejo, o tal sujeito já apparece menos vezes, por mais que a senhora se apure no vestuario, por mais que se faça bonita, estou convencida de que elle tem vontade de a deixar.
—Ora! e ella arranja logo outro!
—Pensas que la em casa se faz isso com essa facilidade! Nós adoramos o nosso pintor, minha rica, seriamos capazes do nos deixarmos depennar por elle!
—Ah! é um pintor, algum pobre pintamonos?...
—Parece que desde certo tempo para cá vae adquiríndo talento, está para fazer o retrato da senhora, é ella que o quer, é preciso ver se elle me faz tambem o meu em quanto está de vez. E tu, Rosa, andas muitochic, pareces a mulher d’um ourives! Continúas em casa do tal homem só?
—Em casa do sr. Loursain, de certo minha rica; sou mais sua dama de companhia que sua creada; não faz nada sem me ouvir, hoje fui eu que appeteci as empadas, disse-me logo: «Vae encommendal-as...»
—Ah! elle tracta-te por tu!...
—Não... enganei-me... elle disse-me: «Vá, Rosa, encommende-as a seu gosto, e traga tambem pasteis de nata.»
—Caspité! és tractada como uma princeza!
—O senhor não faz nada sem me consultar. Quando os seus amigos me fazem zangar, digo-lhe a elle: «O seu amigo fulano deu-me hontem um beliscão em certo sitio...» Oh! o tal amigo fica pronto, é recebido de tal maneira que nunca mais volta.
—Oh! isso é bem armado, é um meio para te veres livre das pessoas que te aborrecem.
—É uma astucia velha que nunca erra o seu effeito. Mas imagina que me tinha vindo á idéa aquillo que me disseste o outro dia; uma d’estas tardes, depois de jantar, á sobremesa, digo ao patrão, que estava mais terno que de costume: «Senhor, se tem vontade de casar commigo, não se constranja, eu não desejo outra coisa.» A isto o patrão desata a rir, como um perdido! Fez-me zanga vel-o rir assim, e digo-lhe: «Então que motivo ha para rir do que lhe proponho?» Elle ri ainda mais, e depois responde-me: «Que diabo de idéa se te meteu na cabeça! e que tolice ires pensar no casamento.» «Mas, senhor, tornei eu, não acho que o casamento seja uma tolice.» «Pois olha que é, e bem grande; não, minha rica, não casarei comtigo, não farei similhante disparate! mas ainda mesmo que tivesse vontade de o fazer, não me seria isso possivel, pois que já sou casado.»
«Bem deves fazer idéa que fiquei embaçada ao ouvir isto «Como! pois o senhor é casado?» exclamei eu «e sua mulher está viva?» «Sim Rosa, minha mulher está viva, bem viva, e não creio que tenha vontade de morrer, porque é muito mais moça do que eu.» «E então porque não está o senhor com ella? para que vive sem mais nem mais como se fosse solteiro? É enganar a gente; isso dá ás raparigas solteiras certas idéas a seu respeito: póde a gente illudir-se com o senhor, pensando que é para bom fim, e depois era uma vez!... Isso é desagradavel...» O patrão fez então uma cara de mau humor, e respondeu-me:
«—Não tenho que lhe dar satisfações; se me separei de minha mulher, é porque provavelmente isso me conveiu, não é negocio da sua conta. De hoje para o futuro, ha de fazer favor de me não tornar mais a falar a tal respeito, porque isto desagrada-me.»
«Ora, bem deves suppôr que não foi preciso dizer-m’o duas vezes; vi que tinha ido longe de mais, edesde então não tenho falado mais em tal. Mas é o mesmo, desejava bem conhecer a mulher do sr. Loursain, e saber o motivo por que elle a deixou.
—Ora! tem muito que saber! é que lhe fez falcatrua, e esse senhor não gostou; ha homens tão ridiculos. Valha-me Deus! e eu sem ir buscar o remedio á botica! Adeus, Rosa, até mais ver.
—E o teu moço de quem gostavas tanto?
—Ah! isso já acabou! agora é outro! eu nunca me prendo, gosto da variedade.
Quando a menina Adriana volta á presença de sua ama, esta ralha muito com ella por se ter demorado tanto tempo fóra; a creadinha porém não falta a responder-lhe:
—Não foi por minha culpa, minha senhora, é que encontrei uma amiga, uma patricia, que não via ha muito tempo, então estivemos a conversar, perguntei-lhe pela familia...
—Sempre desejava saber que interesse podia ter n’isso...
—É que a Rosa tem um irmão que esteve quasi á morte por minha causa.
—Por amor?
—Não, minha senhora; mas querendo levar-me muito longe nos braços, á força de pulso, ficou corcovado.
—E o que faz a sua amiga?
—Oh! tem um bello commodo, em casa d’um homem só, onde ella faz tudo quanto quer; manda fazer empadas quando lhe dá na vontade... e pasteis de nata, emfim, grandes banquetes.
—É então rico, esse senhor?
—Sim, minha senhora. Oh! parece que o sr. Loursain é riquissimo!
Ao nome de Loursain, Ambrosina sente uma viva commoção; apressa-se porém a dominal-a replicando:
—Como se chama esse senhor em casa de quem está a sua amiga?
—Loursain. A senhora conhece-o?
—Não, parecia-me ter ouvido outro nome. E esse sujeito é... viuvo?
—Quer dizer, vive como se o fosse; mas na realidade não o é. Tem ainda a mulher viva. Eu soube tudo isto pela Rosa, de quem elle está loucamente namorado, e com quem estimaria muito casar; mas elle disse-lhe em confidencia: «Eu não posso casar comtigo, Rosa, e tenho muita pena d’isso, porque sou casado e minha mulher ainda é viva, infelizmente; mas, se ella morrer, podes estar descançada, tens a certeza de occupar o seu logar... o teu futuro está seguro.» O que é pena, é que parece que a tal senhora é muito mais moça que o marido; mas, emfim, em todas as edades se morre, não é verdade, minha senhora?
—Certamente. E o amo da sua amiga mora perto d’aqui?
—Sim, minha senhora, na rua Béranger, aquella que faz continuação á nossa. Parece que aquelle senhor tem uma bella casa, n’um segundo andar, do lado da rua, e mobilada no grandechic. O quarto da Rosa é no mesmo pavimento, o que é muito commodo, porque... a senhora bem entende... a Rosa não m’o quiz confessar, mas é como se m’o tivesse dito, demais, ella descuidou-se commigo... o amo trata-a por tu, e...
—Basta, basta, não quero saber dos negocios da menina Rosa; mas, para a outra vez, tracte de conversar menos tempo quando eu a mandar a algum recado.
Deixada só, Ambrosina fica por largo espaço engolphada nas suas reflexões, das quaes sae por fim, dizendo de si para si:
—Loursain mora perto de mim, e eu não desejo encontral-o, é preciso mudar-me.