XIIIUm rapazito endiabrado
O retrato de Lisa fazia muitas vezes descuidar o de Ambrosina, e não era só em pintura que esta dama notava que se descuidavam d’ella. Casimiro ia a sua casa cada dia mais tarde, e, quando ella lhe lançava isso em rosto, elle achava por desculpa a nova paizagem que estava fazendo, as sessões que dava á sr.ª Proh ou a Rouflard e Ambrosina exclamava:
—Mas não é possivel que o senhor não tenha acabado essas cabeças! E quando eu lhe peço para termos sessão, diz-me que não me quer fatigar. O senhor tem alguns amoricos, alguma nova ligação que arranjou; mas tome cuidado! eu o saberei.
Um dia pela manhã, a sr.ª Montémolly, sem ter prevenido o amante da sua visita, levanta-se muito mais cedo do que costuma, faz-se vestir á pressa por Adriana, e chega a casa de Casimiro pelas dez horas. Perguntou ao porteiro se o rapaz tinha saído; Chausson respondeu que o não vira descer. Ella sobe os tres andares, vê a chave na porta da habitação do pintor, e entra sem bater, sem tocar a campainha, dizendo comsigo:
—Vou surprehendel-o e saber emfim em que trabalha tão assiduamente.
Ambrosina entra na saleta que serve deateliera Casimiro, e não acha alli senão Rouflard, que está ensaiando posições deante d’um espelho.
—O sr. Casimiro não está aqui? diz Ambrosina, correndo os olhos peloatelier.
Rouflard, que reconheceu a dama e adivinha a situação, apressa-se a cortejar profundamente, respondendo:
—Não, minha senhora, o sr. Dernold saíu.
Apezar d’esta resposta, Ambrosina vae vêr ao quarto da cama, depois volta, dizendo:
—É verdade, não está, effectivamente.
—A senhora verificou que eu não menti, murmura Rouflard com um sorriso ligeiramente ironico.
—Mas onde está? voltará breve?
—Oh! não creio, minha senhora; o sr. Dernold disse: «Vou almoçar, e depois irei dar uma volta pelo Louvre, onde tenho que fazer uns estudos.»
—É singular, o porteiro disse-me que Casimiro não tinha saído.
—Oh! minha senhora! esse miseravel Chausson nunca vê o que se passa; fazia-me muitas d’essas quando era meu creado. Eu dizia-lhe: «Põe-te de sentinella, não deixes entrar os meus crédores, não quero receber senão senhoras...» e o imbecil fazia exactamente o contrario.
—Mas o que faz o senhor aqui?
—Eu, minha senhora, tinha vindo agradecer ao meu artista, que teve a bondade de se occupar de mim, e de me arranjar collocação em casa d’um pintor seu amigo, um pintor de historia; devo fazer um romano. E o sr. Casimiro disse-me: «Arranje um penteado á romana, ponha-se deante do espelho, ate uma fita vermelha á roda da cabeça, eu lhe direi depois se tem um falso ar de Romulo...» porque parece que é um Romulo que devo representar.
Ambrosina não parece dar muito credito a esta historia romana. Passeia peloatelier, pára por momentos, parece reflectir, e diz:
—Não sei se devo esperar por elle.
—A senhora tem para isso todo o direito, certamente; mas temo que espere por muito tempo. Quando um pintor vae ao Louvre, nunca se sabe quando de lá sairá.
—O sr. Rouflard vem aqui muito amiude?
—Sim, minha senhora, estou sempre ás ordens do meu artista quando elle tem precisão de mim.
—E vê vir aqui muitas mulheres? não me engane...
Levanto-me tarde porque gosto de estar deitado...
Levanto-me tarde porque gosto de estar deitado...
—Minha senhora, posso affiançar-lhe que nunca vi aqui senão a senhora e a vizinha alli defronte; masáquella não chamo eu uma mulher, o marido alcunhou-a de girafa, e fez muito bem.
—Vamos, acredito no senhor, e vou-me embora, terá a bondade de lhe dizer que vim aqui... e que o espero em minha casa, não é verdade?
—Executarei as suas ordens, minha senhora.
Ambrosina retira-se, e Rouflard acompanha-a até ao patamar; mas aqui encontram-se de cara com a sr.ª Proh e o filho, o joven Fonfonso, que teima em querer montar-se na balaustrada. A amante de Casimiro tinha encontrado duas vezes em casa d’elle esta senhora estando em sessão para o retrato, conhecem-se pois um pouco. Cumprimemtam-se e trocam algumas phrases banaes.
—Minha senhora, tenho a honra de a cumprimentar; a sua saude parece-me sempre perfeita?...
—É? optima, muito agradecida, minha senhora. Ia a casa do sr. Casimiro?
—Não, minha senhora, n’este momento não ia lá; vou comprar cabeça de vitella para meu marido, que não gosta d’outra coisa para o almoço. É um habito em que se pôz. Oh! meu marido é devéras insupportavel com a sua cabeça de vitella! A senhora vem de casa do meu vizinho, do sr. Casimiro?
—Sim, tencionava dar-lhe sessão para o meu retrato.
—O meu está acabado, perfeitamente acabado; estou muito satisfeita com elle, ainda que toda a gente sustenta que me pareço com a sr.ª Saqui, que Deus haja, nos seus bons tempos; parece que era uma bonita mulher. E a senhora já acabou a sua sessão?
—Hoje não poude ser, o sr. Casimiro não está em casa, isto contraria-me, porque tinha sido hoje mais madrugadora do que costumo ser.
—Ah! o meu vizinho já saiu...
—Não! não! não! não saiu. Oh! oh! oh! hi! hi! hi! grita o Fonfonsinho, pendurando-se da balaustrada.
—Fonfonso, não te balouces assim da balaustrada, que podes cair.
—Mas quero eu balouçar-me!
—Este pequeno é incorrigivel!
—Perdão, minha senhora, mas parece-me que seu filho disse que o sr. Casimiro não tinha saído.
—O pequeno sabe lá o que diz, minha senhora!
—Sim, sim, eu bem sei onde está o pintor, onde elle vae todas as manhãs...
—Aonde vae todas as manhãs, mas então, Fonfonso, bem vês que o sr. Casimiro saiu.
—Não, porque elle vae lá acima, a casa da menina Lisa, para onde levou o cavallete e as tintas para estar a pintar como em sua casa. Hi! hi! hi! oh! oh! oh!
Ambrosina muda de côr, e a sr.ª Proh escancara os olhos, exclamando:
—O quê! o meu vizinho vae pintar em casa da pequena do quinto andar! palavra de honra, é a primeira vez que tal sei; mas este pequeno é extraordinario, minha senhora, sabe tudo, vê tudo o que se passa, não lhe escapa nada!
—Quem será essa menina Lisa que recebe o sr. Casimiro?
—É uma rapariga que vive com sua avó; a pobre velha está doente, meio paralytica; Lisa trabalha para a sustentar. Oh! é uma donzella honesta, muito capaz... pelo menos assim o creio.
—É bonita?
—Hum? bem sabe que isso depende do gosto, uma carinha que não é de todo desengraçada...
—Não! não! não! Rouflard diz que a menina Lisa é um anjo. Oh! oh! oh! ah! ah! ah!
—Ah! o Rouflard conhece-a, perdão, minha senhora, mas como é absolutamente preciso que eu fale ao Casimiro, tomo a liberdade de o ir procurar a casa d’essa menina. Não me disse que é no quinto andar?
—Sim, a porta á direita...
—A chave está sempre na fechadura. Hu! hu! hu!...
Ambrosina não quer ouvir mais, e galga os andares como um valente soldado sobe ao assalto. Chega acima n’um instante; acha effectivamente a chave na porta á direita, abre de repente, e dá com a meninaLisa sentada defronte de Casimiro, com a sua costura na mão, mas sem trabalhar; pela sua parte, o joven pintor está ao seu cavallete, com a palheta e o pincel nas mãos, mas sem pintar. Á vista d’esta pessoa que abriu a porta e se conserva immovel á entrada do quarto, o artista e o seu modelo ficam espantados. Mas Casimiro é o mais impressionado, porque Lisa recobra logo a sua placidez e diz a Ambrosina:
—É sem duvida a mim que a senhora procura, e é para me dar alguma obra a fazer? tenha a bondade de entrar...
—Não, responde Ambrosina com um tom arrogante, não é a menina quem eu procuro, não é pela menina que estou aqui, é este senhor quem venho procurar, este senhor que já não tem um momento para me dedicar, que não acaba o meu retrato, porque está fazendo o da menina. Aqui está então a causa de todas as suas mentiras, da sua mudança de procedimento; eu bem sabia que n’isto andavam amoricos! é para estar com esta menina que já não tem tempo de me ir vêr. Ah! como os homens são falsos!
A voz da mulher ciumenta torna-se estrepitosa, os seus olhares lançam chispas. Lisa está toda a tremer, grossas lagrimas lhe obscurecem os olhos, depois uma voz tremula e quebrada sae do leito, e diz:
—Lisa! o que é isso? pareceu-me ouvir gritar; estás altercando com alguem?
—Não, avósinha, não, não é nada...
E a donzella deita para Ambrosina uns olhares supplicantes, como para lhe dizer:
—Por quem é, não fale tão alto!
Mas já Casimiro se tem levantado, pegando na palheta, no quadro e nos pinceis, e dirige-se para a porta dizendo á sr.ª Montémolly:
—Faça favor de sair commigo, minha senhora, para pouparmos a esta menina uma bulha e uma scena pouco decorosa, faço isto, não pela senhora, mas em attenção a ella. Menina Lisa, desculpe-me de ter sido a causa d’este barulho, que acordou asua avó, e pode ficar certa de que não tornará a acontecer similhante coisa.
Casimiro sae immediatamente para o patamar; Ambrosina, furiosa de ciumes, hesita em saír, e olha para Lisa, que parece sempre pedir-lhe que se cale, mostrando-lhe o leito da enferma. A zelosa dama decide-se emfim, sae do quarto, depois de ter lançado sobre a rapariga um olhar ameaçador, depois desce atraz de Casimiro, que entra para sua casa. Ella entra tambem, e deita um olhar furioso sobre Rouflard, que se afasta encolhendo os hombros e olha para o pintor como para lhe dizer:
—Não é culpa minha; o senhor é que não teve a prudencia necessaria.
Ambrosina entra noatelier, e atira comsigo para uma poltrona, exclamando:
—Ha muito tempo que duram estes amores, senhor, e que esta rapariga é sua amante?
Casimiro, que recobrou todo o seu socego, põe-se a trabalhar na sua obrasinha, e responde:
—Minha senhora, o ciume cega-a e faz-lhe dizer coisas indignas d’uma mulher que se preza. Estou fazendo o retrato d’uma menina que mora no meu predio; parece-me que isto é uma coisa que me é permittida, pois que o meu officio é tirar retratos. Achei alli uma cabeça encantadora, senti o desejo de a reproduzir na tela, tudo isto é muito natural. Propuz á menina Lisa que me servisse de modelo; ella a principio recusou-se por muito tempo, porque não quer deixar a avó um unico instante. Eu disse-lhe que iria trabalhar em sua casa, e ella recusava-se ainda; mas ganha apenas com que prover á sua existencia, e a doença de sua avó exige por vezes gastos inesperados; fiz comprehender a esta menina que, consentindo em me servir de modelo melhoraria a sua situação, e ella finalmente cedeu. A senhora pergunta-me desde quando sou amante d’essa pobre menina. Ah! se a conhecesse, não teria similhante pensamento! ella é recatada, honesta, não pensa senão no seu trabalho, em alliviar e consolar a sua velhadoente, e eu, deante d’um procedimento tão digno, tão puro, ter-me-hia envergonhado de lhe dirigir uma unica palavra de amor.
A sr.ª Montémolly, que tem escutado tudo isto com impaciencia batendo muitas vezes com o pé no sobrado, assim que Casimiro acabou de falar, exclama:
—O senhor pensa que vou dar credito ás suas historias, aos seus contos! ao que parece, tem-me por tola! O senhor não tem dito uma palavra de amor a essa rapariga? O que estava então a fazer quando eu entrei? não estavam em atitude de quem trabalha, nem o senhor nem o seu modelo, olhavam um para o outro muito attentos, como se quizessem comer-se com os olhos; não ha necessidade de se falar de amor, quando se olha assim para alguem; os olhos dizem o bastante! e se o senhor não tivesse pensado em vir a ser amante d’essa rapariga, acaso teria feito um mysterio d’esse retrato, das suas idas ao quinto andar? E que tenciona então fazer do retrato d’essa menina?
—É um estudo, pol-o-hei no meuatelier.
—Pois saiba que o hei-de de fazer em tiras! E esse miseravel Rouflard, a quem o senhor tinha ensinado o recado, e que me disse que tinha ido ao Louvre! Estavam todos combinados para zombarem de mim!...
—Eu não ensinei recado nenhum a Rouflard, elle disse-lhe o que quiz.
—Bom! basta! para que não torne mais a acontecer similhante coisa, o senhor vai já deixar esta casa e não terá o capricho de subir todas as manhãs ao quinto andar; venha commigo é um momento emquanto lhe arranjo uma casa decente; mandarei buscar os seus moveis.
Casimiro encolhe os hombros, e continua a pintar dizendo:
—A senhora está doida!
—Como é que o senhor disse?
—Que a senhora não tem senso commum! e que eu não desejo mudar-me...
—Não quer mudar-se para não deixar a rapariga da agua-furtada?
—A rapariga da agua-furtada não entra para nada na minha resolução; não quero deixar esta casa, porque não quero fazer as suas vontades, porque estou cansado de ser escravo, e porque é tempo que isto acabe.
—Ah! ahi está aonde o senhor queria chegar; é um rompimento que me propõe!...
—Será um rompimento se a senhora quizer, mas repito-lhe que não me quero submetter mais a todos os seus caprichos, e que me não mudarei.
—Casimiro! tome cuidado, se fica n’esta casa, não lh’o perdoarei...
—Hei de ficar.
—E é a essa delambida que o senhor me sacrifica! Oh! é indigno! é infame!
—Nada de palavrões, minha senhora, bem sabe que commigo perdem o seu effeito; eu não a sacrifico a ninguem. Digo-lhe que não quero ser mais seu escravo, que quero ser senhor de mim, se isto lhe não convem, tanto peior!
—É porque já me não ama que o senhor me fala assim!
—Olhe, Ambrosina, seja franca, se eu fizesse o que me ordena, havia de desprezar-me e teria razão.
—Oh! o senhor é um traidor, tem zombado commigo, mas não quero continuar a ser enganada! depois de tudo quanto eu tenho feito por sua causa...
—Ah! eu estava á espera d’essa phrase! teria faltado á situação! Effectivamente a senhora tem feito muito por mim, eu não me esqueço, permitta-me sómente dizer-lhe que era sempre contra a minha vontade; que ha muito tempo que eu me queria dar ao trabalho e que a senhora incessantemente me impedia de o fazer, porque queria ter-me constantemente nas suas rêdes, impedir-me de ser livre emfim e de poder tomar qualquer resolução sem a consultar. Se a fortuna um dia me fôr favoravel, creia, minha senhora, que terei muito prazer em pagar tudo quanto lhe devo!
—Casimiro, esqueça-se do que eu acabo de dizer, o ciume faz-me perder a cabeça, vamos, ceda-me ainda por esta vez, peço-lhe eu, venha commigo, deixe esta casa... e não lhe falarei mais n’essa menina da agua-furtada...
—As suas instancias são inuteis, a minha resolução é inabalavel, não saio d’aqui.
Ambrosina ergue-se furiosa, dá alguns passos pelo quarto, pára deante de Casimiro, e exclama:
—Então, senhor, está tudo acabado entre nós!
—Como a senhora quizer.
—Sim, senhor, nunca mais na minha vida o tornarei a vêr!...
Depois de haver dito estas palavras, Ambrosina sae arrebatadamente, fechando a porta com estrondo, desce a escada sem parar, depois atravessa o pateo, passa por deante do porteiro que lhe varre para cima, e dá alguns passos na rua. Mas alli, pára, volta-se, olha para a casa d’onde acaba de sair, e vê um rotulo pendurado por cima da porta. Entra immediatamente na casa e diz ao porteiro, que está ainda no pateo:
—Tem cá alguns quartos para arrendar? vi um rotulo.
—Sim, minha senhora, um magnifico primeiro andar, com sete casas, todo forrado de novo, e uma bella adega!
—Quando está desoccupado?
—D’aqui a dez dias, minha senhora...
—Fica por minha conta...
—O preço é de dois mil e duzentos francos.
—Muito bem, arrendo-o eu.
—Mas a senhora não o viu, se quer subir, os inquilinos saíram agora mesmo...
—Não é preciso, repito-lhe que eu arrendo a casa. Tome, aqui tem o signal...
E Ambrosina mette uma moeda de vinte francos na mão de Chausson, accrescentando:
—Tome; mas ficar-lhe-hei muito agradecida se não disser ao sr. Casimiro que fui eu que arrendei acasa, aqui tem a minha morada e o meu nome... se quizer ir tirar informações...
—Oh! minha senhora, eu bem vejo que não é preciso, quando se tem maneiras como a senhora; demais, a senhora é conhecida do sr. Casimiro!
—Tome; aqui tem mais vinte francos, seja discreto, que não ficarei sómente n’isto...
—Estarei ás ordens da senhora tanto de dia como de noite, sempre prompto!...
Ambrosina retira-se, e Chausson admira as duas moedas de vinte francos, dizendo comsigo:
—Isto é que é a nata das inquilinas! logo eu estava indo tirar informações!...