XIVA senhora do primeiro andar
Dez minutos depois da saída de Ambrosina, subia Casimiro ao quinto andar e entrava em casa da sua joven vizinha.
Lisa está trabalhando, mas grossas lagrimas lhe rebentam dos olhos e por momentos caem sobre a sua costura. O seu lindo rosto parece ainda mais seductor sob esta nuvem de tristeza espalhada por todas as suas feições. Ao vêr Casimiro, o seu primeiro movimento é limpar os olhos e esforçar-se por sorrir.
Mas o rapaz, que já lhe viu as lagrimas, apressa-se a correr para ella, exclamando:
—Lisa, está chorando, e sou eu a causa da sua tristeza. Ah! perdôe-me, se soubesse quanto estou afflicto pelo que succedeu.
—Oh! eu não lhe quero mal, não chorava...
—Chorava, sim, em vão procura occultar-m’o.
—É sómente, porque sinto haver sido a causa de que aquella senhora ralhasse com o sr. Casimiro; ella parecia muito encolerisada, disse que o senhor já nãocuida do seu retrato e que é por culpa minha. Bem vê que fiz mal em consentir que fizesse o meu; mas está tudo acabado; não lhe servirei mais de modelo; poderá assim retratar aquella senhora; não lhe farei mais perder o seu tempo...
—Não diga isso, Lisa, continuarei a retratal-a como de costume...
—Oh! não, aquella senhora não quer; se ella voltasse e o encontrasse aqui, teriamos nova scena, isto assusta minha avó, e eu não quero...
—Aquella senhora não voltará aqui; demais, não tem o direito de me impedir de fazer o que me agrada; conheço-a ha muito tempo, ella estava habituada a dar-me conselhos e eu ouvia-a como se ouve um antigo conhecimento...
—Aquella senhora é mais velha que o sr. Casimiro?...
—Sim, é por isso que eu lhe mostrava uma certa deferencia. Mas não é razão para que ella me tracte como uma creança...
—E é bem bonita, aquella senhora, mas deitava-me uns olhos cheios de odio, que me faziam muita pena...
—Não pense mais n’ella, não tornará a vel-a.
—Parece-me que teria muito gosto em a ver, se ella me não tivesse deitado uns olhos tão terriveis. Sr. Casimiro, é preciso levar o seu cavallete e não vir mais aqui pintar...
—Minha querida vizinha, espero que terá a bondade de me dar ainda as sessões de que necessito, não ha de querer que eu deixe um trabalho imperfeito; a sua cabeça é um estudo que me fará muita honra, assim o espero; permitta-me acabal-o com cuidado e satisfazer-lhe o que lhe devo por todas as sessões que me tem dado...
—Mas o senhor não me deve nada, comprou-me o vinho quinado...
—Oh! isso pagava apenas tres sessões! depois tivemos mais dez pelo menos, que eu pago bem mesquinhamente dando-lhe esta remuneração.
Casimiro põe trinta francos em cima da mesa, volta a pegar na mão da rapariga, e aperta-a ternamente nas suas, dizendo-lhe:
—Não chorará mais, esquecerá a scena d’esta manhã, e dar-me-ha ainda algumas sessões, não é verdade?
Lisa sorri-se, e responde:
—Far-lhe-hei a vontade, visto que assim o quer!
Casimiro retira-se muito satisfeito.
No dia seguinte, Rouflard, que entra todas as manhãs em casa de Casimiro para saber se elle tem algum recado para lhe dar, diz ao joven pintor:
—Acabo de vêr o meu bom anjo, a menina Lisa, que está feliz como uma rainha, e isto graças ao sr. Casimiro!
—Graças a mim! como é isso, Rouflard?
—Porque, com o dinheiro que o senhor lhe deu hontem, comprou ella uma colhér, de prata á avó, uma bella colhér effectivamente, que lhe custou vinte e dois francos. A velha doente está encantada, era a sua mania, isto restituir-lhe-ha uma parte das forças.
—Estimo immenso ter podido melhorar um pouco a posição de Lisa, que se mata com trabalho. E o sr. Rouflard tem ido a casa do pintor a quem eu o recommendei?
—Sim, senhor, mas não para fazer de romano, é para fazer de saltimbanco. É verdade que isso para mim é indifferente! servir de modelo para um heroe ou para um salteador, é sempre servir de modelo.
Decorrem alguns dias; Casimiro não deixa passar um unico dia sem subir a casa de Lisa, que lhe mostra a colhér de prata, dizendo-lhe:
—Estou muito contente! mas acreditará o senhor que sonho todas as noites que m’a roubam? Isto faz-me pesadelos.
—Isso ha de passar, minha vizinha, a gente habitua-se a tudo, mesmo aos talheres de prata.
Casimiro não tornou a casa da sr.ª Montémolly, e, com grande surpreza sua, não ouviu falar mais d’elladesde o seu rompimento. Applaude-se por emfim quebrado um grilhão que já não podia supportar, e entrega-se com ardor ao trabalho, porque quer poder passar sem o socorro alheio. O seu quadrosinho degenerovae saindo muito bom; o negociante de quadros que veiu vel-o, ficou muito satisfeito, e offereceu-lhe mesmo algum dinheiro adeantado, se elle o precisasse.
Mas, nas suas idas e vindas a casa, Rouflard, que conversa amiude com o porteiro, repara, no penultimo dia do arrendamento, que emquanto o inquilino do primeiro andar faz a sua mudança, Chausson esfrega as mãos, apressa quanto pode essa mudança, depois, assim que vê a casa despejada, põe-se a encerar o patamar do primeiro andar, a varrer cuidadosamente os quartos desoccupados, e a observar se tudo está aceiado e se ha têas de aranha n’algum recanto.
—Com a breca! como se afadiga com o seu primeiro andar! diz Rouflard ao porteiro, nunca esfregou tanto em minha casa, nos meus bons tempos!
—É que mesmo nos seus bons tempos nunca teve uns aposentos tão esplendidos!
—Está então arrendado o seu primeiro andar?
—Sim, de certo, está arrendado, e magnificamente arrendado; presumo que se muda para cá ámanhã o novo inquilino, por isso fiz saír o outro hoje, para ter tempo de arranjar tudo. Ah! ah! quero que ao entrar aqui se veja tudo reluzente...
—É algum dentista que vem para a casa?
—Não... não é um dentista! é uma senhora... e mesmo uma bonita senhora...
—Ah! entendo, é umacocottede primeira ordem!
—Não, senhor, pois eu arrendo lá a casa acocottes! porventura o predio não está bem habitado, não contando com o senhor?...
—Chausson, não me insulte; difficilmente acharia um homem tão fino como eu para morar na sua agua-furtada.
—Sim, quando não está bebedo, tem ainda uma boa presença.
—A tal senhora bonita tem marido?
—Não; pelo menos, creio que não. A final de contas, como ella vem ámanhã, posso dizer ao senhor quem é.
—Então eu conheço-a?
—Deve tel-a visto em casa do sr. Casimiro, é aquella senhora que o vinha visitar tantas vezes, antigamente, porque não tem aqui voltado desde que arrendou o primeiro andar.
—Como! seria a sr.ª Montémolly que arrendou o quarto do primeiro andar?
—Exactamente, a sr.ª Montémolly, é o nome que está no seu bilhete.
—Oh! com mil diabos!...
Rouflard apressa-se a subir a casa do pintor, e diz-lhe:
—Venho dar-lhe uma noticia! o quarto do primeiro andar foi arrendado pela sr.ª Montémolly, que se muda para cá ámanhã.
Casimiro fica aterrado; julgava-se para sempre livre de Ambrosina, e ella vem morar para o seu predio; não duvida que não seja para espreitar o seu procedimento e saber que relações existem entre elle e a menina do quinto andar. Estas relações são muito innocentes, mas aos olhos do mundo, que procura por toda a parte o mal e nunca o bem hão de parecer criminosas. O que Casimiro receia sobretudo, é que as frequentes visitas que elle faz a Lisa lhe tragam ainda alguma scena desagradavel. Está a ponto de subir a casa da sua vizinha para a prevenir do que acontece, mas diz comsigo: Não devo assustal-a antes de tempo. Aguardemos. Ambrosina não arrendou talvez a casa para si, é tambem possivel que se não mude ainda ámanhã.
Mas no dia seguinte não é já possivel a duvida: faz-se a mudança para o primeiro andar, e é effectivamente a sua antiga amante que Casimiro vê chegar; ouve já na escada a voz estrondosa da creadaAdriana, que está muito contrariada por ter saído da casa da rua Meslée, que dava sobre oboulevard, para virem morar na rua Paradis-Poissonniére e tomarem uma casa onde o quarto da creada está debaixo da mesma chave que a dos amos.
Então o joven pintor decide-se a subir a casa de Lisa. Pelo seu ar perturbado, commovido, a rapariga adivinha que succedeu algum caso desagradavel, e diz:
—O senhor tem alguma coisa; aquella senhora voltou a vel-o; virá ella aqui, porventura.
—Não, não é isso, Lisa, entretanto, é alguma coisa que a vae contrariar, tenho a certeza.
—Então, fale!
—Aquella senhora, porque effectivamente é d’ella que se tracta... o primeiro andar estava sem inquilino para este semestre... a menina sabe isto sem duvida.
—Eu! não! pois eu occupo-me lá do que se passa no predio? E então, o primeiro andar?...
—Está arrendado... por... por essa senhora...
—Que veiu aqui.
—Sim.
—Ah! meu Deus! e virá para cá brevemente?
—Muda-se hoje...
—Ella está aqui! no predio. Ah! vá-se embora, sr. Casimiro, vá-se embora, muito depressa, se ella subisse e o encontrasse... tenho medo d’essa senhora.
—Socegue, ella não virá mais a sua casa, estou persuadido d’isso; que motivo teria para cá voltar?
—Virá procural-o...
—Não, eu disse-lhe que já não a via. Estamos indifferentes, e se ella me quizesse falar, é a minha casa e não á sua que viria ter commigo...
—Ah! o senhor diz isso para me socegar; d’aqui em deante não me atreverei muis a descer a escada; felizmento, não a desço muito! uma vez sómente, de madrugada, para ir fazer as minhas compras; mas não importa, sr. Casimiro, o meu retrato está acabado,como o senhor hontem confessou; portanto é mister que não venha mais visitar-me...
—Ah! Lisa, então já não sou seu amigo? não quer receber-me em sua casa?
—Não digo isso, mas não quero que essa senhora aqui o encontre.
—Serei prudente, eu conheço os habitos d’essa senhora, e depois espreitarei as occasiões em que ella sair, incumbirei isso a Rouflard, posso contar n’elle.
—Oh! é um excellente homem, esse Rouflard; é pena embriagar-se; meu Deus! parece-me que ouço subir!...
—Não... é no quarto andar que abrem a porta...
—Sr. Casimiro, leve d’aqui o seu cavallete... vendo-o em minha casa, dirão: «Então elle continúa a ir pintar lá?» e é preciso que se não possa dizer isto...
—Pois sim, levarei o cavallete; mas isso não me impedirá de a vir ver todos os dias, é para mim um habito tão agradavel... não poderia mais trabalhar em todo o dia se não a visse pela manhã; outro tanto não acontece á menina...
Lisa não responde, mas suspira olhando para Casimiro, e o seu olhar vale a melhor resposta. O joven pintor aperta-lhe a mão, e decide-se emfim a levar o cavallete.