XVA menina Proh doente

XVA menina Proh doente

Durante todo este dia Casimiro teve uma especie de febre; ficou em casa, mas deixou entreaberta a porta da entrada para ouvir o que se passa na escada; não ouviu senão o joven Fonfonso cantar com a musica do carrilhão de Dunkerque:

Uma esgalgada girafaRima certo com garrafa;Mas chimpanzé pelladinhoRima bem com coitadinho!

Uma esgalgada girafaRima certo com garrafa;Mas chimpanzé pelladinhoRima bem com coitadinho!

Uma esgalgada girafaRima certo com garrafa;Mas chimpanzé pelladinhoRima bem com coitadinho!

Uma esgalgada girafa

Rima certo com garrafa;

Mas chimpanzé pelladinho

Rima bem com coitadinho!

—Quem é que te ensinou essa infame cantiga? diz de repente a sr.ª Proh, saíndo ao patamar.

—Foi Rouflard, que a canta muitas vezes quando desce da agua-furtada.

—Que monstro que é esse borrachão do Rouflard! não comprehendo que o meu vizinho Casimiro empregue similhante homem; e tu, Fonfonso, se tornas a cantar essa cantiga, levas uma roda de açoutes e ponho-te a pão secco.

—Sim? pois se me dás pão secco, direi que hontem, com a força d’um espirro, deixaste cair os dentes postiços.

—Cala-te, Lucifer! Ó céus! e dizer que ha pessoas que desejam ter filhos!

Casimiro não sae de casa senão para ir jantar. Quando chega ao patim do primeiro andar, passa muito depressa e depois sae sem levantar a cabeça. Vae á noite ao theatro, e só recolhe depois da meia noite, mas vê ainda luz nos quartos do primeiro andar. A sr.ª Montémolly entretem-se sem duvida em arranjar os seus novos aposentes. Elle, segundo o costume, vae buscar a luz ao cubiculo do porteiro; então este diz-lhe com ar malicioso:

—O senhor sabe sem duvida quem tem agora a felicidade de ter por vizinha?

—Não, sr. Chausson, e affianço-lho que isso me interessa pouco.

—Não dirá o mesmo quando souber que arrendei o primeiro andar á sr. Montémolly, uma amiga intima do senhor.

—Em primeiro logar, o sr. Chaussom faz amigas intimas de simples conhecimentos, depois, nós tivemos uma ligeira discussão, essa senhora e eu... estamos indifferentes.

—Ah! que pena! aposto que foi por causa da malditapolitica! isso malquista toda a gente, mas o senhor ha de fazer as pazes com essa senhora, que tem muito bonitas maneiras.

—Dê cá a minha luz, e faça favor de não me tornar a falar em tal assumpto.

Casimiro apressa-se a subir a casa, e o perteiro segue-o com a vista, murmurando:

—Ah! elle está arrufado com esta senhora! como os homens são voluveis! dirá muita gente, e as mulheres tambem: então, é coisa que está na natureza!...

No dia seguinte pela manhã, o joven pintor sobe a casa de Lisa; mas, antes d’isso, procurou Rouflard, e pôl-o de sentinella na escada, com ordem de cantar a canção dosLampiõesse vir subir a inquilina do primeiro andar. D’este modo, não será surprehendido em casa da sua vizinha; terá descido os dois andares antes que Ambrosina tenha tido tempo de subir os seus...

Lisa põe-se ainda a tremer vendo entrar Casimiro em sua casa. Mas este tranquilliza-a dizendo-lhe a ordem que deu a Rouflard, relativamente á senhora do primeiro andar. Casimiro não cessa de repetir a Lisa que não era para elle mais que um simples conhecimento, uma pessoa que o queria proteger, mas que abusava da influencia que tinha tomado sobre elle, influencia de que ha muito tempo estava, resolvido a libertar-se. A rapariga, que não sabe nada do que se passa no mundo, acredita tudo o que lhe diz o vizinho. Conversam largo espaço; o tempo corre tão depressa quando se está bem acompanhado! De repente, Lisa empallidece, exclamando:

—Ouvi cantar!...

—Mas não é o Rouflard, é aquelle maldito garoto do menino Proh!

—É o mesmo, ouço muito barulho no predio é preciso ir-se embora.

—É Adriana que a menina ouve, a creada da sr.ª Montémolly, quando esta rapariga está em alguma parte, não se ouve senão ella.

—Mas vae ver o Rouflard na escada.

Em primeiro logar, para o ver, será preciso que ella olhe para o ar.

—Oh! estou bem certa que é a ordem que tem.

—Vamos, socegue minha encantadora Lisa, eu me vou embora, mas ámnhã...

—Oh! sim, ámanhã tratarei de me habituar a ter medo.

Passam-se d’esta sorte oito dias. Casimiro sobe pela manhã a casa de Lisa, depois de ter posto Rouflard de sentinella na escada. Não tem encontrado Ambrosina, nem mesmo a tem visto de longe, entretanto está bem persuadido de que ella não veiu morar para o mesmo predio sem ter o seu plano. Sabe que a sr.ª Montémolly é bastante altiva, bastante orgulhosa para procurar fazer as pazes com elle; mas sabe tambem que é vingativa e deve ter formado o projecto de se vingar.

Ao nono dia da sua entrada nos seus novos aposentos, alli pela volta do meio dia, Ambrosina sobe os quatro andares que vão ter á morada de Lisa, e entra de repente em casa da rapariga, que fica pallida e tremula ao seu aspecto.

«Todavia a sr.ª Montémolly não tem aquelle ar terrivel com que uma vez se apresentou a Lisa; pelo contrario, é sorrindo, é com um ar amavel, gracioso mesmo, que ella se approxima, e lhe diz:

—Perdão, menina, venho talvez incommodal-a, mas sou ha oito dias sua vizinha, moro no primeiro andar, soube, pela sr.ª Proh, que a menina se occupava em trabalhar em roupa branca, e venho perguntar-lhe se quererá trabalhar para mim?

Lisa está de tal modo perturbada, que pode apenas balbuciar:

—Mas, minha senhora, queira sentar-se... Perdão, não ouvi bem o que me disse.

—Socegue, menina; pois eu metto-lhe medo?

—Oh! sim, minha senhora, quero dizer, não, minha senhora, agora não... mas é que receava...

—Que viesse ainda contender com o sr. Casimiro? Socegue, no outro dia fiz mal, convenho n’isso, maseu sou muito arrebatada; aquelle senhor tinha-me faltado muitas vezes á sua palavra para o meu retrato e isto tinha-me encolerisado. E o retrato da menina está acabado?

—Sim, minha senhora.

—Mas o sr. Casimiro continúa a vir vizital-a?

—Algumas vezes, minha senhora...

—Ora, tem todo o direito de o fazer. Mas a menina ainda me não respondeu sobre o fim da minha visita; quer trabalhar para mim?

—Oh! certamente, minha senhora, com muito gosto.

—Muito bem. E borda tambem?

—Sim, minha senhora.

—Então, aqui tem estes lenços de cambraia, quero as minhas iniciaes bordadas; olhe, como este... pode bordar-m’as?

—De certo, minha senhora.

—Pois aqui lhe deixo estes seis e o modelo; mas faça isto de seu vagar, quando tiver tempo, eu não tenho pressa nenhuma. Emquanto ao preço, a menina dirá quanto quer.

—Oh! minha senhora, ficarei satisfeita com o que a senhora me der.

—Adeus, menina, ou antes, até á vista, porque ha-de permittir que eu venha algumas vezes saber se pensa em mim.

—Oh! quando a senhora quizer.

—Já lhe não metto medo, espero?

—Não, minha senhora, pelo contrario, sinto agora que terei muito prazer em a receber.

Estas palavras parecem surprehender Ambrosina que, entretanto, faz uma mesura graciosa á rapariga e retira-se. Lisa está bastante commovida, mas muito contente de não ter já em sua casa o cavallete. No dia seguinte, não falta a dar parte a Casimiro da visita que recebeu. Este não fica satisfeito com isso; abana a cabeça murmurando:

—Ambrosina, que quer que a menina trabalhe para ella... Ambrosina, amavel, affectuosa com a menina....hum! isso não é natural; tome cuidado, Lisa, não confie n’essa senhora, porque tudo isto esconde alguma perfidia!

—Oh! sr. Casimiro, creio que não tem razão, e que d’esta vez é injusto para com essa senhora; já não tenho nenhum receio d’ella; pelo contrario, é uma coisa bem exquisita, parece-me que estou quasi a ter-lhe affeição...

—Ah! é que a menina não suspeita de nada, não desconfia dos laços que lhe podem armar!

—Laços? oh! aquella senhora tem um sorriso encantador... isso não pode occultar uma perfidia.

—Bem se vê que não conhece o mundo.

—Meu Deus! é então um conhecimento bem máu, pois que se deve sempre desconfiar d’elle!

—D’esse modo, fará a obra que a senhora lhe deu?

—Sem duvida, são uns lenços magnificos para bordar... mas é obra que ha de levar muito tempo.

—E irá levar-lh’os a casa quando estiverem promptos?

—Sim. Acaso não faço eu o mesmo á sr.ª Proh? porque havia de ser menos cortez com esta senhora do primeiro andar?

Casimiro não diz nada, mas deixa Lisa, muito inquieto com a visita que ella recebeu.

D’ahi a poucos dias cae doente a menina Angelina Proh; a mãe receia que seja uma constipação de peito; o pae sustenta que é uma febre miliar, e o menino Proh affirma que sua irmã está doente por ter comido uvada de mais. Mas as indigestões são ás vezes perniciosas, e podem dar logar a outras doenças; quer a uvada tenha ou não alguma coisa n’isso, o que é certo é que a rapariga tem uma grande febre, uma sede ardente, e por vezes um pouco de delirio.

Os Proh não têem creada, porque o ex-professor sustenta que, n’uma casa onde ha duas mulheres, não se deve ter necessidade de tomar uma terceira para os arranjos domesticos, e que seria isso um luxo inutil. Não ha pois senão a sr.ª Proh para tractar de sua filha, porque o papá encerra-se na sua dignidade, e oFonfonsinho, como quebra tudo quanto apanha, não pode ser utilizado. Como a joven Angelina tem estado bastante doente para que seja mister velar junto d’ella de noite, a sr.ª Proh anda que não pode comsigo, e diz um dia ao maride:

—Senhor, eu não posso mais; se isto continua, vou tambem caír doente; ha duas noites que não durmo e eu não sou de ferro...

—Eu nunca disse que a senhora era de ferro, se as mulheres fossem de ferro, seria isso bem incommodo nas relações que a natureza nos manda ter com ellas.

—Vejamos, Castor, porque é que não quer tomar uma creada? a nossa posição permitte-nos isso...

—A nossa posição é muito correcta como está: nós somos quatro, o quadrado perfeito, uma pessoa de mais em casa desarranjaria o equilibrio e a rectidão; não, a rectidão não é o termo próprio, devo dizer o rectangulo...

—Oh! senhor, quanto me aborrece com os seus quadrados e as suas combinações. Quer então que eu caia doente?

—Não, senhora, porque seria preciso dobrada tisana, dodrado xarope, e por conseguinte seria dobrada despeza; não poderia ser esse o meu desejo.

—E’ todavia o que ha de acontecer se eu tiver de passar ainda esta noite velando á cabeceira de nossa filha. Quer o seehor ficar?

—Eu? mas a senhora bem sabe que, em chegando a minha hora de dormir, é-me impossivel resistir-lhe; torno-me um arganaz, um buzio, se acham melhor, ainda que a comparação é estrambotica; eu por consequencia não seria de nenhuma utilidade.

—Então é mister tomar uma enfermeira...

—Uma enfermeira! introduzir uma estranha nos meus lares! Nunca! isso é estupido e perigoso.

—Entretanto, declaro-lhe que não quero passar em claro a noite proxima; não poderia resistir... Ah! uma idéa!... a menina Lisa... sim, ella é muito obsequiadora, não se negará a vir um instante revzar-me;esta não dirá o senhor que é uma estranha... conhecemol-a perfeitamente.

—A menina Lisa... sim, essa mora no predio. Em rigor, podemos occupal-a.

—Subo immediatamente a casa d’ella; quero estar certa de ter alguem esta noite ao pé de minha filha.

Lisa fica menos admirada vendo entrar em sua casa a vizinha do terceiro andar, para quem tem trabalhado muitas vezes. A sr.ª Proh explica-lhe immediatamente o motivo da sua visita, e a rapariga responde-lhe:

—Oh! minha senhora, eu estimaria muito poder ser-lhe prestavel; mas, para ir para sua casa, teria de deixar minha avó...

—Mas sua avó, emquanto está a dormir não tem precisão da menina; lembre-se de que pode ir lá para baixo ás dez horas da noite, e pela manhã ás sete e meia, oito horas quando muito, voltará para junto d’ella. Demais, sua avó não está melhor?

—Sim, minha senhora, graças ao vinho quinado, passa muito melhor desde certo tempo para cá. Não é verdade, avósinha, que vae agora melhor?

A velha levanta-se um poucochinho na cama, dizendo:

—Sim, minha filha, sim, vou melhor. Ah! é que tu tractas bem de mim; e depois déste-me uma colhér de prata, e isso deu-me grande prazer. Mostra-a lá á nossa vizinha.

—Oh! avósinha, isso pouco interessa a esta senhora.

No entanto, para fazer a vontade á avó, Lisa mostra á sr.ª Proh a colhér de prata, que é muito simples.

—É uma prova de que a menina faz as suas economias, diz Celeste, dou-lhe os meus parabens...

Depois a sr.ª Proh approxima-se da paralytica, e diz-lhe:

—Não é verdade que a senhora poderia dispensar a sua neta por uma noite, e permittir que ella venhavelar á cabeceira de minha filha, que está doente? desceria só ás dez horas da noite e voltaria logo de manhã; oh! com isso me faria um grande serviço.

—Sim, sim, pode ir; vae, Lisa, para obsequiares a senhora. Bem sabes que eu, em adormecendo á noite, não tenho mais precisão de ti. Oh! eu estou melhor.

—Como! pois a avósinha consente em que eu a deixe uma noite inteira?

—Sim, minha filha, sim; é preciso obsequiar esta senhora.

—Pois bem, visto que a avósinha consente. Minha senhora, esta noite ás dez horas, estarei em sua casa.

—Ah! muito agradecida, a menina é muito amavel; retiro-me sem mais demora, porque tenho que preparar a cabeça de vitella para meu marido; até á noite.

Ás dez horas em ponto, assim que adquire a certeza de que sua avó dorme socegadamente, Lisa sae do seu quarto e dirige-se a casa da sr.ª Proh. Esta aguardava-a com impaciencia, porque tinha muita necessidade de dormir. Leva a sua joven vizinha para o quarto de cama de sua filha, e ahi a deixa, dizendo-lhe:

—Angelina está hoje melhor, creio que não terá uma noite desassocegada; em todo o caso, aqui está em cima d’esta mesa tudo o que é preciso: a tisana sobre a lampada de espirito de vinho, assucar para a tisana, uma colherinha para a mecher, depois uma colhér de sopa para dar d’este xarope que vê n’esta garrafa; mas isto, sómente lh’o dará se ella não puder dormir e estiver agitada; comprehende bem?

—Sim, minha senhora, tudo isso não é difficil.

—Se por acaso sobrevier alguma coisa extraordinaria, acorde-me, eu durmo aqui no quarto do lado; mas espero que não acontecerá nada. Aqui tem uma grande poltrona onde ficará perfeitamente... e livros. A menina gosta de ler?

—Oh! muito, minha senhora.

—Então aqui tem um romance que a ha de captivar, está cheio de crimes, assassinatos, enforcamentos,torturas, é muito interessante. Angelina já o leu duas vezes; é desde esse tempo que ella tem tido delirio. Mas eu vou-me deitar, porque estou com muito somno; os meus homens dormem já como pedra em poco... vou fazer outro tanto; minha filha está socegada, não tenho precisão de lhe dizer que é mister não a acordar.

—Oh! pode ir descansada, minha senhora.

—Não se esqueça das minhas instrucções: uma colhér de xarope, sómente se ella estiver agitada.

—Sim, minha senhora.

E a sr.ª Proh retira-se. Lisa, que não deixou de trazer trabalho para fazer, senta-se a bordar. Passado algum tempo a doente pede de beber, e Lisa apressa-se a dar-lhe um copo de tisana. Angelina reconhece-a, e diz-lhe:

—Ah! é a menina que me está velando... sim a mamã tinha-me prevenido...

—Como se acha a menina?

—Muito melhor.

—Quer uma colhér de xarope?

—Não, não é preciso... sinto que vou outra vez adormecer; agradecida.

Effectivamente, a menina Proh torna em breve a pegar no somno. Lisa volta ao seu bordado, mas este genero de trabalho cansa muito a vista. Larga-o pois por um momento, e cede ao desejo de conhecer o romance que a sr.ª Proh lhe gabou. Senta-se para isso na grande poltrona; mas, no fim d’algum tempo, quer por fadiga quer por effeito do romance, Lisa adormece profundamente.

São seis horas da manhã quando a sr.ª Proh entra no quarto da filha, e ainda Lisa esfrega os olhos.

—Então, como se passou esta noite? pergunta Celeste. A nossa doente ainda está a dormir, é bom signal.

—Oh! minha senhora, a noite foi muito socegada; a menina só pediu de beber uma vez.

—Muito bem; então não tomou o xarope?

—Não, minha senhora.

—Ás mil maravilhas! Decididamente, creio que Angelina vae entrar em convalescença.

—Minha senhora, visto que está levantada, permitte-me que volte immediatamente para junto de minha avó, não é verdade?

—Sim, certamente, vá, minha menina, nós nos entenderemos a respeito da remuneração pela sua noite de véla.

—Oh! minha senhora, não falemos n’isso, estimo muito ter podido obsequial-a!...

E a joven enfermeira, com a pressa de subir a sua casa, está já na saleta de entrada, quando a voz da sr.ª Proh a chama:

—Lisa, Lisa!...

—O que quer, minha senhora?

—Onde metteu a menina a colhér do xarope!... não a acho.

—Não a acha!... deve estar no mesmo sitio, minha senhora; pois que não tive precisão de me servir d’ella...

—Diz que não se serviu d’ella!... comtudo, a colhér não está já em cima da mesa... olhe, veja a menina...

Lisa vê em cima da mesa, depois debaixo, depois em todos os moveis, em toda a parte, e a sr.ª Proh faz outro tanto do seu lado; mas não se acha a colhér.

—É singular! diz Lisa.

—E mais que singular! exclama Celeste, cuja physionomia tomou já um aspecto severo. Emfim, a menina bem sabe que eu deixei-lhe sobre esta mesa duas colheres de prata, uma pequena e uma grande, a pequena aqui está, mas que é feito da grande? é preciso que appareça, é preciso! não entrou aqui outra pessoa além da menina... logo é a menina a unica responsavel pela colhér...e a menina ia saindo com tanta pressa...

—Oh! minha senhora, pois pode suspeitar que eu levava a sua colhér! ah! veja bem, minha senhora, esquadrinhe tudo... veja nas minhas algibeiras, no meu vestido. Oh! meu Deus! suspeitar-me de-furtar...

—Eu não digo isso; mas algumas vezes, inadvertencia... sem fazer reparo...

—Oh! veja, minha senhora, peço-lhe eu, faça favor de me revistar!...

A sr.ª Proh apressa-se a passar revista ás algibeiras de Lisa; apalpa-a por toda a parte, ausculta-a como faria um cirurgião, examina-lhe até os sapatos, ainda que a rapariga tem o pé tão pequeno que o seu calçado mal poderia conter uma colhér pequena. Esta inspecção severa prova á esposa do antigo professor que Lisa não levava a colhér.

—Então, minha senhora, está agora persuadida de que eu não levava nada? diz Lisa.

—De certo, bem vejo que a não tem em si, mas então o que fez a menina á colhér? vamos... procure... atirou certamente alguma agua pela janella e deitou fóra tambem a colhér.

—Não, minha senhora, não atirei nada pela janella.

—Ou deixou-a caír n’alguma parte?

—Eu não saí d’este quarto, minha senhora; não fui ao patamar...

—Oh! ao patamar, de facto, não teria podido lá ir, porque eu fecho sempre com tres voltas a porta que dá para a escada; e tem um ferrolho de segredo... acabo agora de a abrir...

—De modo que a senhora está bem certa de que eu não saí de sua casa esta noite durante o seu somno...

—Valha-me Deus! não digo o contrario!... mas tudo isso não me restitue a minha colhér...

—Ha-de se achar, minha senhora, ha de se achar no momento em que menos se pensar n’ella.

—Mas onde diabo a escondeu?...

—Para que quer a senhora que eu a tenha escondido? com que fim? porque motivo? Volto para juncto de minha avó, que deve estar agora acordada... a senhora fica bem certa de que não levo a sua colhér, não é verdade?

—Estou certa de que não a tem em si... mas que diabo fez d’ella?

—Oh! se é preciso pagar-lhe o valor da colhér, eu lh’o pagarei, chegarei a isso á força de trabalho; mas, por quem é, não fale em similhante coisa a minha avó, que lhe faria muito mal...

—Está bem, menina, está bem, falarei a esse respeito com o sr. Proh.

Lisa sobe para sua casa muito triste e com os olhos rasos de lagrimas, dizendo comsigo:

—Suspeitarem de ter furtado! oh! é horrivel isto! O sr. Casimiro tinha muita razão em dizer que desconfiasse do mundo! E todavia esta senhora não pode querer affligir-me; mas que foi então feito d’aquella maldita colhér!...


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