—Eram os principios! Mas as forças do Miguel, seis a oito mil homens, não quizeram «abraçar os irmãos d'armas», e atacaram na Cruz dos Moroiços, no momento em que todos os chefes, de major para cima, tinham ido assistir ao conselho militar em Coimbra. Foi a «acção dos capitães» e, como tal, as forças sem commando que reunisse os seus esforços, defenderam com valentia as posições occupadas, mas não limparam de inimigos o caminho de Lisboa. Depois o nosso general Refoios, receando que Povoas passasse o Mondego, ordenou a retirada para o Porto.
—E ahi?
—Não se poderam manter. Quando chegaram de Inglaterra os chefes emigrados já era tarde, e voltaram nomesmo vapor que os levára, emquanto a divisão retirava para a Galliza.
—Que desgraça!
—Ou antes, que inepcia. Essa fuga dos chefes noBelfastnão me passa d'aqui!
E levou a mão á garganta n'um gesto nervoso.
Sentiu João as lagrimas nos olhos, e fez exforços para não chorar.
Assim ruia n'um momento o futuro em que tanto confiára.
—Então acabou-se tudo?—exclamou em voz estrangulada.
—Qual! Outros virão! Ha de estalar nova revolta, e o Miguel não levará a melhor! E agora que aprendemos á nossa custa, nada de hymnos nem de proclamações. Ha de ser á má cara!
Dava grandes pernadas pela botica, olhando inquieto a praça, onde se juntava muito povo defronte da camara.
Continuou para João, que ficára aturdido:
—Assim o querem, assim o tenham! O exemplo do sangue veiu d'elles. Já começou a trabalhar a forca, mas os estudantes de Coimbra, longe de se intimidarem com o assassinio dos collegas condemnados pela morte dos lentes em Condeixa...
OlhouJoão fixamente, crendo que a sua pallidez provinha da referencia ao attentado e ás execuções.
—Ouve lá. Tu que te fazes tão liberal, se te coubesse em sorte executares um tyranno, um inimigo de liberdade...
—Não me tremia a mão, tenha a certeza!
E João ergueu-se, vibrando de enthusiasmo, na esperança de poder tomar parte na lucta contra a casta dominante cuja oppressão tanto o magoára.
Parecia-lhe ha muito que o experimentavam os frequentadores da botica, e sentia-se attrahido pelo maravilhoso, pelo mysterio do subterraneo onde constava funccionar uma associação secreta.
Mostrava agora uma firmeza de homem feito, sentindo-se honrado por esse convite indirecto a entrar em acção.
Juvencio fitava n'elle o olhar prescrutador.
—Todos serão precisos!—disse-lhe por fim—e os rapazes mais do que os velhos. São vocês que teem a lucrar com a liberdade. Eu não chegarei a gosal-a em paz.
Commoveu-se n'uma saudade do periodo constitucional, das humanitarias illusões em que tinham considerado a nação livre e feliz para sempre.
Maso gesto de amargura cedeu ante a impulsão do inquebrantavel espirito de combatividade, e proseguiu:
—Como te ia dizendo, a estudantada não se intimidou, e adheriu á revolução, formando o batalhão academico, que lá retirou com os emigrados.
Eram um novo contratempo para João as perturbações da universidade.
E na obsecação do projecto que por esses dias o absorvera, perguntou:
—Então assim, talvez não possa matricular-me este anno?
Sorriu da ingenuidade o boticario.
—És um creançola! Pois não vês que não torna a haver paz sem que elles nos enforquem até ao ultimo, ou nós os desarmemos e ponhamos o Miguel pela barra fóra?
—Não sou tão inexperiente como julga. Mas pelo que vejo naGazeta, D. Miguel foi proclamado rei, e tudo são felicitações e offertas...
—Isso não quer dizer nada. É a gente d'elle, só a d'elle, porque os nossos estão presos ou emigrados. Mas olha que os embaixadores cortaram todas as relações diplomaticas, em protesto contra a infamia dosjuramentos falsos com que nos illudiu, com que enganou as nações estrangeiras.
Puxou triunfante d'uma carta:
—Aqui sabe-se tudo, quer eles queiram quer não. Os tres estados, como tu já ahi lêstes, absolvem-o a seu modo, adoptando a moral jesuitica do juramento condiccional; mas ainda o desculpam de outra fórma, dizendo que elle, ante o parlamento, não jurou com a mão nos evangelhos, mas em cima dosBurrosd'esse bandalho do José Agostinho de Macedo. Tu sabes as minhas opiniões, para mim tanto vale um como o outro, é tudo palavreado de frades. O crime está na má fé de bandido com que abusou da confiança attribuida á palavra de honra de qualquer homem de bem, quanto mais de um principe!
João indicou-lhe o artigo daGazeta.
—Dizem que elle foi coagido a jurar.
—Patife! Estava coacto, sim, é a desculpa d'esses homens que para vergonha nossa ainda governam cidadãos livres como rebanhos de carneiros. Na Villafrancada e na Abrilada, D. João sexto e D. Miguel declararam-se mutuamente coactos e illudidos, para justificarem as traições e as perfidias em que se digladiava a real familia. A sua «sciencia certae o seu poder absoluto» guardam-os esses ungidos do Senhor para pôrem os gatafunhos nas medidas uteis dos seus ministros.
Amarrotou aGazetafurioso, batendo com as costas da mão no artigo dos «tres estados», emquanto passeiava, declamando:
—Isto que ele fez agora, deitar a mão á corôa, já o tentou por duas vezes em vida d'esse pobre diabo de D. João VI, combinado com a porca da mãe. Correu-lhe mal a coisa, teve que submetter-se na Villafrancada, e da Abrilada foi rebolindo de castigo para o extrangeiro. Da Austria, mal se viu livre do pae, escreveu ao senhor D. Pedro, reconhecendo-o e aceitando-o como herdeiro do throno portugues. Quando o grande rei liberal usou do poder para abdicar d'elle no povo, doando nos a Carta Constitucional, e para ceder a corôa á nossa joven rainha D. Maria da Gloria, sob a condição de D. Miguel casar com ella e acatar a Carta, jurou-a solemnemente, e até enviou ao irmão regente um manifesto negando a authoridade do seu nome a quem impugnasse o novo codigo da liberdade. Escreveu ao rei de Inglaterra garantindo-lhe o proposito de fazer respeitar as novas instituições, mantendo por meio d'ellas a paz em Portugal. Ao chegara Lisboa, em triumpho, entre meio de partidarios, sem que um só liberal se lhe podesse aproximar, ratificou, em grande ceremonial, os juramentos, e ainda cumpriu, a seu modo, a Carta, assignando decretos em que a applicava. E quando pôz o exercito da sua mão, mudou a officialidade, augmentou a policia, quando se considerou absolutamente seguro, desmascarou-se, fez-se proclamar rei absoluto, inventou a questão da legitimidade, que nunca até hoje fôra apresentada, e fez trabalhar o cacete e a fôrca.
—E está realmente acclamado rei em todo o reino, como diz aGazeta?—perguntou João intimidado.
Mediu-o Juvencio de alto a baixo, e respondeu n'um aprumo soberbo:
—Mas não o está na ilha Terceira!
Elle retorquiu, receioso, mostrando o jornal:
—Fala-se aqui de uma expedição em que vem a nauD. João VI, e mais dez navios, contra a Madeira e as outras possessões revoltadas...
—Bem sei. E já fizeram exercicio de desembarque diante do «seu anjo». Pois que venham cá, e verão a lição que levam!
Deslumbrava-oo orgulho patriotico:
—Tinha melhores dentes o Demonio do Meio-Dia, e por duas vezes lhe corremos com a sorte. O que a nossa terra fez então, póde repetil-o agora. Até os toiros dos nossos mattos se lhe deitaram na Salga, e Vadez fugiu, apezar dos seus dois mil soldados cobertos de ferro! Para se metterem cá tiveram os hespanhoes que mandar oitenta navios e dezaseis mil homens. Onde tem o Miguel gente para isso? Pois tomára eu que mandasse muita, para que, livres d'ella, o puzessem os liberaes mais rasos do que um chinelo.
Ardia João na impaciencia de saber toda a verdade:
—Por têr mêdo da esquadra o batalhão quer saÃr, como corre?
—Com mêdo, dizes bem. Eis o que valem fanfarronadas de caserna! Lingua têm elles para se darem como autores de tudo, dadores da liberdade, mantenedores da independencia. Mas vê lá se alguem os viu quando entraram os francezes! Nem raça de um. Foram as guerrilhas, paisanada como eu e como tu, que lhes puzeram as uvas em pisa. E quando mataram o grande general Gomes Freire? Se foram elles proprios que o fuzilaram! Havia officiaesinglezes n'esse tempo, mas só meia duzia. A soldadesca e os agaloados eram todos de cá. Que prendas! Em Vinte sahiu tudo para a rua, que duvida, se a coisa não cheirava a esturro. Apenas vivas e palmas! Quando se conspirava contra a Constituição, ainda juraram defendel-a até á ultima gota do seu sangue. Mas assim que os franceses entraram por Hespanha, e o Miguel se levantou, puzeram-se no seguro, e trahiram todos os juramentos, choramingando que a liberdade era má porque lhes deixava os soldos em atrazo, quer dizer, porque não lhes dava em promoções e augmentos de soldo tudo o que pagava o pobre povo. Lá conheceram para que serviam ao atrelarem-se ao carro de D. João VI, que puxaram como bêstas, organisando até a relação dos nomes, e disputando aos fidalgos a honra da preferencia!
—É então certo que retira?
—O major José Quintino Dias apenou os navios da laranja para o levarem a Inglaterra, onde devem ir ter os emigrados. Queria embarcar hoje mesmo, 24 de agosto! Escolheu bem a data, não haja duvida, quando faz oito annos que rebentou a revolução constitucional no Porto!
Considerou tristemente:
—Oitoannos! Como o tempo corre! E estamos peior do que ao começo.
Nada porém abatia a sua fé inabalavel:
—Mas havemos de restaurar a liberdade, embora só vocês gosem d'ella!
João commentou ainda:
—Mas caçadores cinco foi sempre um corpo liberal!
—Pois é isso mesmo o que mais me doe. O bravo cinco! Um batalhão degredado para aqui pela sua firmeza, quando até o famoso dezoito de infanteria, unico que não fôra á Villafrancada, se bandeou, depois de ter recebido, n'essa hora tragica, um exemplar da constituição confiado á sua guarda, e de ter jurado morrer pela liberdade! O cinco, o bravo cinco!
E reconsiderando:
—Mas ouve lá, rapaz, se em geral a tropa não merece confiança, e só pensa no venha a nós, tem tido verdadeiros heroes liberaes, embora por excepção! Esses que emigraram, sem acceitarem as concessões do Miguel, são portugueses de antes quebrar que torcer! Bem viste como se portou o nosso «cinco» em vinte e dois de junho. Agora é que lhe deupara desmanchar-se ... Ainda tenho para mim que ha de reconsiderar.
—Tambem creio que se não vae.
Juvencio exclamou exaltado:
—Lá isso é que não vae, podes ter a certeza! Ha de ficar, ao bem ou ao mal. Não é só meterem-se nas coisas. Quem as arma que as desarme. Vae por ahi uma gritaria, um desespero que é de cortar o coração. Bem se sabe o que o Miguel fará se entrar aqui. São mortes, confiscos, donzellas violentadas, creanças insultadas nos seus lindos olhos azues, a maldita côr constitucional. A elles póde não importar isso, mas nós não queremos a desgraça na nossa querida terra. Se teimarem em fugir, abandonando ao carrasco mulheres e creanças, ensinar-lhe-emos á força o seu dever!
Como sempre, fôra avassallado João pela fé do velho liberal:
—Sim! Sim! Diz muito bem.
E no rosto lia-se-lhe uma formal decisão.
Agora Juvencio approximava-se, commovido, os olhos rasos de agua:
—Quando fôres pae, Joãosinho, comprehenderás a minha dôr. Tenho aqui em cima tres filhas, e já um neto, cujos cabellos loiros são o meu encanto! Aminha familia é a minha religião. Tudo quanto sou, me tornei por causa d'elles! A minha alegria é o reflexo da sua alegria, a minha vida é o trasbordar da sua vida, a mesma que em mim se definha e n'elles se perpetúa. A mulher é tão velha como eu, mas ellas são novas e lindas. Queres saber o que os padres prégam do pulpito abaixo? Que é preciso matar asmalhadas, as filhas de liberaes como as minhas, de preferencia as gravidas, porque as creanças já trazem no ventre o ferrete da malhadice! A minha filha casada está para dar-me outro neto. Calcula agora as minhas queridas filhas, e os olhos azues do meu lindo neto, pasto de soldados e de frades! Não! Não ha de ser assim!
—Na nossa terra não entram esses barbaros!
Mais calmo, limpando as lagrimas, aliviado pelo desabafo, Juvencio continuou:
—É preciso que não entrem! Toda a esperança da liberdade portuguesa depende de nós. Se fossemos vencidos reinaria o Miguel por toda a parte. É o que agora dirão no conselho ao major Quintino. O futuro de Portugal está-se jogando, n'este instante, ali! A ilha Terceira póde defender-se, e ha-de defender-se! É tão bravia a costa do mar, que faz por si só uma muralha, e se n'ella nos vencerem, temosas do castello. A nossa terra é tão insignificante, estará dizendo Quintino, que n'um dia se corre toda em volta a pé. Pois quanto mais pequena fôr, maior o exemplo! Ha-de acabar-se a dependencia. Tornaram isto um degredo, um escoadouro de tudo quanto tem de mau. Mandam para cá o refugo dos funccionarios, o que lhes não serve de nada. Pois se o mal vem de lá, ha-de ir-lhe de cá a lição! Aqui foi o reino do Prior do Crato; aqui viveu ainda por dois annos o Portugal independente, vendido pela fidalguia ao rei de Hespanha; ha-de ser aqui o sacrario da liberdade, que depois reviverá em Portugal!
Observou a praça, e ficou descontente:
—Ein? Tudo na mesma. Mau signal. Já tiveram tempo de decidir qualquer coisa. Pois vamos até lá a vêr se espertam.
Desappareceu no interior da loja.
Estremecia João n'um fremito de independencia.
Sim, resistir aos de fóra, acabar com essa escravidão, o navio cujas noticias o ameaçavam, o primo do continente a quem estava destinada a mulher amada. Queria-a para si, e havia de defendel-a com o ardor com que Juvencio pretendia bater-se pela familia.
Eassim como para o velho constitucional se identificavam os dois amores, tornando-se um a ampliação do outro, sendo o lar o mais sentido representante do maior, assim Maria se lhe tornava o symbolo da sua terra, ameaçada pelos de longe, dominada, como parte da sua população, pelo preconceito, pelo fanatismo.
Percorria-o um fremito de bravura, manifestava-se-lhe, ao influxo da occasião, a hereditariedade guerreira; e sentia-se prompto a combater por ella e pela liberdade, já sem o triste acanhamento em que se humilhára ante a frieza do seu olhar altivo, ante o desdem de um boçal marialva.
Veiu de dentro Juvencio, de chapeu alto, vendo-se-lhe o barretinho por baixo, emquanto, de costas, pretendia fechar a porta interior; trazia o capote preso nos fechos de prata, e debaixo d'elle um volume que lhe tolhia os movimentos.
Voltou-se, sorriu ao encarar com João, e pediu-lhe que encostasse a porta da rua.
Desembaraçou-se, poz em cima da meza uma espingarda de pederneira e o cinto de cartuchos.
Fechou então a porta, metteu a grande chave n'uma gaveta, foi depois verificar a escorva, e por fim desembainhando a espada posta á cinta, mostrou aJoão, que assistia n'uma impassivel gravidade de homem feito, a lamina onde se lia: «Constituição ou Morte».
Tivera-a muito bem escondida como uma reliquia, e nem as perseguições do maldito Stokler lh'a poderam arrancar.
Cingiu o cinto da polvora, enfiou no hombro a bandoleira da espingarda e deitou por cima o capote azul, encobrindo as armas.
N'uma ternura paternal poz a mão no hombro do rapaz, ao despedir-se:
—Adeus, e mette-te em casa, Joãosinho. Temol-a tramada!
—Em casa, eu?—protestou quasi offendido pelo conselho.—Olhe tambem para isto, senhor Juvencio.
E da alta bengala de madeira preta e castão de marfim, arrancou um agudo estoque, e sacou das amplas algibeiras do casaco duas pistolas de pederneira.
—Estão carregadas!
Enternecera-se o velho:
—Pois tambem tu, pequeno! Oh! Com rapazes assim a victoria é nossa.
Muito orgulhoso, João gracejava:
—Entãoo senhor, sósinho, é que havia de defender esta terra toda, lá por ella ser tão pequena? Eu tambem sou terceirense, tambem tenho direito ao meu pedaço!
SaÃram para a praça, repleta de gente.
Não queriam voltar para as freguesias ruraes, sem saberem a decisão, oshomens do monte, as mulheres com o cabello de risca ao meio a luzir de unto, saia pela cabeça, entufadas de saias sobre saias, os pés metidos em galochas de cedro, com pálas de coiro verde, avivadas a vermelho, luzentes de ilhós, cravejadas de pregos de aço.
Nos grupos da gente da cidade graves artistas independentes, carpinteiros, ferreiros, ourives, sapateiros, marceneiros, alfaiates, trabalhando na propria casa, e para si, auxiliados pelos filhos, oupor apprendizes e officiaes, que sentavam á sua meza.
Esperavam n'um grande ar de solemnidade, orgulhosos dos capotes de bom panno azul ou castanho, presos por fechos trabalhados de latão ou de prata.
Commerciantes de chapeu alto, grande casaca, no rigor do trajo constitucional, ostentando bigodes, afadigavam-se por entre os grupos de artifices e camponezes, achando todo o apoio n'aquelles, e n'estes uma desconfiança hostil.
Sentia nas novas leis o seu advento a burguesia liberal, e defrontava por toda a parte o fidalgo e o convento, senhores da terra, parasitas do trabalho, e queria oppor aos monopolios a liberdade commercial.
Mulheres do povo, de capote berneo, n'uma explosão de escarlate; burguesas e fidalgas de manto negro, reunidas em pequenos grupos, parentas, amigas; viravam incessantes os biôcos mal saÃa uma pessoa da camara, e atravessava a praça illaqueada pela anciedade da decisão.
A dentro dos capotes e dos mantos, por sob as pregas apparentemente uniformes, adivinhavam-se no esguio, no flexivel da cintura, no irrequieto do bico de passaro, no adejar de vôo dos largos pannos, as noivasdo batalhão, as apaixonadas d'essa juventude que, no prestigio da farda, na vivacidade de lisboetas, no seu falar cantado, endoidecia as raparigas, com grave ciume dos patricios offuscados.
Reconhecia-se o abandono das quarentonas sem futuro, gordanchudas, afogadas em seios já inuteis, semeadas por entre os grupos como escolhos, em torno dos quaes esvoaçavam os bandos de garças.
Havia vendedeiras de capello deitado para traz, suffocadas pelo calor e pelo medo de perderem o rosario de dividas deixadas pelas tropas ao levantarem campo.
Tapavam rebuços os rostos lacrimosos das namoradas e amantes dos soldados, dos officiaes e dos sargentos; mas carpiam-se, por todas as saudosas, asmulheres da Rocha, lenço de seda na cuia, chaile terçado, rosetas de vermelhão nas faces, labios pintados, arrepelando-se, bradando contra a saÃda d'esses divertidos rapazes, cujas guitarras trinavam melhor que as enfadonhas violas de arame da terra, d'esses bons fregueses, tão generosos e tão pandegos.
Capitaneado pela Joaquinina do Ó, estava o rancho das beatas encoberto com o canto da rua da Sé.
Deatalaya á botica, destacava alviçareiras para o convento dos franciscanos; era um constante borboletear de mantos pela ladeira de São Francisco, e as que voltavam falavam ás que iam, encostando n'um tremelicar nervoso os biôcos, como antenas de formigas.
Traziam medalhas com o retrato de D. Miguel, bentas pelos frades, e que elles proprios lhes tinham posto ao peito, para ostentarem victoriosamente, mal houvesse a certeza de que retiravam os caçadores.
à apparição do boticario, afadigou-se nova emissaria ladeira acima, e foi adejando o enxame atraz do velho e de João, seguindo-os por entre os grupos até junto da escada de pedra, que subia exteriormente á fachada do edificio, encimado pela torre do sino onde se tocava a recolher.
Para os lados da rua do Gallo reunia-se o grupo dos mais influentes constitucionaes, que não tinham assento no conselho.
Por vezes distrahia a espectativa o borborinho, gritos, risadas, vindas dos arcos da cadeia.
Davam para as arcadas que sustentavam a varanda de pedra da fachada, as janellas das enxovias, onde haviacestos arvorados em canas, como apparelhos de pesca armados á compaixão.
Ia a gente do monte agarrar-se ás grades, uns a comprarem pentes e grosas de botões de chifre, enfiados em agulhas de feno; outros a mirarem com olhos compassivos a nudez da prisão, a bilha de agua, o immundo boião dos dejectos, a tarimba de madeira onde se mantinha acocorado oMarmanjão, meditabundo, envolto em pedaços de colcha esfarrapada, offendido por essa profanadora curiosidade, elle, o santinho, como lhe chamavam os frades que o tinham de olho para carrasco; muito temente a Deus, notavel pela frequencia com que se confessava e commungava, e indigitado para a nobre missão de executor pela limpeza com que em S. Bartholomeu demolira com uma só paulada o homemzarrão de um vizinho.
Regateava em voz fanhosa gaiolas de cana com melros pretos de bico amarelo, grandes cantores, oMujinha, baixo, olhinhos de bisnau, pondo um traço de intrigante na cara rugosa; gatuno, fachina da cadeia e afilhado de chrisma do carcereiro que lhe levava caridosamente á porta as gaiolas, em ademanes de sacristão.
Com a pronunciada queda commercial d'esse, contrastavaa do seu visinho de janela, oZica, muito correcto e limpo, cantarolando á moda da ilha de S. Miguel, vendendo pentes de baleia, cumprindo resignado a pena imposta por uma desforra tirada á má cara, n'uma noitada de vinho.
Este era constitucional, e arvoráva sempre, provocadoramente, as guias do grande bigode, sem sequer as deitar abaixo, apesar das denuncias do santarrão pretendente a carrasco, e das intrigas do gaioleiro, durante o tempo em que a ilha acatára a usurpação.
Logo na grade contigua outro miguelista, oRoseiro, um velhinho sem dentes, deprimido como uma fava escoada, alegrava os curiosos com inexgotaveis historias de toiradas, em que era uma auctoridade, e recebia em troca pedaços de pão de milho, e algum grande pataco com a effigie do senhor D. João VI, em premio á fidelidade e á coragem com que descrevia o «senhor D. Miguel» rejoneando toiros desembolados, e o seu confessor, fr. José da Rocha, saltando á praça e pegando á unha.
Apoiado aos fortes varões que de seculos de afflictivas despedidas tinham as quinas amolgadas, como que derretidas pela ardencia em que se lhes crispavam as mãos dos desgraçados, falava com a familia eos visinhos do Raminho, um camponez alto, magro, rosto ossudo, enorme nariz, gago, dentes pôdres, grandes pés descalços espalmados, por alcunha oLindinho, condemnado por morte d'homem ás Pedras Negras.
Contava com esse a fradaria para ajudante de carrasco, pois a faina promettia, e só lamentava que não houvesse n'elle a necessaria uncção doMarmanjão, e que ambos, apesar de já afeitos, não tivessem a comprovada pericia de carrasco de officio, nem o aspecto, que só por si fazia chorar as creanças, obrigadas por lei a presencearem as execuções, de um celebre preto a quem fôra commutada em prisão perpetua a pena de morte, para fazer pernear condemnados na forca, de saco pela cabeça, ante a bandeira da misericordia.
Que falta lhes fazia ali, para a restauração do governo do throno e do altar, um patriota como oCambaças, que se offerecera para enforcar os liberaes; ou um preso como oFitas, ladrão celebre, grande partidista de D. Miguel; que até os ladrões eram por el-rei contra a immunda canalha jacobina!
Sentado de lado, contra a grade, sem encarar os ouvintes, oFerrabrás, faquista, contava historias, quenão provocavam gargalhadas como as doRoseiro. Eram de bruxas, de almas do outro mundo, e o olhar em extasis, e a barba inculta na cara descarnada, impressionavam, tornando mais horrorosas as apparições de phantasmas de incorrigiveis constitucionaes, como o illustre general Araujo, odiabo, assassinado pelos reaccionarios, com repiques e illuminações das freiras de S. Gonçalo, e que ao bater da ultima badalada da meia noite arrastava correntes pelo Caminho Novo, vendo-se-lhe pelas costas abertas o fogo do inferno que o consummia.
Abaladas pelos medonhos pavores caiam mulheres com faniquitos, e então descia uma ordenança tinindo ferros, a prohibir os choros de uns e as berratas torreiras de outros.
Puxava o carcereiro os presos para dentro, n'um ar compungido, mas severo; obediente ás ordens, mas doendo-se da sua execução; injuriando os renitentes entre abundancias de «valha-me Deus»; e só não levava o seu rigor ao ponto de fechar as janelas, porque não tinham portas, bastando á justiça o gradeamento para que não fugissem os presos, e convindo-lhe que a chuva molhasse o lagedo, afim de que ao saÃrem os condemnados, expiada a pena, setornasse mais salutar o seu exemplo por irem tolhidos para o trabalho.
Cumprida a ordem, ia entregar-se Benicio ao formal desempenho da sua missão de chaveiro, vigiar a porta chapeada de ferro; e sentava-se junto d'ella a untar de azeite as chaves do postigo, dos cadeados, do segredo, do alçapão por onde se despejava cal para aplacar as desordens, fechando por calculo os olhos ao negocio e os ouvidos ao falatorio, para que «os pobres de Christo», coitados, podessem fazer o seu vintem, tanta gente juntára o Senhor n'aquella praça; que elles afinal não eram maus rapazes no seu fadario, «valha-os Deus», são sortes, e até no fundo eram generosos, recompensando-lhe a caridade com que os deixava fazer pela vida.
Voltavam os presos pouco a pouco ás grades, metia-se á formiga o povoleu pelas arcarias, e recomeçava a cantilena do «eu te requeiro da parte de Deus e da Virgem Maria», efficaz para desembruxar almas penadas; o pittoresco do «e vae o senhor D. Miguel ferra-lhe com o rojão mesmo no sitio»; a «Chamarrita, chamarrita, chamarrita, chama Rosa» das cantigas do baleeiro; e a giria commercial doMujinha«Ó meu rico freguez, perco n'esta gaiola metade do que dei ao homem que me foi apanhar oscaniços», o chamariz com que ganhava perdendo sempre.
N'aquella mesma praça, com essa mesma gente, recordava João, fôra celebrado ha dois mezes, em 22 de junho, o triumpho da liberdade e da Carta, a revolução liberal do Porto de 18 de maio.
Agora, em vez da alegria d'essa manifestação, o receio de que tudo se desfizesse n'um momento. Estremeceu ao lembrar-se como então, de subito, ficára o chão regado de sangue do povo, no tumulto provocado pela malvadez de um padre, e em que a cobardia da soldadesca, disparando para intimidar, matara quatro indefesos homens.
Mas tranquilisou-se observando melhor. Não se via nem padres nem soldados: não havia perigo.
Fez a impaciencia de Juvencio extravasar a dos mais.
Se por si só o conselho não tinha força para demover o commandante, era tempo de intervirem.
Acharam-lhe razão, e do grupo separou-se logo, sem dizer palavra, Cypriano da Costa Pessoa, um negociante alquebrado pela doença e pela edade.
Subiu alguns degraus da escada de pedra, amparou-se ao corrimão, e voltando-se para o povo descobriu a cabeça embranqueçida e dispoz-se a falar:
«Concidadãos!»
Custou a fazer silencio e, apesar de restabelecida a ordem nos grupos mais proximos, ainda da arcada dos carceres, de onde se não via o orador, vinham echos desencontrados, provocando um sussurro de protesto.
«Concidadãos!»
E a voz cava de Cypriano repetiu a invocação, procurando o volume preciso para se fazer ouvir até ao extremo.
Que queria ali aquelle homem?
Cravavam-lhe olhos esbugalhados os camponezes, pasmados de que alguem se atrevesse a levantar a voz em publico, sem ser um clerigo, sem ter que contar milagres de santos.
N'um grande esforço, conseguira o orador fazer retumbar até ao canto da praça, onde costumavam juntar-se os mariólas, como um grito de alarme:
«Nas actuaes circumstancias mais vale morrer com as armas na mão do que soffrer os insultos dos satélites do usurpador!»
A convicção das suas palavras fez estremecer os proprios que estranhavam esse secular imitando padres, fazendo pulpito da escadaria municipal.
Continuava trovejando a voz de Cypriano, modelada pelaentoação dos prégadores, pois não tivera a lição civica da oratoria constitucional.
N'um fremito de terror echoava aos ouvintes a ameaça, correspondente á absoluta verdade:
«Não tardará o massacre de quantos liberaes elles puderem colher ás mãos!»
Ante os olhos apavorados dos que se viam, d'um momento para o outro, sob a alçada do carrasco, passava o rosario de crimes absolutistas, as perseguições de Stokler ali na ilha, a prisão e deportação dos deputados ás côrtes constitucionaes, a captura em massa operada pessoalmente por D. Miguel, de aguilhada em punho, os nove estudantes enforcados no Caes do Tojo, as covas abertas em Portalegre á porta dos liberaes, a tortura de Renduffe, o envenenamento de D. João VI, o assassinio de Loulé.
Iam ficar sujeitos a taes horrores se caçadores 5 abandonasse a ilha.
E nas faces consternadas reappareceram as lagrimas.
Mas nem Cypriano da Costa, nem os liberaes do seu grupo se mostravam desanimados.
Cheios de fé, queriam luctar e appellavam para o auxilio de todos.
Poressa praça, tão divertida em tardes de toiros e cavalhadas, resoava a mesma voz grave, sentida:
«Para desviar este mal tão imminente, poupar a nós e a nossas familias, amigos e parentes, convém que já, já, os amantes da patria e da boa ordem vão offerecer-se ao governo, alistando-se voluntariamente para servirem debaixo das armas!»
Ficou abalada a concorrencia, e a ideia emittida do alto agitou por camadas a turba, enthusiasmou os liberaes mais proximos, perturbou os mestres de officios, entonteceu as cabecinhas de capuz escarlate, revoluteiou as dos amplos capellos, e por fim saccudiu em tardas negativas os barretinhos de borla, de malha amarela e vermelha, e as carapucinhas de panno preto, em forma de tijela, talhadas em quartos como barretes de clerigo, dos camponios.
Insistiu no convite:
«N'esse momento, e desde já, não cuidava mais de outros negocios, nem entendia haver occasião mais conveniente de prestar melhor serviço á sua patria e a tantas familias,»—e aqui a voz vibrava vergastadas—«sob pena de serem considerados como pusilanimes e ingratos!»
Só lhe restavam forças para offerecer o exemplo do seu sacrificio:
«Emfim,não ha tempo a perder! Todos os que quizerem seguir tão brioso partido que me sigam a mim!»
Agitando o chapeu, abrangendo a praça n'um olhar de convite, subiu com firmeza as escadas, até ao alto da varanda de pedra.
Foi Juvencio o primeiro a seguil-o, agitando o chapeu alto e erguendo vivas á Carta e a D. Pedro.
Responderam acclamações, agitou-se a praça inteira, e á medida que se aplacou o vozear, perceberam-se gritos, brados de afflicção.
Das janelas por cima da botica, adivinhando-lhe a intenção, gritavam as filhas de Juvencio, mas elle, na embriaguez do rasgo, continuava a subir.
Arrancando-se aos braços de mulheres que se estorcem, debatem-se homens enthusiasmados, olhos fitos nos voluntarios que, do alto da varanda, agradecem as palmas e saudações.
E correm por fim, vencendo a resistencia das que choram desgrenhadas, indo sacrificar-se para lhes pouparem mais amargas lagrimas.
São já quarenta, dos mais distinctos, os voluntarios, mal cabendo na varanda de pedra, e João encontra-se entre elles, sem ter raciocinado, sem se lembrar das velhas, do estudo, nem da ida para Coimbra,na impulsão geral, na ancia de defender a liberdade, na ambição de apparecer aos olhos de Maria como um homem, aos de Jorge e do frade como um altivo adversario, aos do morgado como um convicto de que é egual a elle, e de que vae affirmar, com risco da propria vida, o direito a erguer os olhos para as pompas do seu brazão.
No impeto em que se haviam manifestado, logo outro negociante, João Antonio Bacellar, entrou á frente dos companheiros na sala do conselho e, offerecendo o serviço voluntario de todos, falou em termos taes que obrigou o governo a declarar mantidos os principios de legalidade contra a usurpação de D. Miguel.
Manifestaram-se no mesmo sentido o secretario da junta Manuel Joaquim Nogueira, o tenente Lobão, o doutor Antonio da Silveira e Theotonio de Ornellas que, no enthusiasmo pela obra de 22 de junho, para que tanto concorrera, chegou a precipitar-se de espada em punho contra o juiz Calheiros, contrario ao movimento.
Accede por fim a correr a sorte da ilha o commandante do batalhão, e na emoção d'essa boa nova o ajudante de ordens vem agradecer e acceitar, em nome do governo, a offerta dos terceirenses, que ficamconstituindo a companhia de voluntarios reaes, sob o commando do capitão de milicianos Theotonio de Ornellas, devendo eleger entre si os outros officiaes.
Então saem todos para, como em 22 de junho, irem ao castello. No desafogo do perigo afastado sauda o povo o governo e os voluntarios. O velho dr. João José da Cunha Ferraz, provisor do bispado, thesoureiro-mór da Sé, e presidente do cabido, o melhor advogado da ilha, palpita, apesar dos setenta e tantos, no delirio da juventude, e vae atirando o barrete ao ar e correspondendo aos vivas na voz tremula, emperrada pela gaguez.
Arrebanham-se as beatas, corridas, pela ladeira de S. Francisco, atravancando-a, alastram pela escadaria do adro, e somem-se pelas tres grandes portas da egreja do convento, ávidas de consolarem as almas tão opprimidas, com os exercicios espirituaes dos santos frades, que não deixarão, decerto, de dar-lhes o prazer de um retumbante sermão de desabafo, de protesto ao ceu, e de algum desaggravo lithurgico á affronta feita áquella hora ao seu querido rei, essa encarnação do archanjo S. Miguel.
E ali dentro, na protecção do templo, poderiam ostentar as medalhas dos retratos, em que o rosto dorei apparecia córado, n'uma vermelhidão de sangue, ostentando-o sem medo nos abundantes peitos de amas de clerigos.
Seguiam triumphantes o cortejo as que choravam pelos militares, mas tanta gente corria ás adufas e acudia ás portas, que o novo bando, escarlate e negro, escoava-se pela rua de S. João, para se adiantar pela rua da Rosa, Quatro Cantos e Bôa Nova, indo esperal-o ás alturas do Relvão, aonde já a curiosidade não macularia de suspeitas o seu enthusiasmo.
Assentadas no muro do campo de manobras da fortaleza, entre esse mar de relva requeimado do sol, onde a primavera semeia papoulas, borboletas e malmequeres; em face á viçosa explanada que, com as baterias e banquetas, mascara os caminhos cobertos e os fossos; deitaram para traz os capellos, offegantes da correria, n'uma exposição de lindas caras que confirmava aos militares o credito de invenciveis nas mais frequentes das suas campanhas.
Transfundira-se na mais pura raça portuguesa do seculo XV o sangue flamengo que dera o typo esbelto, a frescura de tez, a transparencia do olhar ás delicadas louras; dotára-a o Brasil da exhuberancia dolentedas creoulas, cabello de azeviche, dentes miudinhos, fundas olheiras; trouxera-lhe a dominação hespanhola o galante requebro da andaluza e o preto dos seus olhos seductores; e o dos hebreus fugidos déra, á sadia carnação das morenas, olhos apaixonados de judia onde esvoaça a nuvem da saudade.
Amando-as olvidaram emigrados penas do exilio, e finda a guerra voltaram, a tornar definitiva a patria em que os adoptara a meiga ternura.
Ouvia-se já perto o vivorio; vinha passando o cortejo por baixo das gelosias do convento de S. Gonçalo, de onde as freiras constitucionaes acenavam com lenços, gritando no falsete do côro: «Ou Constituição ou morte!», transportadas pelo fremito de liberdade, acclamando os que haviam de arrancal-as a essas grades, profanadoras da sua virgindade, asphyxiantes da sua juventude, e restituil-as á vida, ao amor a que tinham sido sequestradas.
Mal as raparigas casadoiras avistaram lenços de côres de mulheres do fado voejando entre o povo, escabrearam ladeira acima, para entrarem pelo portão dos carros, seguidas a custo pelas mães e tias que as pastoreavam, lingua de fóra.
Já dominavam a praça do castello, da rua que dá paraas baterias, quando resoou na tropeada a ponte de pedra, por sobre o fosso.
Sentiu-se ranger a ponte levadiça, nos seus engenhos de correntes e contrapesos de pedra, ao echoarem as passadas na madeira; retiniu n'uma brilhante extensão de voz um alegre brado de «ás armas»; e sob o abobadado das portas bateram as pancadas seccas das bandoleiras ao apresentar armas.
Nos quarteis vibravam toques de corneta, vozes de commando: Caçadores cinco que reunia na sua parada, e avançou depois até á praça do castello.
Atraz das companhias vinha de dentro, com ranchadas de filhos, outro grupo de mulheres que as lindas raparigas e as gastas rameiras olhavam com respeito e compaixão.
Ficaram-se entre a egreja e o palacio as companheiras do batalhão, fieis como cães, inconscientes no perigo como os soldados, firmes como se as sujeitasse a mesma disciplina; lavadeiras das esquadras, mulheres ou amantes de soldados, seguindo como vivandeiras a tropa; lisboetas baixinhas, pescoço curto, sombras de buço, de uma viva petulancia no lenço engomado, em pontas, que usavam na cabeça, com o capote, com grave offensa dos capellos ilheus; airosas varinas, leves, saia curta, pé descalço,collete affirmando-lhe o busto e erguendo-lhe o seio, chapeu de velludo, coração de ouro e grandes argolas.
Tinham atada a minguada roupa, promptas a partirem, como as escunas inglezas que por baixo das muralhas se baloiçavam nas ancoras, sem um protesto, como ao virem por mar com os seus degredados; na mesma firmeza de outras bravas mulheres, que de trouxa á cabeça acompanharam pela Galliza a divisão emigrada, e de lá seguiram com ella para as miserias de Inglaterra.
Desembrulhavam os trapos ao tempo em que os navios, desimpedidos, se abarrotavam de caixas de laranja, e agora desabafavam contra «o Miguel», em gestos de regateiras, em palavradas de tarimba.
Formára Theotonio d'Ornellas a companhia de voluntarios á esquerda dos caçadores, e João, que ficara entre Juvencio e o seu professor de latinidade, aprumava-se como um verdadeiro soldado.
Da escadaria do palacio do governador do castello, que servira de prisão a Affonso VI, discursou o secretario do governo affirmando a deliberação de se manter a causa.
Respondeu-lhe o major Quintino Dias declarando-se, ellee todo o batalhão, dispostos a «derramarem a ultima gota de sangue».
Avançou a bandeira até á frente dos Reaes Voluntarios, e estes, estendendo a mão direita, juraram «guardar e fazer guardar a constituição politica da monarchia portugueza».
Tocou a banda o hymno constitucional composto pelo imperador em 21, ergueram-se os vivas da praxe á Santa Religião, á Carta, e a D. Pedro, e n'essa fraternisação de povo e tropa, gente da terra e de fóra, viu João estabelecer-se a unidade do sentimento nacional na aspiração de liberdade, e sentiu-se para sempre ligado ao destino da causa, até ao triumpho da nova ideia, ou até á morte pelo ideal.
Dissipara-se-lhe, como a todos, o terror de pela manhã.
Tinham trepidado alguns, mas eram bem melhores do que os fugidos noBelfast.
Havia uma consciente decisão n'aquelles dos militares que sempre tinham querido ficar, communicando-se agora aos que a fraqueza dominára por um momento.
Só a aspiração liberal reunia todas as classes da nação.
Estavam ali, ao abrigo das muralhas, ligando-se nosmesmos protestos, a nobreza, o clero, a burguezia, o operariado; profissionaes da guerra como os officiaes, os sargentos e os velhos soldados readmittidos; populares trazidos á força para a fileira pelo «Joaquim agarrador»; antigos voluntarios alistados em 23, ao perigar a causa liberal; os que se offereciam agora; e todos, fardados e á paisana, e os proprios que ainda não se tinham deixado arrastar, formavam uma phalange, invencivel porque era realmente a nação armada, e offereciam-se ao sacrificio no momento em que bordejava contra elles uma forte esquadra, com o bojo cheio de juizes, de carrascos e de forcas!
Já reconciliadas do arrufo, debruçaram-se as primas no mirante da quinta dos Folhadaes, devorando com os olhos o caminho da cidade.
—E nunca mais cá veiu?—perguntava Josepha da Esperança.
—Nunca mais. Como se tornou esse rapaz! Tão orgulhoso como se fosse fidalgo, tão brioso como nós!
—É o que elles dizem, que valem tanto como os nobres, que somos todos eguaes. Que te parece, prima?
—Não percebo nem quero perceber d'isso. É bom para as caturreiras de fr. Angelico e do pae.
—Queelle é melhor que o primo Jorge, lá isso é que é.
—Achas?
—Está feito um homem. Diz coisas graves como nenhum dos nossos primos seria capaz.
—Deu-lhe para tomar a serio o que não devia passar de uma brincadeira.
—Mas tu não desgostavas d'elle.
—Não desgostava, não.
—É muito sympathico.
—É um bonito rapaz, confesso.
—Aquelle lindo buçosinho... E a covinha do queixo, e as das faces, quando se ri. É um amôr!
—Engraças muito com elle.
—Não fiques com ciumes.
—Eu? Toma-o para ti, que t'o agradeço.
—Isso agradecias tu. Não gosto de sobejos, mas lá por falta de mulher não deixa elle de casar.
—Como tu és! E o primo?
—Não lhe chega aos calcanhares.
—Olha, o teu genio é que eu nunca hei de comprehender.
—Então, filha, são feitios. Cada um é como Nosso Senhor o fez. Mas ao menos eu confesso a minha fraqueza, gosto muito, muito, de um bonito rapaz, enão quero meter-me a freira. E as que dizem que lhe atiram com pedras, estão pregadas nos mirantes a vigial-os...
—Já lhe disse, prima, que não quero o João para namorado.
—Mas para que passa agora todas as tardes aqui, de alcateia...
—É que me irrita o procedimento d'elle. Dito e feito! Que nunca mais vinha, e nunca mais appareceu.
—E isso dá-lhe pena?
—Não. Mas exaspera-me pelo seu atrevimento. Queria vêl-o mais uma vez, descompol-o muito, dar-lhe muita bofetada, muita bofetada, puchar-lhe pelas orelhas, e depois dizer-lhe: «Põe-te fóra, fedelho, e vê lá para quem te atreves a levantar os olhos».
—Pois caiste, prima, e não foi sem tempo. Já não pódes passar sem elle.
—Não me diga isso, que até me mete raiva.
—Essas furias já passaram por mim.
—A prima é muito experiente.
—Pois sou, e por isso sinto que lhe estás nas mãos, ou nunca mais pensavas nas suas palavras.
Maria não lhe respondeu, e continuou a observar aestrada, na irritação em que ficára desde a saÃda de João.
N'uma crise nervosa passára os primeiros dias fechada no quarto, sem vêr ninguem, depois fatigara-se em pertinazes passeios ao longo das varandas de pedra, para cá e para lá, olhos fitos na direcção que elle costumava trazer.
Abandonada pelo pae, sem intimidade com a mãe, que passava o tempo na cozinha fazendo doces, ou em exercicios espirituaes com fr. Angelico, vira-se forçada a mandar chamar a prima Josepha, para ter com quem desabafar.
E apezar do que ella lhe dizia, não cuidava amar João. Nutria contra elle, ao contrario, um sentimento de hostilidade, de revolta. Sentia uma insurreição de todo o seu ser contra essa creança que de repente, sem lh'o ter deixado suspeitar, entendera dispôr absolutamente do seu futuro, querendo-a para sua mulher.
Continuava Maria amuada, ria á socapa Josepha da Esperança, quando passou o jardineiro, com um braçado de flores e a podôa na mão.
—Ora tenham muito bôas tardes, minhas meninas. Então já sabem a grande novidade? Vem cá hoje o nosso homensinho.
—Quem,tio Jacintho?—perguntou Josepha, para acirrar Maria.
—Quem ha de ser? O senhor Joãosinho.
—Ouves? Temol-o por ahi.
—Que me importa!—protestou Maria, muito córada.
—Vi-o hontem na cidade, já anda fardado de voluntario, e a farda fica-lhe a matar. Está uma flôr! Até se parece com o avô, o capitão Silveira, que eu vi assentar praça da mesma edade. E ha de ir longe como elle, ha de ir longe!
—Não lhe disse nada?—perguntou a prima.
—Não sejas inconveniente, Josepha, ou ficamos de mal.
E para impedir alguma inconfidencia do velho:
—Vá com Deus, tio Jacintho, e obrigada.
Mas a prima ainda o deteve:
—Diga-me cá, elle agora póde chegar a official?
—Até a brigadeiro, que é muito capaz d'isso, e as meninas ainda o hão de vêr a cavallo a commandar batalhões e regimentos. Eu já hei de estar debaixo da terra, mas vou consolado por deixal-o bem encaminhado, que lhe quero como se fosse meu filho.
Muito maldosa, Josepha virou-se para Maria:
—Casarásquando elle fôr brigadeiro, muito velhote como o tio Vicente.
—Quando deixarás de meter-te na minha vida, prima?
—Quando tu m'a contares como bôa amiga. Começa lá, e confessa que te péllas pelo João.
—Se assim fosse não fazia mysterio, não tinha de quê. Mas não é verdade, não é verdade!
E sentou-se pensativa na banqueta, fronte apoiada á mão, a olhar ao longe.
Retiraram-se porém subitamente, e foram ambas esconder-se no jardim, ao avistarem fr. Angelico. Enfadava-as a sua apologia da vida conventual, no interesse de obter para a ordem os dotes e os bens que, como ricas herdeiras, lhe trariam; repugnavam-lhes as pretendidas caricias paternaes em que o seu instinto de mulheres adivinhava desejos lubricos.
O frade, que reparara na subita desapparição, passou rosnando ameaças por debaixo do mirante, e entrou, mesmo sem bater.
Bufando, limpando o suor, afrontado da caminhada, só deu com Martinho Vasques na adega, desabotoado, sentado em cima de um barril, observando o alambique, e provando a aguardente de vinho que mandára queimar.
Offereceu-lhelogo uma caneca cheia, que fr. Angelico esvasiou, limpando a bocca á manga do habito, e explodindo logo na sentença que viera preparando pelo caminho.
—Malditos tempos, senhor morgado, malditos tempos!
Martinho escorropichou gulosamente, e concordou:
—Não sei como tanta impiedade não provocou já um tremendo castigo! Deus porém compadeceu-se de nós, e as vinhas continuam, como nos dias de fé, a dar este saboroso nectar ... Outro, fr. Angelico, outro copinho...
Offereceu-lhe, na ancia de propaganda dos alcoolicos.
Saboreou o frade aos goles, defendendo-se:
—Senhor, preciso forças para falar.
Acabando de beber, tornou a bradar em tom de sermão:
—Tempo de desgraça! Tempo perverso!
Mirou-o o morgado, surprehendido por essa gravidade, só usada quando havia gente de fóra.
—Você tem coisa, ó Angelico!
—E grave, meu senhor.
—Pois desembuche.
—TenhaV. Ex.aa bondade de subir ao escriptorio...
—Homem, subir ... essa agora!
E olhava apavorado a escada de mão, encostada ao alçapão que da casa de jantar dava para a adega.
—Não póde abrir o bico ahi mesmo?
—Trata-se de um assumpto tão grave ... tão grave...
Pelo ar mysterioso, ficou Martinho desconfiado:
—Se é mais dinheiro para guerrilhas acabou-se ... Quero dizer, os tempos vão maus, os rendeiros pouco pagam ... E você bem sabe que a estas horas não estou em casa para taes coisas...
Indo da meza para a adega, saindo da adega para a meza, reconhecera ha muito o morgado que de tarde não fazia bons negocios, e antes de jantar fechava as gavetas do dinheiro e saÃa sem cinco réis, para que não lh'o extorquissem, com intimidações do inferno, para missas; para que não lh'o arrancassem, com lagrimas, antigas jovens das redondezas, invocando as complacencias de solteiras em favôr dos maridos, dos filhos, dos netos.
—Não se trata de dinheiro, meu senhor, embora saibaque a sua generosa bolsa está sempre aberta para a defeza da bôa causa.
E falando-lhe ao ouvido, insinuou:
—Trata-se da sua honra, senhor Martinho Vasques de Linhares Soeiro!
Ergueu-se, aprumou-se o morgado, e os musculos do rosto, distendidos na bonhomia de ebrio, contrahiram-se n'uma inesperada expressão de gravidade. A normalidade da embriaguez permittia-lhe a consciencia das situações extremas, ao contrario da absoluta perda de conhecimento dos que não bebem por habito, e só excepcionalmente se transtornam.
—Siga-me!—ordenou ao frade, que se humilhava hypocritamente, n'um ar compungido.
Encaminhou-se para a escada de mão, segurou-se-lhe, poz o pé no primeiro degrau, mas ao querer subir cambaleou, em risco de cair.
Offegante do exforço, accentuou se-lhe na fronte uma ruga, e pairou-lhe nos labios uma contracção de vergonha, de nojo de si mesmo. Ia occupar-se da sua honra a cair de bebedo!
Tinha de dar a volta, e entrar pela escada principal.
Então abotoou o collete, compoz a casaca, puchou ospunhos, arranjou as pregas dos bofes, e apoiando-se ao marmeleiro que deixára contra as pipas, caminhou n'um ar magestoso, seguido pelo frade cabisbaixo, rastejante.
Pesadamente, no mesmo aprumo, entrou no escriptorio, foi sentar-se na solida cadeira negra, de alto espaldar, encimada pelo folhado de uma concha, e agora parecia-se com os retratos dos antepassados da sala nobre, a grave cabeça apoiada nos hombros largos; a meza, as pennas de pato de que nem sabia usar, a gravidade do conjuncto dando lhe o ar de um ministro, de um desembargador.
—Explique-se!—ordenou-lhe, como um juiz a um reu.
De pé, nos gestos dos grandes dias, começou fr. Angelico:
—Senhor, esta casa acaba de ser duplamente enxovalhada. Sentou praça de voluntario, em reforço ao infame batalhão que é a vergonha e o grilhão d'esta terra, esse rapaz que V. Ex.aprotegeu, e que recebia em sua casa como a um filho...
—O João? Já tinha reparado na sua falta.
—Hão de dizer que são os nossos exemplos!
—Meteram-lhe isso em cabeça, patifes! A culpa éde quem perverte a juventude, e a arrasta para os abysmos da impiedade.
—Talvez V. Ex.anão leve a sua generosidade a ponto de perdoar-lhe, quando o vir logo entrar fardado aqui.
—Aqui?
—Sim senhor, a titulo de pedir desculpa de não poder continuar com a escripturação, mas para nos afrontar com o maldito uniforme constitucional, porque bem sabe quaes são as opiniões de V. Ex.ae minhas.
—Bom é que venha, que lhe quero dizer algumas verdades, e dar-lhe puxões de orelhas, que é o que merece.
—Perdôe-me V. Ex.amas nem devia consentir que viesse...
—Isso é commigo.
E dirigindo ao frade um olhar severo:
—Mas que tem que vêr isso com a minha honra, a que você se atreveu a alludir?
Curvou-se mais o frade, e respondeu na voz lagrimejante dos sermões quaresmaes:
—Já lá vamos, senhor morgado, já lá vamos, embora o que me pesa ... só Deus o saiba!
Aproximou-seda meza, e quasi ao ouvido de Martinho:
—Perdôe V. Ex.a, mas diz-se á bôcca pequena que o miseravel ousa levantar os olhos para a senhora D. Maria.
—Para minha filha?
Ergueu-se apopletico o morgado, o sangue a rebentar do cachaço rubro, abaixando a fronte, n'um gesto de investida. Zumbia-lhe nos ouvidos um turbilhão de sangue exasperado, passavam-lhe no olhar relampagos de vingança, e os labios mexiam-se-lhe convulsos.
Mas tornou a sentar-se, e disse com certa compostura:
—Isso póde não passar de uma brincadeira. Comtudo fez bem em me avisar.
—Desculpe V. Ex.a—insistiu o frade—mas não se trata da infantilidade que julga. São os conselhos da botica, é a lição da liberdade! Esses infames querem afundar tudo na anarchia, e lançar mão das grandes casas fidalgas, em nome da egualdade que apregoam!
Meditou o morgado, a cabeça apoiada entre as mãos, e depois disse gravemente, em phrase arrastada:
—Basta,fr. Angelico. Isso póde ser um calculo d'elle, mas não alcança minha filha, nem attinge a minha honra, entenda-o bem. Podem fazer as leis que quizerem sobre egualdades. Quem é do nosso sangue não desce! Vença quem vencer, nós continuaremos a ser o que sômos, e elles o que são. Vossa reverendissima não póde comprehender isto, porque é plebeu. Mas eu sinto-o no sangue, como minha filha o deve sentir.
Conteve n'um gesto o frade, que ia a falar.
—Póde retirar-se. O que tenho a fazer é commigo, juiz e executor em minha casa, na minha familia e na minha raça, como chefe de linhagem que sou!
E correspondendo ás subservientes reverencias de fr. Angelico:
—De caminho mande-me o quinteiro, faça favôr.
SaÃu pouco satisfeito o franciscano, procurou o quinteiro, mandou o á presença do fidalgo; depois chegou ao portão da quinta, observou para fóra antes de o transpôr, e em seguida, muito cosido com o muro, partiu para os lados de S. Carlos, para voltar á cidade sem se encontrar com João.
Notaram-lheas manobras Maria e Josepha da Esperança, que tinham voltado ao mirante mal elle entrara.
Satisfeitas, por se verem livres d'elle, continuaram a observar impacientes o caminho da cidade.
Distinguiram por fim ao longe uma figurinha de militar.
Era João, vestido de guarda nacional, farda curta de saragoça portugueza, com botões brancos, golla azul claro, laço azul e branco no chapéu redondo.
Do ponto onde estava, o mirante sobranceiro ao pateo, em face ao alpendre da escada, ia vêl-o entrar e, talvez como antigamente, elle viesse falar-lhe, arrependido da imprudencia.
Pensando assim, seguia-o Maria n'um olhar de anciedade, encobrindo-se com as trepadeiras do caniçado, para não lhe dar a confiança de mostrar que o esperava.
Vinha já perto, quando notaram dentro movimento desusado.
Corria o quinteiro, e meia duzia de cavadores de enxada, batendo os pés descalços na terra endurecida pelo calôr, varapaus ao hombro, falando alto.
Desacorrentára o creado dois grandes cães de fila, amarelos, rabo cortado, focinho negro, fauces ameaçadoras,que de noite rondavam ganindo e uivando.
Ao chegarem ao pateo, occultaram-se na cocheira homens e cães, e o quinteiro foi esconder-se por traz do postigo, como se quizesse fechal-o mal entrasse João.
—Que é isto, José?—perguntou Maria, suspeitando uma violencia.
—Ordens do senhor morgado—respondeu elle, rindo alvarmente—não quero saber!
Mas Josepha da Esperança, muito nervosa, nem lhe dera tempo á resposta, e ao vêr João em frente do mirante, avisou-o:
—Não entre, que lhe querem bater!
Maria, correndo ao muro, bradou-lhe tambem:
—Foge, foge!
N'uma grande excitação, gritava a prima:
—Aqui d'el-rei! Aqui d'el-rei!
Elle recuára ao ouvir os gritos e, vendo apparecer ao postigo a cabeça lanzuda, comprehendeu que lhe faziam uma espera.
Desembainhou a baioneta, aprumou-se garboso, e avançou muito pallido para a porta, que de dentro fecharam com estrondo.
Sentiu então Maria que o amava, vendo-o encarnar otypo glorioso, cavalheiresco, da imaginação das raparigas, geralmente fixado nos que teem por ferramenta a espada e a lança do cavalleiro andante de outras eras.
Dirigia-se-lhe com o coração nas mãos, como elle no pomar, n'um rubor de sangue, lavada em lagrimas, pondo as mãos:
—João, João, não te percas por minha causa!
Sem a attender, batia exasperado no portão com o punho da baioneta, bradando querer falar ao senhor Martinho Vasques.
Ouvindo ladrar ameaçadores os cães de guarda, virou-se Maria para o pateo.
Aos gritos de soccorro de D. Josepha, correra de dentro o jardineiro com um grosso varapau cruzado como a espingarda, a ponta á altura dos olhos, fortemente cingido ao corpo.
—Querem bater no Joãosinho!—explicou-lhe ao vêl-o.
Correu o veterano ao postigo, aferrolhou-o, e berrou aos caceteiros que se fossem embora.
—Quem manda aqui é o fidalgo!—respingou o quinteiro, fazendo-se forte á frente do bando.
Mas os camponeses, receiando as furias do velho, mantinham-seindifferentes, apoiados aos bordões, n'um riso estupido.
—Deixe-me abrir a porta!—insistia o José da Quinta, querendo deitar os cães, segundo as ordens do amo.
—Primeiro te racho de meio a meio!—ameaçou mestre Jacintho, encostando-se ao postigo.
—Avem-te com estes!—casquinou o quinteiro, abrindo com um pontapé a porta da estrebaria.
SaÃram ladrando excitadosMarujoeSultão, mas conhecendo o jardineiro, não lhe pegaram.
—És peior que os cães, que os animaes não teem entendimento e não fazem mal só porque os mandam!
E o velho rilhando o dente, na furia que o tornava terrivel, avançou, crendo-se em plena batalha, e fez recuar o capataz e o rancho, levando-os de roldão até ao fundo do pateo.
Ahi, metido em brios, tentou defender-se o mandatario do morgado, mas caÃu, lavado em sangue, com uma cacetada na cabeça.
Appareceu no alpendre da escada D. Perpetua entre as creadas, attrahida pelo alarido.
Chamou a filha para casa.
—Vamos para dentro, Maria. Que vergonha!
Ecomo ella não a attendesse, deu a volta e foi obrigal-a a saÃr do mirante.
—Isto é alguma tarde de toiros? Gostas de vêr no que dão as bebedeiras de teu pae?
Arrastada pela mãe, envolvida no berreiro das creadas, Maria, com a cabeça perdida, não viu que mestre Jacintho abrira a porta e, dando conta a João do que se passava, aconselhara-o a ir-se embora. Depois falariam.
Ao passar no pateo, para entrar em casa, afastou a cabeça para não vêr a torva lividez do ferido, os olhos vidrados, a testa gotejando, os cabellos empastados em sangue, a mulher ajoelhada ao pé, clamando que o morgado lhe metera o homem em trabalhos.
Ao entrar em casa ainda poude Maria olhar para fóra, e ficou descançada vendo João já muito longe, a caminho da cidade, salvo de todo o risco.
Veiu do fim da quinta Martinho Vasques a vêr como tinham sido executadas as suas ordens. Ao conhecer o procedimento do veterano, partiu exasperado em busca d'elle, depois de ter mandado chamar o barbeiro para curar o ferido.
—Tu é que déste a pancada no quinteiro?—perguntou-lhe colerico,ao vêl-o deitado n'um molho de rapa, a resfolegar, muito cançado.
Ergueu-se logo o velho, empertigou-se na rigidez do habito militar ante o superior, mas respondeu, orgulhoso da façanha:
—Pois quem havéra de ser? Quem ha ahi com alma para tirar fumaças a pimpões?
—Mas tu sabias que era ordem minha!
—E que me importava isso a mim?
—Então, refinadissimo tratante, comes o meu pão para me desobedeceres?
—Sabe que mais, patrão, não venha tirar palha commigo.
Mas o morgado, que via n'elle o culpado da vergonhosa scena em que fôra desrespeitado, e de que o rapaz saÃra triumphante, irritava-se cada vez mais.
—Aquella pancada é como se fosse dada em mim mesmo.
O ex-soldado virou-se para elle, mediu-o de alto a baixo, e de esguelha, disse-lhe decidido, teimoso:
—Se o senhor se tivesse ido metter com o menino...
Arremetteu com elle Martinho Vasques. Porém a reputação do soldado, apesar da mesquinha attitude em que ia a retirar-se, sem fazer caso, dobrado aomeio, as mãos pacificamente atraz das costas, o pescoço magro saÃndo da colleira negra, descarapuçado, bastou para conter n'um prudente respeito o morgado, alto, forçoso, sanguineo, armado do rijo varapau.
—Esquecestes quem sou eu?
—E o fidalgo não se esqueceu do que lhe deve ao avô, do que me deve a mim, para vir para aqui, vermelho como uma lagosta, impar de raiva mansa?
—Se não tivesse que descer a medir-me comtigo, fazia-te engulir tudo isso com os dentes que te restam.
Tremia apertando nervosamente o bordão.
—Com bem passe, senhor Martinho—e o velho dizia-lhe adeus com a mão, sem se voltar.—Fale-me ámanhã em jejum.
—Ó bandalho, tu chamas-me bebedo?