MORTA!
Ella morreu?... Pois d'ella nada existe?...Triste do sêr que só na vida colhaOs resquicios da flor que se desfolha,E o riso que desmaia!... Ai, triste, triste!...Que tudo o que eu amar logo se extingue!No cuidado jardim dos meus amores,Que nem uma só flor, de tantas flores,Heide vêr e querer que vice e vingue!Que sina é pois, meu Deus, a minha sina?Parece que ando sempre adstricto á morte;Fujo do que é vivaz e alegre e forte,Busco tudo o que chora e a fronte inclina.Mais quero ao pôr do sol que á rósea aurora;Mais que ao botão acceso, á flor que pende;Mais que ao peito que lucta, ao que se rende;Mais que ao riso feliz, á voz que implora.Não sei que tem a pallidez do outono,E o frémito das folhas desbotadas;Lembra-me em noites no prazer passadasUm sonho de ternura antes do somno.Alguma cousa vaga e transparenteQue enlaça co'a visão a realidade,Que affaga e que sorrí, mas faz saudadePor que enche d'agua os olhos do vidente.Eu vi-a e senti n'alma que a adorava,Que fragancia! que flor! que novidade!É que a mystica luz da eternidadeJá da entre-aberta campa a illuminava.E eu louco ante visão tão pura e bella,Nem via em tanta luz sombra da morte,Nem me lembrei da minha ingrata sorte,E eu sabia que amal-a era perdel-a!Adeus!... Se existe o céo... a eternidade?...Se nos veremos no paiz risonho?...A vida transitoria e a morte... é sonho?...Meu Deus! porque nos dás esta saudade?1869Thomaz Ribeiro,Grinalda, t. VI, p. 7.
Ella morreu?... Pois d'ella nada existe?...Triste do sêr que só na vida colhaOs resquicios da flor que se desfolha,E o riso que desmaia!... Ai, triste, triste!...Que tudo o que eu amar logo se extingue!No cuidado jardim dos meus amores,Que nem uma só flor, de tantas flores,Heide vêr e querer que vice e vingue!Que sina é pois, meu Deus, a minha sina?Parece que ando sempre adstricto á morte;Fujo do que é vivaz e alegre e forte,Busco tudo o que chora e a fronte inclina.Mais quero ao pôr do sol que á rósea aurora;Mais que ao botão acceso, á flor que pende;Mais que ao peito que lucta, ao que se rende;Mais que ao riso feliz, á voz que implora.Não sei que tem a pallidez do outono,E o frémito das folhas desbotadas;Lembra-me em noites no prazer passadasUm sonho de ternura antes do somno.Alguma cousa vaga e transparenteQue enlaça co'a visão a realidade,Que affaga e que sorrí, mas faz saudadePor que enche d'agua os olhos do vidente.Eu vi-a e senti n'alma que a adorava,Que fragancia! que flor! que novidade!É que a mystica luz da eternidadeJá da entre-aberta campa a illuminava.E eu louco ante visão tão pura e bella,Nem via em tanta luz sombra da morte,Nem me lembrei da minha ingrata sorte,E eu sabia que amal-a era perdel-a!Adeus!... Se existe o céo... a eternidade?...Se nos veremos no paiz risonho?...A vida transitoria e a morte... é sonho?...Meu Deus! porque nos dás esta saudade?1869Thomaz Ribeiro,Grinalda, t. VI, p. 7.
Ella morreu?... Pois d'ella nada existe?...Triste do sêr que só na vida colhaOs resquicios da flor que se desfolha,E o riso que desmaia!... Ai, triste, triste!...
Ella morreu?... Pois d'ella nada existe?...
Triste do sêr que só na vida colha
Os resquicios da flor que se desfolha,
E o riso que desmaia!... Ai, triste, triste!...
Que tudo o que eu amar logo se extingue!No cuidado jardim dos meus amores,Que nem uma só flor, de tantas flores,Heide vêr e querer que vice e vingue!
Que tudo o que eu amar logo se extingue!
No cuidado jardim dos meus amores,
Que nem uma só flor, de tantas flores,
Heide vêr e querer que vice e vingue!
Que sina é pois, meu Deus, a minha sina?Parece que ando sempre adstricto á morte;Fujo do que é vivaz e alegre e forte,Busco tudo o que chora e a fronte inclina.
Que sina é pois, meu Deus, a minha sina?
Parece que ando sempre adstricto á morte;
Fujo do que é vivaz e alegre e forte,
Busco tudo o que chora e a fronte inclina.
Mais quero ao pôr do sol que á rósea aurora;Mais que ao botão acceso, á flor que pende;Mais que ao peito que lucta, ao que se rende;Mais que ao riso feliz, á voz que implora.
Mais quero ao pôr do sol que á rósea aurora;
Mais que ao botão acceso, á flor que pende;
Mais que ao peito que lucta, ao que se rende;
Mais que ao riso feliz, á voz que implora.
Não sei que tem a pallidez do outono,E o frémito das folhas desbotadas;Lembra-me em noites no prazer passadasUm sonho de ternura antes do somno.
Não sei que tem a pallidez do outono,
E o frémito das folhas desbotadas;
Lembra-me em noites no prazer passadas
Um sonho de ternura antes do somno.
Alguma cousa vaga e transparenteQue enlaça co'a visão a realidade,Que affaga e que sorrí, mas faz saudadePor que enche d'agua os olhos do vidente.
Alguma cousa vaga e transparente
Que enlaça co'a visão a realidade,
Que affaga e que sorrí, mas faz saudade
Por que enche d'agua os olhos do vidente.
Eu vi-a e senti n'alma que a adorava,Que fragancia! que flor! que novidade!É que a mystica luz da eternidadeJá da entre-aberta campa a illuminava.
Eu vi-a e senti n'alma que a adorava,
Que fragancia! que flor! que novidade!
É que a mystica luz da eternidade
Já da entre-aberta campa a illuminava.
E eu louco ante visão tão pura e bella,Nem via em tanta luz sombra da morte,Nem me lembrei da minha ingrata sorte,E eu sabia que amal-a era perdel-a!
E eu louco ante visão tão pura e bella,
Nem via em tanta luz sombra da morte,
Nem me lembrei da minha ingrata sorte,
E eu sabia que amal-a era perdel-a!
Adeus!... Se existe o céo... a eternidade?...Se nos veremos no paiz risonho?...A vida transitoria e a morte... é sonho?...Meu Deus! porque nos dás esta saudade?
Adeus!... Se existe o céo... a eternidade?...
Se nos veremos no paiz risonho?...
A vida transitoria e a morte... é sonho?...
Meu Deus! porque nos dás esta saudade?
1869Thomaz Ribeiro,Grinalda, t. VI, p. 7.
1869Thomaz Ribeiro,Grinalda, t. VI, p. 7.
Foi-se-me pouco a pouco amortecendoA luz que n'esta vida me guiava,Olhos fitos na qual até contavaIr os degraus do tumulo descendo.Em se ella annuveando, em a não vendo,Já se me a luz de tudo annuveava;Despontava ella apenas, despontavaLogo em minha alma a luz que ia perdendo.Alma gémea da minha, ingenua e puraComo os anjos do céo (se o não sonharam...)Quiz mostrar-me que o bem, bem pouco dura.Não sei se me voou, se m'a levaram,Nem saiba eu nunca a minha desventuraContar aos que inda em vida não choraram.Ah! quando no seu collo reclinado—Collo mais puro e candido que arminho,Como abelha na flor do rosmaninhoOsculava seu labio perfumado;Quando á luz dos seus olhos... (que era vel-os,E enfeitiçar-se a alma em graça tanta!)Lia na sua bocca a Biblia santaEscripta em letra côr dos seus cabellos;Quando a sua mãosinha pondo um dedoEm seus labios de rosa pouco aberta,Como tímida pomba sempre álerta,Me impunha ora silencio, ora segredo;Quando, como a alvéola, delicadaE linda como a flor que haja mais lindaPassava como o cysne, ou como, aindaAntes do sol raiar, nuvem doirada;Quando em balsamo d'alma piedosaUngia as mãos da supplice indigencia,Como a nuvem nas mãos da providenciaUma lagrima estilla em flor sequiosa;Quando a cruz do collar do seu pescoçoEstendendo-me os braços, como estendeO symbolo d'amor que as almas prende,Me dizia... o que ás mais dizer não oiço;Quando, se negra nuvem me espalhavaPor sobre o coração algum desgosto.Conchegando-me ao seu candido rosto,No perfume d'um riso a dissipava;Quando o oiro da trança aos ventos dandoE a neve de seu collo e seu vestido—Pomba que do seu par se ia perdido,Já de longe lhe ouvia o peito arfando;Tinha o céo da minha alma as sete côres,Valia-me este mundo um paraiso,Distillava-me a alma um doce riso,Debaixo de meus pés nasciam flores.Deus era inda meu pae. E emquanto pudeLi o seu nome em tudo quanto existe—No campo em flor, na praia árida e triste,No céo, no mar, na terra e... na virtude!Virtude! Que é mais que um nomeEssa voz que no ár se esvái,Se um riso que ao labio assomeN'uma lagrima nos cae!Que és, virtude, se de lutoNos vestes o coração!És a blasphemia de Bruto—Não és mais que um nome vão.Abre a flor á luz, que a enleva,Seu calix cheio d'amor,E o sol nasce, passa e levaComsigo perfume e flor!Que é d'esses cabellos d'oiroDo mais subido quilate,D'esses labios escarlate,Meu thezoiro!Que é d'esse halito, que aindaO coração me perfuma!Que é do teu collo de espuma,Pomba linda!Que é d'uma flor da grinaldaDos teus doirados cabellos;D'esses olhos, quero vel-os,Esmeralda!Que é d'essa alma que me déste!D'um sorriso, um só que fosse,Da tua bocca tão doce,Flor celeste!Tua cabeça, que é d'ella,A tua cabeça d'oiro,Minha pomba! meu thesouro!Minha estrella.De dia a estrella d'alva empallidece;E a luz do dia eterno te ha ferido.Em teu languido olhar adormecidoNunca me um dia em vida amanhecesse.Foste a concha da praia. A flor pareceMais ditosa que tu. Quem te ha partido,Meu calix de crystal, onde hei bebidoOs nectares do céo... se um céo houvesse!Fonte pura das lagrimas que chóro!Quem tão menina e moça desmanchadoTe ha pelas nuvens os cabellos d'oiro!Sóme-te, vela do baixel quebrado!Sóme-te, vôa, apaga-te, meteoro!É n'este mundo mais um desgraçado.E as desgraças, podia prevel-asQuem a terra sustenta no ár,Quem sustenta no ár as estrellas,Quem levanta ás areias o mar.Deus podia prevêr a desgraça,Deus podia prevêr e não quiz;E não quiz, não... se a nuvem que passaTambém póde chamar-se infeliz!A vida é o dia d'hoje,A vida é ai que mal sôa,A vida é sombra que foge,A vida é nuvem que vôa;A vida é sonho tão leveQue se desfaz como a neveE como o fumo se esvae;A vida dura um momento,Mais leve que o pensamento,A vida leva-a o vento,A vida é folha que cae!A vida é flor na corrente,A vida é sôpro suave,A vida é estrella cadenteVôa mais leve que a ave;Nuvem que o vento nos ares,Onda que o vento nos mares,Uma apoz outra lançou,A vida—penna cahidaDa aza d'ave ferida—De valle em valle impellida,A vida o vento a levou!Como em sonhos o anjo que me afagaLeva na trança os lyrios que lhe puz,E a luz quando se apagaLeva aos olhos a luz;Como os ávidos olhos d'um amanteLevam comsigo a luz d'um doce olhar,E o vento do levanteLeva a onda do mar;Como o tenro filhinho quando expiraLeva o beijo dos labios maternaes,E á alma que suspiraO vento leva os ais;Ou como leva ao collo a mãe seu filho,E as azas leva a pomba que voou,E o sol leva o seu brilho,O vento m'a levou.E tu és piedoso,Senhor! és Deus e pae!E ao filho desditosoNão ouves um só ai!Estrellas déste aos áres,Dás perolas aos mares,Ao campo dás a flor,Frescura dás ás fontes,O lirio dás aos montes,E tiras-m'a, Senhor!Ah! quando n'uma vista o mundo abranjo,Estendo os braços, e, palpando o mundo,O céo, a terra e o mar vejo a meus pés;Buscando em vão a imagem do meu anjo,Soletro á froixa luz d'um moribundoEm tudo só—talvez...Talvez é hoje a Biblia, o livro abertoQue eu só ponho ante mim nas rochas, quandoVou polo mundo vêr se a posso vêr;E onde, como a palmeira do deserto,Apenas vejo aos pés, inquieta, ondeandoA sombra do meu sêr.Meu sêr voou na aza da aguia negraQue levando-a, só não levou comsigoD'esta alma aquelle amor!E quando a luz do sol o mundo alegra,Chrysalida nocturna, a sós commigo,Abraço a minha dôr!Dôr inutil! Se a flôr, que ao céo enviaSeus balsamos, se esfolha, e tu no espaçoAchas depois seus atomos subtis;Inda has de ouvir a voz que ouviste um dia,Como a sua Leonor inda ouve o Tasso...Dante... a sua Beatriz!—Nunca; responde a folha que o outono,Da haste que a sustinha a mão abrindo,Ao vento confiou;—Nunca; responde a campa, onde, do somno,E quem talvez sonhava um sonho lindo,Um dia despertou.—Nunca; responde o ai que o labio vibra;—Nunca; responde a rosa que na faceUm dia emmurcheceu:E a onda, que um momento se equilibraEm quanto diz ás mais: deixae que eu passe!E passou e... morreu!João de Deus,Flores do Campo, p. 160. 2.ª ed. Porto, 1876.
Foi-se-me pouco a pouco amortecendoA luz que n'esta vida me guiava,Olhos fitos na qual até contavaIr os degraus do tumulo descendo.Em se ella annuveando, em a não vendo,Já se me a luz de tudo annuveava;Despontava ella apenas, despontavaLogo em minha alma a luz que ia perdendo.Alma gémea da minha, ingenua e puraComo os anjos do céo (se o não sonharam...)Quiz mostrar-me que o bem, bem pouco dura.Não sei se me voou, se m'a levaram,Nem saiba eu nunca a minha desventuraContar aos que inda em vida não choraram.Ah! quando no seu collo reclinado—Collo mais puro e candido que arminho,Como abelha na flor do rosmaninhoOsculava seu labio perfumado;Quando á luz dos seus olhos... (que era vel-os,E enfeitiçar-se a alma em graça tanta!)Lia na sua bocca a Biblia santaEscripta em letra côr dos seus cabellos;Quando a sua mãosinha pondo um dedoEm seus labios de rosa pouco aberta,Como tímida pomba sempre álerta,Me impunha ora silencio, ora segredo;Quando, como a alvéola, delicadaE linda como a flor que haja mais lindaPassava como o cysne, ou como, aindaAntes do sol raiar, nuvem doirada;Quando em balsamo d'alma piedosaUngia as mãos da supplice indigencia,Como a nuvem nas mãos da providenciaUma lagrima estilla em flor sequiosa;Quando a cruz do collar do seu pescoçoEstendendo-me os braços, como estendeO symbolo d'amor que as almas prende,Me dizia... o que ás mais dizer não oiço;Quando, se negra nuvem me espalhavaPor sobre o coração algum desgosto.Conchegando-me ao seu candido rosto,No perfume d'um riso a dissipava;Quando o oiro da trança aos ventos dandoE a neve de seu collo e seu vestido—Pomba que do seu par se ia perdido,Já de longe lhe ouvia o peito arfando;Tinha o céo da minha alma as sete côres,Valia-me este mundo um paraiso,Distillava-me a alma um doce riso,Debaixo de meus pés nasciam flores.Deus era inda meu pae. E emquanto pudeLi o seu nome em tudo quanto existe—No campo em flor, na praia árida e triste,No céo, no mar, na terra e... na virtude!Virtude! Que é mais que um nomeEssa voz que no ár se esvái,Se um riso que ao labio assomeN'uma lagrima nos cae!Que és, virtude, se de lutoNos vestes o coração!És a blasphemia de Bruto—Não és mais que um nome vão.Abre a flor á luz, que a enleva,Seu calix cheio d'amor,E o sol nasce, passa e levaComsigo perfume e flor!Que é d'esses cabellos d'oiroDo mais subido quilate,D'esses labios escarlate,Meu thezoiro!Que é d'esse halito, que aindaO coração me perfuma!Que é do teu collo de espuma,Pomba linda!Que é d'uma flor da grinaldaDos teus doirados cabellos;D'esses olhos, quero vel-os,Esmeralda!Que é d'essa alma que me déste!D'um sorriso, um só que fosse,Da tua bocca tão doce,Flor celeste!Tua cabeça, que é d'ella,A tua cabeça d'oiro,Minha pomba! meu thesouro!Minha estrella.De dia a estrella d'alva empallidece;E a luz do dia eterno te ha ferido.Em teu languido olhar adormecidoNunca me um dia em vida amanhecesse.Foste a concha da praia. A flor pareceMais ditosa que tu. Quem te ha partido,Meu calix de crystal, onde hei bebidoOs nectares do céo... se um céo houvesse!Fonte pura das lagrimas que chóro!Quem tão menina e moça desmanchadoTe ha pelas nuvens os cabellos d'oiro!Sóme-te, vela do baixel quebrado!Sóme-te, vôa, apaga-te, meteoro!É n'este mundo mais um desgraçado.E as desgraças, podia prevel-asQuem a terra sustenta no ár,Quem sustenta no ár as estrellas,Quem levanta ás areias o mar.Deus podia prevêr a desgraça,Deus podia prevêr e não quiz;E não quiz, não... se a nuvem que passaTambém póde chamar-se infeliz!A vida é o dia d'hoje,A vida é ai que mal sôa,A vida é sombra que foge,A vida é nuvem que vôa;A vida é sonho tão leveQue se desfaz como a neveE como o fumo se esvae;A vida dura um momento,Mais leve que o pensamento,A vida leva-a o vento,A vida é folha que cae!A vida é flor na corrente,A vida é sôpro suave,A vida é estrella cadenteVôa mais leve que a ave;Nuvem que o vento nos ares,Onda que o vento nos mares,Uma apoz outra lançou,A vida—penna cahidaDa aza d'ave ferida—De valle em valle impellida,A vida o vento a levou!Como em sonhos o anjo que me afagaLeva na trança os lyrios que lhe puz,E a luz quando se apagaLeva aos olhos a luz;Como os ávidos olhos d'um amanteLevam comsigo a luz d'um doce olhar,E o vento do levanteLeva a onda do mar;Como o tenro filhinho quando expiraLeva o beijo dos labios maternaes,E á alma que suspiraO vento leva os ais;Ou como leva ao collo a mãe seu filho,E as azas leva a pomba que voou,E o sol leva o seu brilho,O vento m'a levou.E tu és piedoso,Senhor! és Deus e pae!E ao filho desditosoNão ouves um só ai!Estrellas déste aos áres,Dás perolas aos mares,Ao campo dás a flor,Frescura dás ás fontes,O lirio dás aos montes,E tiras-m'a, Senhor!Ah! quando n'uma vista o mundo abranjo,Estendo os braços, e, palpando o mundo,O céo, a terra e o mar vejo a meus pés;Buscando em vão a imagem do meu anjo,Soletro á froixa luz d'um moribundoEm tudo só—talvez...Talvez é hoje a Biblia, o livro abertoQue eu só ponho ante mim nas rochas, quandoVou polo mundo vêr se a posso vêr;E onde, como a palmeira do deserto,Apenas vejo aos pés, inquieta, ondeandoA sombra do meu sêr.Meu sêr voou na aza da aguia negraQue levando-a, só não levou comsigoD'esta alma aquelle amor!E quando a luz do sol o mundo alegra,Chrysalida nocturna, a sós commigo,Abraço a minha dôr!Dôr inutil! Se a flôr, que ao céo enviaSeus balsamos, se esfolha, e tu no espaçoAchas depois seus atomos subtis;Inda has de ouvir a voz que ouviste um dia,Como a sua Leonor inda ouve o Tasso...Dante... a sua Beatriz!—Nunca; responde a folha que o outono,Da haste que a sustinha a mão abrindo,Ao vento confiou;—Nunca; responde a campa, onde, do somno,E quem talvez sonhava um sonho lindo,Um dia despertou.—Nunca; responde o ai que o labio vibra;—Nunca; responde a rosa que na faceUm dia emmurcheceu:E a onda, que um momento se equilibraEm quanto diz ás mais: deixae que eu passe!E passou e... morreu!João de Deus,Flores do Campo, p. 160. 2.ª ed. Porto, 1876.
Foi-se-me pouco a pouco amortecendoA luz que n'esta vida me guiava,Olhos fitos na qual até contavaIr os degraus do tumulo descendo.
Foi-se-me pouco a pouco amortecendo
A luz que n'esta vida me guiava,
Olhos fitos na qual até contava
Ir os degraus do tumulo descendo.
Em se ella annuveando, em a não vendo,Já se me a luz de tudo annuveava;Despontava ella apenas, despontavaLogo em minha alma a luz que ia perdendo.
Em se ella annuveando, em a não vendo,
Já se me a luz de tudo annuveava;
Despontava ella apenas, despontava
Logo em minha alma a luz que ia perdendo.
Alma gémea da minha, ingenua e puraComo os anjos do céo (se o não sonharam...)Quiz mostrar-me que o bem, bem pouco dura.
Alma gémea da minha, ingenua e pura
Como os anjos do céo (se o não sonharam...)
Quiz mostrar-me que o bem, bem pouco dura.
Não sei se me voou, se m'a levaram,Nem saiba eu nunca a minha desventuraContar aos que inda em vida não choraram.
Não sei se me voou, se m'a levaram,
Nem saiba eu nunca a minha desventura
Contar aos que inda em vida não choraram.
Ah! quando no seu collo reclinado—Collo mais puro e candido que arminho,Como abelha na flor do rosmaninhoOsculava seu labio perfumado;
Ah! quando no seu collo reclinado
—Collo mais puro e candido que arminho,
Como abelha na flor do rosmaninho
Osculava seu labio perfumado;
Quando á luz dos seus olhos... (que era vel-os,E enfeitiçar-se a alma em graça tanta!)Lia na sua bocca a Biblia santaEscripta em letra côr dos seus cabellos;
Quando á luz dos seus olhos... (que era vel-os,
E enfeitiçar-se a alma em graça tanta!)
Lia na sua bocca a Biblia santa
Escripta em letra côr dos seus cabellos;
Quando a sua mãosinha pondo um dedoEm seus labios de rosa pouco aberta,Como tímida pomba sempre álerta,Me impunha ora silencio, ora segredo;
Quando a sua mãosinha pondo um dedo
Em seus labios de rosa pouco aberta,
Como tímida pomba sempre álerta,
Me impunha ora silencio, ora segredo;
Quando, como a alvéola, delicadaE linda como a flor que haja mais lindaPassava como o cysne, ou como, aindaAntes do sol raiar, nuvem doirada;
Quando, como a alvéola, delicada
E linda como a flor que haja mais linda
Passava como o cysne, ou como, ainda
Antes do sol raiar, nuvem doirada;
Quando em balsamo d'alma piedosaUngia as mãos da supplice indigencia,Como a nuvem nas mãos da providenciaUma lagrima estilla em flor sequiosa;
Quando em balsamo d'alma piedosa
Ungia as mãos da supplice indigencia,
Como a nuvem nas mãos da providencia
Uma lagrima estilla em flor sequiosa;
Quando a cruz do collar do seu pescoçoEstendendo-me os braços, como estendeO symbolo d'amor que as almas prende,Me dizia... o que ás mais dizer não oiço;
Quando a cruz do collar do seu pescoço
Estendendo-me os braços, como estende
O symbolo d'amor que as almas prende,
Me dizia... o que ás mais dizer não oiço;
Quando, se negra nuvem me espalhavaPor sobre o coração algum desgosto.Conchegando-me ao seu candido rosto,No perfume d'um riso a dissipava;
Quando, se negra nuvem me espalhava
Por sobre o coração algum desgosto.
Conchegando-me ao seu candido rosto,
No perfume d'um riso a dissipava;
Quando o oiro da trança aos ventos dandoE a neve de seu collo e seu vestido—Pomba que do seu par se ia perdido,Já de longe lhe ouvia o peito arfando;
Quando o oiro da trança aos ventos dando
E a neve de seu collo e seu vestido
—Pomba que do seu par se ia perdido,
Já de longe lhe ouvia o peito arfando;
Tinha o céo da minha alma as sete côres,Valia-me este mundo um paraiso,Distillava-me a alma um doce riso,Debaixo de meus pés nasciam flores.
Tinha o céo da minha alma as sete côres,
Valia-me este mundo um paraiso,
Distillava-me a alma um doce riso,
Debaixo de meus pés nasciam flores.
Deus era inda meu pae. E emquanto pudeLi o seu nome em tudo quanto existe—No campo em flor, na praia árida e triste,No céo, no mar, na terra e... na virtude!
Deus era inda meu pae. E emquanto pude
Li o seu nome em tudo quanto existe
—No campo em flor, na praia árida e triste,
No céo, no mar, na terra e... na virtude!
Virtude! Que é mais que um nomeEssa voz que no ár se esvái,Se um riso que ao labio assomeN'uma lagrima nos cae!
Virtude! Que é mais que um nome
Essa voz que no ár se esvái,
Se um riso que ao labio assome
N'uma lagrima nos cae!
Que és, virtude, se de lutoNos vestes o coração!És a blasphemia de Bruto—Não és mais que um nome vão.
Que és, virtude, se de luto
Nos vestes o coração!
És a blasphemia de Bruto
—Não és mais que um nome vão.
Abre a flor á luz, que a enleva,Seu calix cheio d'amor,E o sol nasce, passa e levaComsigo perfume e flor!
Abre a flor á luz, que a enleva,
Seu calix cheio d'amor,
E o sol nasce, passa e leva
Comsigo perfume e flor!
Que é d'esses cabellos d'oiroDo mais subido quilate,D'esses labios escarlate,Meu thezoiro!
Que é d'esses cabellos d'oiro
Do mais subido quilate,
D'esses labios escarlate,
Meu thezoiro!
Que é d'esse halito, que aindaO coração me perfuma!Que é do teu collo de espuma,Pomba linda!
Que é d'esse halito, que ainda
O coração me perfuma!
Que é do teu collo de espuma,
Pomba linda!
Que é d'uma flor da grinaldaDos teus doirados cabellos;D'esses olhos, quero vel-os,Esmeralda!
Que é d'uma flor da grinalda
Dos teus doirados cabellos;
D'esses olhos, quero vel-os,
Esmeralda!
Que é d'essa alma que me déste!D'um sorriso, um só que fosse,Da tua bocca tão doce,Flor celeste!
Que é d'essa alma que me déste!
D'um sorriso, um só que fosse,
Da tua bocca tão doce,
Flor celeste!
Tua cabeça, que é d'ella,A tua cabeça d'oiro,Minha pomba! meu thesouro!Minha estrella.
Tua cabeça, que é d'ella,
A tua cabeça d'oiro,
Minha pomba! meu thesouro!
Minha estrella.
De dia a estrella d'alva empallidece;E a luz do dia eterno te ha ferido.Em teu languido olhar adormecidoNunca me um dia em vida amanhecesse.
De dia a estrella d'alva empallidece;
E a luz do dia eterno te ha ferido.
Em teu languido olhar adormecido
Nunca me um dia em vida amanhecesse.
Foste a concha da praia. A flor pareceMais ditosa que tu. Quem te ha partido,Meu calix de crystal, onde hei bebidoOs nectares do céo... se um céo houvesse!
Foste a concha da praia. A flor parece
Mais ditosa que tu. Quem te ha partido,
Meu calix de crystal, onde hei bebido
Os nectares do céo... se um céo houvesse!
Fonte pura das lagrimas que chóro!Quem tão menina e moça desmanchadoTe ha pelas nuvens os cabellos d'oiro!
Fonte pura das lagrimas que chóro!
Quem tão menina e moça desmanchado
Te ha pelas nuvens os cabellos d'oiro!
Sóme-te, vela do baixel quebrado!Sóme-te, vôa, apaga-te, meteoro!É n'este mundo mais um desgraçado.
Sóme-te, vela do baixel quebrado!
Sóme-te, vôa, apaga-te, meteoro!
É n'este mundo mais um desgraçado.
E as desgraças, podia prevel-asQuem a terra sustenta no ár,Quem sustenta no ár as estrellas,Quem levanta ás areias o mar.
E as desgraças, podia prevel-as
Quem a terra sustenta no ár,
Quem sustenta no ár as estrellas,
Quem levanta ás areias o mar.
Deus podia prevêr a desgraça,Deus podia prevêr e não quiz;E não quiz, não... se a nuvem que passaTambém póde chamar-se infeliz!
Deus podia prevêr a desgraça,
Deus podia prevêr e não quiz;
E não quiz, não... se a nuvem que passa
Também póde chamar-se infeliz!
A vida é o dia d'hoje,A vida é ai que mal sôa,A vida é sombra que foge,A vida é nuvem que vôa;A vida é sonho tão leveQue se desfaz como a neveE como o fumo se esvae;A vida dura um momento,Mais leve que o pensamento,A vida leva-a o vento,A vida é folha que cae!
A vida é o dia d'hoje,
A vida é ai que mal sôa,
A vida é sombra que foge,
A vida é nuvem que vôa;
A vida é sonho tão leve
Que se desfaz como a neve
E como o fumo se esvae;
A vida dura um momento,
Mais leve que o pensamento,
A vida leva-a o vento,
A vida é folha que cae!
A vida é flor na corrente,A vida é sôpro suave,A vida é estrella cadenteVôa mais leve que a ave;Nuvem que o vento nos ares,Onda que o vento nos mares,Uma apoz outra lançou,A vida—penna cahidaDa aza d'ave ferida—De valle em valle impellida,A vida o vento a levou!
A vida é flor na corrente,
A vida é sôpro suave,
A vida é estrella cadente
Vôa mais leve que a ave;
Nuvem que o vento nos ares,
Onda que o vento nos mares,
Uma apoz outra lançou,
A vida—penna cahida
Da aza d'ave ferida—
De valle em valle impellida,
A vida o vento a levou!
Como em sonhos o anjo que me afagaLeva na trança os lyrios que lhe puz,E a luz quando se apagaLeva aos olhos a luz;
Como em sonhos o anjo que me afaga
Leva na trança os lyrios que lhe puz,
E a luz quando se apaga
Leva aos olhos a luz;
Como os ávidos olhos d'um amanteLevam comsigo a luz d'um doce olhar,E o vento do levanteLeva a onda do mar;
Como os ávidos olhos d'um amante
Levam comsigo a luz d'um doce olhar,
E o vento do levante
Leva a onda do mar;
Como o tenro filhinho quando expiraLeva o beijo dos labios maternaes,E á alma que suspiraO vento leva os ais;
Como o tenro filhinho quando expira
Leva o beijo dos labios maternaes,
E á alma que suspira
O vento leva os ais;
Ou como leva ao collo a mãe seu filho,E as azas leva a pomba que voou,E o sol leva o seu brilho,O vento m'a levou.
Ou como leva ao collo a mãe seu filho,
E as azas leva a pomba que voou,
E o sol leva o seu brilho,
O vento m'a levou.
E tu és piedoso,Senhor! és Deus e pae!E ao filho desditosoNão ouves um só ai!Estrellas déste aos áres,Dás perolas aos mares,Ao campo dás a flor,Frescura dás ás fontes,O lirio dás aos montes,E tiras-m'a, Senhor!
E tu és piedoso,
Senhor! és Deus e pae!
E ao filho desditoso
Não ouves um só ai!
Estrellas déste aos áres,
Dás perolas aos mares,
Ao campo dás a flor,
Frescura dás ás fontes,
O lirio dás aos montes,
E tiras-m'a, Senhor!
Ah! quando n'uma vista o mundo abranjo,Estendo os braços, e, palpando o mundo,O céo, a terra e o mar vejo a meus pés;Buscando em vão a imagem do meu anjo,Soletro á froixa luz d'um moribundoEm tudo só—talvez...
Ah! quando n'uma vista o mundo abranjo,
Estendo os braços, e, palpando o mundo,
O céo, a terra e o mar vejo a meus pés;
Buscando em vão a imagem do meu anjo,
Soletro á froixa luz d'um moribundo
Em tudo só—talvez...
Talvez é hoje a Biblia, o livro abertoQue eu só ponho ante mim nas rochas, quandoVou polo mundo vêr se a posso vêr;E onde, como a palmeira do deserto,Apenas vejo aos pés, inquieta, ondeandoA sombra do meu sêr.
Talvez é hoje a Biblia, o livro aberto
Que eu só ponho ante mim nas rochas, quando
Vou polo mundo vêr se a posso vêr;
E onde, como a palmeira do deserto,
Apenas vejo aos pés, inquieta, ondeando
A sombra do meu sêr.
Meu sêr voou na aza da aguia negraQue levando-a, só não levou comsigoD'esta alma aquelle amor!E quando a luz do sol o mundo alegra,Chrysalida nocturna, a sós commigo,Abraço a minha dôr!
Meu sêr voou na aza da aguia negra
Que levando-a, só não levou comsigo
D'esta alma aquelle amor!
E quando a luz do sol o mundo alegra,
Chrysalida nocturna, a sós commigo,
Abraço a minha dôr!
Dôr inutil! Se a flôr, que ao céo enviaSeus balsamos, se esfolha, e tu no espaçoAchas depois seus atomos subtis;Inda has de ouvir a voz que ouviste um dia,Como a sua Leonor inda ouve o Tasso...Dante... a sua Beatriz!
Dôr inutil! Se a flôr, que ao céo envia
Seus balsamos, se esfolha, e tu no espaço
Achas depois seus atomos subtis;
Inda has de ouvir a voz que ouviste um dia,
Como a sua Leonor inda ouve o Tasso...
Dante... a sua Beatriz!
—Nunca; responde a folha que o outono,Da haste que a sustinha a mão abrindo,Ao vento confiou;—Nunca; responde a campa, onde, do somno,E quem talvez sonhava um sonho lindo,Um dia despertou.
—Nunca; responde a folha que o outono,
Da haste que a sustinha a mão abrindo,
Ao vento confiou;
—Nunca; responde a campa, onde, do somno,
E quem talvez sonhava um sonho lindo,
Um dia despertou.
—Nunca; responde o ai que o labio vibra;—Nunca; responde a rosa que na faceUm dia emmurcheceu:E a onda, que um momento se equilibraEm quanto diz ás mais: deixae que eu passe!E passou e... morreu!
—Nunca; responde o ai que o labio vibra;
—Nunca; responde a rosa que na face
Um dia emmurcheceu:
E a onda, que um momento se equilibra
Em quanto diz ás mais: deixae que eu passe!
E passou e... morreu!
João de Deus,Flores do Campo, p. 160. 2.ª ed. Porto, 1876.
João de Deus,Flores do Campo, p. 160. 2.ª ed. Porto, 1876.
Vi o teu rosto lindo,Esse rosto sem par!Contemplei-o de longe, mudo e quedo,Como quem volta d'aspero degredoE vê, ao ár subindo,O fumo do seu lar!Vi esse olhar tocante,D'um fluido sem igual!Suave, como lampada sagrada,Bemvindo, como a luz da madrugada,Que rompe ao naveganteDepois do temporal.Vi esse corpo d'aveQue parece que vaeLevado, como o sol ou como a lua,Sem encontrar belleza egual á sua,Magestoso e suave,Que surprehende e attrae!Attrae, e não me atrevoA contemplal-o bem;Porque espalha o teu rosto uma luz santa,Uma luz que me prende e que me encanta,N'aquelle santo enlevoD'um filho em sua mãe!Temo, apenas presintoA tua apparição!E se me aproximasse mais, bastavaPôr os olhos nos teus, ajoelhava!Não é amor, que eu sinto,É uma adoração!Que azas previdentesDo anjo tutelarTe abriguem sempre á sua sombra pura!A mim basta-me só esta venturaDe ver que me consentesOlhar de longe... olhar!João de Deus,Folhas soltas, p. 31. Porto, 1876.
Vi o teu rosto lindo,Esse rosto sem par!Contemplei-o de longe, mudo e quedo,Como quem volta d'aspero degredoE vê, ao ár subindo,O fumo do seu lar!Vi esse olhar tocante,D'um fluido sem igual!Suave, como lampada sagrada,Bemvindo, como a luz da madrugada,Que rompe ao naveganteDepois do temporal.Vi esse corpo d'aveQue parece que vaeLevado, como o sol ou como a lua,Sem encontrar belleza egual á sua,Magestoso e suave,Que surprehende e attrae!Attrae, e não me atrevoA contemplal-o bem;Porque espalha o teu rosto uma luz santa,Uma luz que me prende e que me encanta,N'aquelle santo enlevoD'um filho em sua mãe!Temo, apenas presintoA tua apparição!E se me aproximasse mais, bastavaPôr os olhos nos teus, ajoelhava!Não é amor, que eu sinto,É uma adoração!Que azas previdentesDo anjo tutelarTe abriguem sempre á sua sombra pura!A mim basta-me só esta venturaDe ver que me consentesOlhar de longe... olhar!João de Deus,Folhas soltas, p. 31. Porto, 1876.
Vi o teu rosto lindo,Esse rosto sem par!Contemplei-o de longe, mudo e quedo,Como quem volta d'aspero degredoE vê, ao ár subindo,O fumo do seu lar!
Vi o teu rosto lindo,
Esse rosto sem par!
Contemplei-o de longe, mudo e quedo,
Como quem volta d'aspero degredo
E vê, ao ár subindo,
O fumo do seu lar!
Vi esse olhar tocante,D'um fluido sem igual!Suave, como lampada sagrada,Bemvindo, como a luz da madrugada,Que rompe ao naveganteDepois do temporal.
Vi esse olhar tocante,
D'um fluido sem igual!
Suave, como lampada sagrada,
Bemvindo, como a luz da madrugada,
Que rompe ao navegante
Depois do temporal.
Vi esse corpo d'aveQue parece que vaeLevado, como o sol ou como a lua,Sem encontrar belleza egual á sua,Magestoso e suave,Que surprehende e attrae!
Vi esse corpo d'ave
Que parece que vae
Levado, como o sol ou como a lua,
Sem encontrar belleza egual á sua,
Magestoso e suave,
Que surprehende e attrae!
Attrae, e não me atrevoA contemplal-o bem;Porque espalha o teu rosto uma luz santa,Uma luz que me prende e que me encanta,N'aquelle santo enlevoD'um filho em sua mãe!
Attrae, e não me atrevo
A contemplal-o bem;
Porque espalha o teu rosto uma luz santa,
Uma luz que me prende e que me encanta,
N'aquelle santo enlevo
D'um filho em sua mãe!
Temo, apenas presintoA tua apparição!E se me aproximasse mais, bastavaPôr os olhos nos teus, ajoelhava!Não é amor, que eu sinto,É uma adoração!
Temo, apenas presinto
A tua apparição!
E se me aproximasse mais, bastava
Pôr os olhos nos teus, ajoelhava!
Não é amor, que eu sinto,
É uma adoração!
Que azas previdentesDo anjo tutelarTe abriguem sempre á sua sombra pura!A mim basta-me só esta venturaDe ver que me consentesOlhar de longe... olhar!
Que azas previdentes
Do anjo tutelar
Te abriguem sempre á sua sombra pura!
A mim basta-me só esta ventura
De ver que me consentes
Olhar de longe... olhar!
João de Deus,Folhas soltas, p. 31. Porto, 1876.
João de Deus,Folhas soltas, p. 31. Porto, 1876.
Olhas-me tuConstantemente:D'aí concluoQue essa alma sente!...Que ama, não zomba,Como é vulgar;Que é uma pombaQue busca o par!...Pois ouve; eu gemoDe te não ver!E, em vendo, tremoMas de prazer!...Foge-me a vista...Falta-me o ár...Vê quanto distaD'aqui a amar!João de Deus,Folhas soltas, p. 131.
Olhas-me tuConstantemente:D'aí concluoQue essa alma sente!...Que ama, não zomba,Como é vulgar;Que é uma pombaQue busca o par!...Pois ouve; eu gemoDe te não ver!E, em vendo, tremoMas de prazer!...Foge-me a vista...Falta-me o ár...Vê quanto distaD'aqui a amar!João de Deus,Folhas soltas, p. 131.
Olhas-me tuConstantemente:D'aí concluoQue essa alma sente!...Que ama, não zomba,Como é vulgar;Que é uma pombaQue busca o par!...
Olhas-me tu
Constantemente:
D'aí concluo
Que essa alma sente!...
Que ama, não zomba,
Como é vulgar;
Que é uma pomba
Que busca o par!...
Pois ouve; eu gemoDe te não ver!E, em vendo, tremoMas de prazer!...Foge-me a vista...Falta-me o ár...Vê quanto distaD'aqui a amar!
Pois ouve; eu gemo
De te não ver!
E, em vendo, tremo
Mas de prazer!...
Foge-me a vista...
Falta-me o ár...
Vê quanto dista
D'aqui a amar!
João de Deus,Folhas soltas, p. 131.
João de Deus,Folhas soltas, p. 131.
Como a cigarra o seu gostoÉ levar a temporadaDe junho, julho e agostoN'uma cantiga pegada,De inverno tambem se cóme,E então rapa frio e fome...Um inverno a infelizChega-se á formiga, e diz:—Venho pedir-lhe o favorDe me emprestar mantimento,Matar-me a necessidade!E, em chegando a novidade,Faço até um juramento,Pago-lhe, seja o que fôr!«Mas, (pergunta-lhe a formiga,)O que fez durante o estio?—Eu, cantar ao desafio.«Ah! cantar? Pois minha amiga,Quem leva o estio a cantarLeva o inverno a dançar.João de Deus,Folhas soltasp. 66.
Como a cigarra o seu gostoÉ levar a temporadaDe junho, julho e agostoN'uma cantiga pegada,De inverno tambem se cóme,E então rapa frio e fome...Um inverno a infelizChega-se á formiga, e diz:—Venho pedir-lhe o favorDe me emprestar mantimento,Matar-me a necessidade!E, em chegando a novidade,Faço até um juramento,Pago-lhe, seja o que fôr!«Mas, (pergunta-lhe a formiga,)O que fez durante o estio?—Eu, cantar ao desafio.«Ah! cantar? Pois minha amiga,Quem leva o estio a cantarLeva o inverno a dançar.João de Deus,Folhas soltasp. 66.
Como a cigarra o seu gostoÉ levar a temporadaDe junho, julho e agostoN'uma cantiga pegada,De inverno tambem se cóme,E então rapa frio e fome...
Como a cigarra o seu gosto
É levar a temporada
De junho, julho e agosto
N'uma cantiga pegada,
De inverno tambem se cóme,
E então rapa frio e fome...
Um inverno a infelizChega-se á formiga, e diz:—Venho pedir-lhe o favorDe me emprestar mantimento,Matar-me a necessidade!E, em chegando a novidade,Faço até um juramento,Pago-lhe, seja o que fôr!
Um inverno a infeliz
Chega-se á formiga, e diz:
—Venho pedir-lhe o favor
De me emprestar mantimento,
Matar-me a necessidade!
E, em chegando a novidade,
Faço até um juramento,
Pago-lhe, seja o que fôr!
«Mas, (pergunta-lhe a formiga,)O que fez durante o estio?—Eu, cantar ao desafio.«Ah! cantar? Pois minha amiga,Quem leva o estio a cantarLeva o inverno a dançar.
«Mas, (pergunta-lhe a formiga,)
O que fez durante o estio?
—Eu, cantar ao desafio.
«Ah! cantar? Pois minha amiga,
Quem leva o estio a cantar
Leva o inverno a dançar.
João de Deus,Folhas soltasp. 66.
João de Deus,Folhas soltasp. 66.
O dinheiro é tão bonito,Tão bonito, o maganão!Tem tanta graça o maldito,Tem tanto chiste o ladrão!O fallar? falla de um modo...Todo elle, aquelle todo...E ellas acham-n'o tão guapo ...Velhinha ou moça que veja,Por mais esquiva que seja,Tlim!Pápo.E a cegueira da justiçaComo elle a tira n'um ai!E sem pegar n'uma pinça,E só dizer-lhe: Ahi vae...Operação melindrosaQue não é lá qualquer cousa;Catarata! tome conta;Pois não faz mais do que isto,Diz um juiz que o tem visto:Tlim!Prompta.N'essas especies de examesQue a gente faz em rapaz,São milagres aos enxamesO que aquelle diabo faz.Sem saber nem patavinaDe grammatica latina,Quer-se a gente d'ali fóra?Vae elle com taes fallinhas,Taes gaifonas, taes coisinhas...Tlim!Ora...Aquella physionomiaE lábia que o diabo tem!Mas n'uma secretariaAhi é que é vel-o bem!Quando elle, de grande gala,Entra o ministro na salaAproveita a occasião:Conhece este amigo antigo?—Oh meu tão antigo amigo!(Tlim!)Pois não!João de Deus,Flores do Campo, pag. 147.
O dinheiro é tão bonito,Tão bonito, o maganão!Tem tanta graça o maldito,Tem tanto chiste o ladrão!O fallar? falla de um modo...Todo elle, aquelle todo...E ellas acham-n'o tão guapo ...Velhinha ou moça que veja,Por mais esquiva que seja,Tlim!Pápo.E a cegueira da justiçaComo elle a tira n'um ai!E sem pegar n'uma pinça,E só dizer-lhe: Ahi vae...Operação melindrosaQue não é lá qualquer cousa;Catarata! tome conta;Pois não faz mais do que isto,Diz um juiz que o tem visto:Tlim!Prompta.N'essas especies de examesQue a gente faz em rapaz,São milagres aos enxamesO que aquelle diabo faz.Sem saber nem patavinaDe grammatica latina,Quer-se a gente d'ali fóra?Vae elle com taes fallinhas,Taes gaifonas, taes coisinhas...Tlim!Ora...Aquella physionomiaE lábia que o diabo tem!Mas n'uma secretariaAhi é que é vel-o bem!Quando elle, de grande gala,Entra o ministro na salaAproveita a occasião:Conhece este amigo antigo?—Oh meu tão antigo amigo!(Tlim!)Pois não!João de Deus,Flores do Campo, pag. 147.
O dinheiro é tão bonito,Tão bonito, o maganão!Tem tanta graça o maldito,Tem tanto chiste o ladrão!O fallar? falla de um modo...Todo elle, aquelle todo...E ellas acham-n'o tão guapo ...Velhinha ou moça que veja,Por mais esquiva que seja,Tlim!Pápo.
O dinheiro é tão bonito,
Tão bonito, o maganão!
Tem tanta graça o maldito,
Tem tanto chiste o ladrão!
O fallar? falla de um modo...
Todo elle, aquelle todo...
E ellas acham-n'o tão guapo ...
Velhinha ou moça que veja,
Por mais esquiva que seja,
Tlim!
Pápo.
E a cegueira da justiçaComo elle a tira n'um ai!E sem pegar n'uma pinça,E só dizer-lhe: Ahi vae...Operação melindrosaQue não é lá qualquer cousa;Catarata! tome conta;Pois não faz mais do que isto,Diz um juiz que o tem visto:Tlim!Prompta.
E a cegueira da justiça
Como elle a tira n'um ai!
E sem pegar n'uma pinça,
E só dizer-lhe: Ahi vae...
Operação melindrosa
Que não é lá qualquer cousa;
Catarata! tome conta;
Pois não faz mais do que isto,
Diz um juiz que o tem visto:
Tlim!
Prompta.
N'essas especies de examesQue a gente faz em rapaz,São milagres aos enxamesO que aquelle diabo faz.Sem saber nem patavinaDe grammatica latina,Quer-se a gente d'ali fóra?Vae elle com taes fallinhas,Taes gaifonas, taes coisinhas...Tlim!Ora...
N'essas especies de exames
Que a gente faz em rapaz,
São milagres aos enxames
O que aquelle diabo faz.
Sem saber nem patavina
De grammatica latina,
Quer-se a gente d'ali fóra?
Vae elle com taes fallinhas,
Taes gaifonas, taes coisinhas...
Tlim!
Ora...
Aquella physionomiaE lábia que o diabo tem!Mas n'uma secretariaAhi é que é vel-o bem!Quando elle, de grande gala,Entra o ministro na salaAproveita a occasião:Conhece este amigo antigo?—Oh meu tão antigo amigo!(Tlim!)Pois não!
Aquella physionomia
E lábia que o diabo tem!
Mas n'uma secretaria
Ahi é que é vel-o bem!
Quando elle, de grande gala,
Entra o ministro na sala
Aproveita a occasião:
Conhece este amigo antigo?
—Oh meu tão antigo amigo!
(Tlim!)
Pois não!
João de Deus,Flores do Campo, pag. 147.
João de Deus,Flores do Campo, pag. 147.
Não sou eu tão tolaQue caia em casar;Mulher não é rola,Que tenha um só par.Eu tenho um moreno,Tenho outro de cór,Tenho um mais pequeno,Tenho outro maior.Que mal faz um beijo,Se apenas o dou,Desfez-se-me o pejoE o gosto ficou?Um d'elles por graçaDeu-me um, e depois,Gostei da chalaça,Paguei-lhe com dois.Abraços, abraçosQue mal nos farão?Se Deus me deu braços,Foi essa a rasão.Um dia que o altoMe vinha abraçar,Fiquei-lhe de um saltoSuspensa no ár.Amores, amores,Deixal os dizer;Se Deus me deu flores,Foi para as colhêr.Eu tenho um moreno,Tenho um de outra côr,Tenho um mais pequeno,Tenho outro maior.João de Deus,Flores do Campo, p. 71. 2.ª ed.
Não sou eu tão tolaQue caia em casar;Mulher não é rola,Que tenha um só par.Eu tenho um moreno,Tenho outro de cór,Tenho um mais pequeno,Tenho outro maior.Que mal faz um beijo,Se apenas o dou,Desfez-se-me o pejoE o gosto ficou?Um d'elles por graçaDeu-me um, e depois,Gostei da chalaça,Paguei-lhe com dois.Abraços, abraçosQue mal nos farão?Se Deus me deu braços,Foi essa a rasão.Um dia que o altoMe vinha abraçar,Fiquei-lhe de um saltoSuspensa no ár.Amores, amores,Deixal os dizer;Se Deus me deu flores,Foi para as colhêr.Eu tenho um moreno,Tenho um de outra côr,Tenho um mais pequeno,Tenho outro maior.João de Deus,Flores do Campo, p. 71. 2.ª ed.
Não sou eu tão tolaQue caia em casar;Mulher não é rola,Que tenha um só par.Eu tenho um moreno,Tenho outro de cór,Tenho um mais pequeno,Tenho outro maior.
Não sou eu tão tola
Que caia em casar;
Mulher não é rola,
Que tenha um só par.
Eu tenho um moreno,
Tenho outro de cór,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior.
Que mal faz um beijo,Se apenas o dou,Desfez-se-me o pejoE o gosto ficou?Um d'elles por graçaDeu-me um, e depois,Gostei da chalaça,Paguei-lhe com dois.
Que mal faz um beijo,
Se apenas o dou,
Desfez-se-me o pejo
E o gosto ficou?
Um d'elles por graça
Deu-me um, e depois,
Gostei da chalaça,
Paguei-lhe com dois.
Abraços, abraçosQue mal nos farão?Se Deus me deu braços,Foi essa a rasão.Um dia que o altoMe vinha abraçar,Fiquei-lhe de um saltoSuspensa no ár.
Abraços, abraços
Que mal nos farão?
Se Deus me deu braços,
Foi essa a rasão.
Um dia que o alto
Me vinha abraçar,
Fiquei-lhe de um salto
Suspensa no ár.
Amores, amores,Deixal os dizer;Se Deus me deu flores,Foi para as colhêr.Eu tenho um moreno,Tenho um de outra côr,Tenho um mais pequeno,Tenho outro maior.
Amores, amores,
Deixal os dizer;
Se Deus me deu flores,
Foi para as colhêr.
Eu tenho um moreno,
Tenho um de outra côr,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior.
João de Deus,Flores do Campo, p. 71. 2.ª ed.
João de Deus,Flores do Campo, p. 71. 2.ª ed.
Quando Christo sentiu que a sua horaEm fim era chegada, grave e calmo,Sereno se acercou dos que o buscavam.A turba vinha em armas! Mas, de tantos,Nem um só se atreveu a dar um passo,A pôr a mão no Filho do Homem.—TodosDe olhos no chão, as armas encobriamAnte Jesus inerme.Então aquelleQue o tinha de entregar, aproximando-se,O tomou nos seus braços, murmurando:«Que Deus te salve, Mestre!» E, sobre a faceO beijou, como fôra contractado.Então os mais, chegando-se, o prenderam.Mas Jesus, sem os vêr, lhes perdoava;De olhos no céo, seguía-os sereno.Era duro o caminho. Sobre um monteIam, e dos dois lados, lá em baixo,Cobria a treva a terra toda.Quando,Porém, sobre o mais alto d'esse monteForam emfim chegados, de repenteViu-se-lhe uma das faces alumiar-seDe uma luz doce e branda, mas immensa!E quanta terra, desde o monte ao oceano,Lhe ficava do lado aonde viradaLhe estava aquella face, reflectindo-a,Tudo se esclarecia—valle e serraE a metade do céo—apparecendoComo em puro luar, ou qual se fosseVir nascendo uma aurora d'esse lado.E essa face radiante era a que JudasNão chegára a tocar.Porém a outra,Que elle beijara, conservou-se escura,Como se o crime d'elle ali guardasse...Onde a virava, era uma noite immensa,Coberto o horisonte de nevoeiro...Partido o mundo em dois, essa metadeEra a que se ficara envolta em sombras.........................................Foi d'essas sombras que se fez a Egreja!1865Anthero de Quental,Odes modernas, p. 129. 2.ª ed. Porto, 1875.
Quando Christo sentiu que a sua horaEm fim era chegada, grave e calmo,Sereno se acercou dos que o buscavam.A turba vinha em armas! Mas, de tantos,Nem um só se atreveu a dar um passo,A pôr a mão no Filho do Homem.—TodosDe olhos no chão, as armas encobriamAnte Jesus inerme.Então aquelleQue o tinha de entregar, aproximando-se,O tomou nos seus braços, murmurando:«Que Deus te salve, Mestre!» E, sobre a faceO beijou, como fôra contractado.Então os mais, chegando-se, o prenderam.Mas Jesus, sem os vêr, lhes perdoava;De olhos no céo, seguía-os sereno.Era duro o caminho. Sobre um monteIam, e dos dois lados, lá em baixo,Cobria a treva a terra toda.Quando,Porém, sobre o mais alto d'esse monteForam emfim chegados, de repenteViu-se-lhe uma das faces alumiar-seDe uma luz doce e branda, mas immensa!E quanta terra, desde o monte ao oceano,Lhe ficava do lado aonde viradaLhe estava aquella face, reflectindo-a,Tudo se esclarecia—valle e serraE a metade do céo—apparecendoComo em puro luar, ou qual se fosseVir nascendo uma aurora d'esse lado.E essa face radiante era a que JudasNão chegára a tocar.Porém a outra,Que elle beijara, conservou-se escura,Como se o crime d'elle ali guardasse...Onde a virava, era uma noite immensa,Coberto o horisonte de nevoeiro...Partido o mundo em dois, essa metadeEra a que se ficara envolta em sombras.........................................Foi d'essas sombras que se fez a Egreja!1865Anthero de Quental,Odes modernas, p. 129. 2.ª ed. Porto, 1875.
Quando Christo sentiu que a sua horaEm fim era chegada, grave e calmo,Sereno se acercou dos que o buscavam.A turba vinha em armas! Mas, de tantos,Nem um só se atreveu a dar um passo,A pôr a mão no Filho do Homem.—TodosDe olhos no chão, as armas encobriamAnte Jesus inerme.Então aquelleQue o tinha de entregar, aproximando-se,O tomou nos seus braços, murmurando:«Que Deus te salve, Mestre!» E, sobre a faceO beijou, como fôra contractado.Então os mais, chegando-se, o prenderam.
Quando Christo sentiu que a sua hora
Em fim era chegada, grave e calmo,
Sereno se acercou dos que o buscavam.
A turba vinha em armas! Mas, de tantos,
Nem um só se atreveu a dar um passo,
A pôr a mão no Filho do Homem.—Todos
De olhos no chão, as armas encobriam
Ante Jesus inerme.
Então aquelle
Que o tinha de entregar, aproximando-se,
O tomou nos seus braços, murmurando:
«Que Deus te salve, Mestre!» E, sobre a face
O beijou, como fôra contractado.
Então os mais, chegando-se, o prenderam.
Mas Jesus, sem os vêr, lhes perdoava;De olhos no céo, seguía-os sereno.Era duro o caminho. Sobre um monteIam, e dos dois lados, lá em baixo,Cobria a treva a terra toda.Quando,Porém, sobre o mais alto d'esse monteForam emfim chegados, de repenteViu-se-lhe uma das faces alumiar-seDe uma luz doce e branda, mas immensa!E quanta terra, desde o monte ao oceano,Lhe ficava do lado aonde viradaLhe estava aquella face, reflectindo-a,Tudo se esclarecia—valle e serraE a metade do céo—apparecendoComo em puro luar, ou qual se fosseVir nascendo uma aurora d'esse lado.E essa face radiante era a que JudasNão chegára a tocar.Porém a outra,Que elle beijara, conservou-se escura,Como se o crime d'elle ali guardasse...Onde a virava, era uma noite immensa,Coberto o horisonte de nevoeiro...Partido o mundo em dois, essa metadeEra a que se ficara envolta em sombras.........................................Foi d'essas sombras que se fez a Egreja!
Mas Jesus, sem os vêr, lhes perdoava;
De olhos no céo, seguía-os sereno.
Era duro o caminho. Sobre um monte
Iam, e dos dois lados, lá em baixo,
Cobria a treva a terra toda.
Quando,
Porém, sobre o mais alto d'esse monte
Foram emfim chegados, de repente
Viu-se-lhe uma das faces alumiar-se
De uma luz doce e branda, mas immensa!
E quanta terra, desde o monte ao oceano,
Lhe ficava do lado aonde virada
Lhe estava aquella face, reflectindo-a,
Tudo se esclarecia—valle e serra
E a metade do céo—apparecendo
Como em puro luar, ou qual se fosse
Vir nascendo uma aurora d'esse lado.
E essa face radiante era a que Judas
Não chegára a tocar.
Porém a outra,
Que elle beijara, conservou-se escura,
Como se o crime d'elle ali guardasse...
Onde a virava, era uma noite immensa,
Coberto o horisonte de nevoeiro...
Partido o mundo em dois, essa metade
Era a que se ficara envolta em sombras.
........................................
Foi d'essas sombras que se fez a Egreja!
1865Anthero de Quental,Odes modernas, p. 129. 2.ª ed. Porto, 1875.
1865Anthero de Quental,Odes modernas, p. 129. 2.ª ed. Porto, 1875.
Como o vento ás sementes do pinheiroPelos campos atira e vae levando...E, a um e um, até ao derradeiro,Vae na costa do monte semeando;Tal o vento dos tempos leva á Idéa,A pouco e pouco, sem se vêr fugir...E nos campos da vida assim semêaAs immensas florestas do porvir!Anthero do Quental,Odes modernas, p. 135
Como o vento ás sementes do pinheiroPelos campos atira e vae levando...E, a um e um, até ao derradeiro,Vae na costa do monte semeando;Tal o vento dos tempos leva á Idéa,A pouco e pouco, sem se vêr fugir...E nos campos da vida assim semêaAs immensas florestas do porvir!Anthero do Quental,Odes modernas, p. 135
Como o vento ás sementes do pinheiroPelos campos atira e vae levando...E, a um e um, até ao derradeiro,Vae na costa do monte semeando;
Como o vento ás sementes do pinheiro
Pelos campos atira e vae levando...
E, a um e um, até ao derradeiro,
Vae na costa do monte semeando;
Tal o vento dos tempos leva á Idéa,A pouco e pouco, sem se vêr fugir...E nos campos da vida assim semêaAs immensas florestas do porvir!
Tal o vento dos tempos leva á Idéa,
A pouco e pouco, sem se vêr fugir...
E nos campos da vida assim semêa
As immensas florestas do porvir!
Anthero do Quental,Odes modernas, p. 135
Anthero do Quental,Odes modernas, p. 135
Ha dous templos no espaço—um d'elles mais pequeno;O outro, que é maior, está por cima d'este;Tem por cúpula o céo, e tem por candelabrosA lua ao occidente, e o sol suspenso ao éste.De sorte que quem stá no templo mais exiguoNão póde vêr nascer o sol, nem póde vêrAs estrellas no céo,—que os tectos e as columnasNão o deixam olhar, nem a cabeça erguer.É preciso abalar-lhe os tectos e as columnas,Porque se possa erguer a fronte até aos céos...É preciso partir a Egreja em mil pedaçosPorque se possa vêr em cheio a luz de Deus.1864Anthero do Quental,Odes modernas, p. 155.
Ha dous templos no espaço—um d'elles mais pequeno;O outro, que é maior, está por cima d'este;Tem por cúpula o céo, e tem por candelabrosA lua ao occidente, e o sol suspenso ao éste.De sorte que quem stá no templo mais exiguoNão póde vêr nascer o sol, nem póde vêrAs estrellas no céo,—que os tectos e as columnasNão o deixam olhar, nem a cabeça erguer.É preciso abalar-lhe os tectos e as columnas,Porque se possa erguer a fronte até aos céos...É preciso partir a Egreja em mil pedaçosPorque se possa vêr em cheio a luz de Deus.1864Anthero do Quental,Odes modernas, p. 155.
Ha dous templos no espaço—um d'elles mais pequeno;O outro, que é maior, está por cima d'este;Tem por cúpula o céo, e tem por candelabrosA lua ao occidente, e o sol suspenso ao éste.
Ha dous templos no espaço—um d'elles mais pequeno;
O outro, que é maior, está por cima d'este;
Tem por cúpula o céo, e tem por candelabros
A lua ao occidente, e o sol suspenso ao éste.
De sorte que quem stá no templo mais exiguoNão póde vêr nascer o sol, nem póde vêrAs estrellas no céo,—que os tectos e as columnasNão o deixam olhar, nem a cabeça erguer.
De sorte que quem stá no templo mais exiguo
Não póde vêr nascer o sol, nem póde vêr
As estrellas no céo,—que os tectos e as columnas
Não o deixam olhar, nem a cabeça erguer.
É preciso abalar-lhe os tectos e as columnas,Porque se possa erguer a fronte até aos céos...É preciso partir a Egreja em mil pedaçosPorque se possa vêr em cheio a luz de Deus.
É preciso abalar-lhe os tectos e as columnas,
Porque se possa erguer a fronte até aos céos...
É preciso partir a Egreja em mil pedaços
Porque se possa vêr em cheio a luz de Deus.
1864Anthero do Quental,Odes modernas, p. 155.
1864Anthero do Quental,Odes modernas, p. 155.
Bem póde ser que nossos pés dorídosVão errados na senda tortuosa,Que o pensamento segue nos desertos,Na viagem da Idéa trabalhosa...Que a arvore da sciencia, sacudidaCom força, jámais deite sobre o chão,Aos pés dos tristes que ali 'stão anciosos,Mais do que o fructo negro da illusão...Que o livro do Destino esteja escriptoSobre folhas de lava, em letra ardente,E não chegue a fital-o o olho humanoSem que se offusque e cegue de repente...Póde ser, que na lucta tenebrosaQue este seculo move sob o céo,venha a faltar-lhe o ár, por fim, faltando-lheA terra sob os pés, bem como Anteo...Que do sangue espalhado nos combates,E do pranto que cae da triste lyra,No árido chão da esperança humanoMais não nasça que a urze da mentira...Que o mysterio da vida a nossos olhosSe torne dia a dia mais escuro,E no muro de bronze do DestinoSe quebre a fronte—sem que ceda o muro...E que o pensamento seja só orgulho,E a sciencia um sarcasmo da verdade,E nosso coração, louco vidente,E nossas esperanças só vaidade.E nossa lucta, vã! talvez que o seja!Cego andará o homem cada vezQue vê no céo um astro! e os passos d'elleErrados pelo mundo irão, talvez!Mas, oh vós que prégaes descanço inerte,No seio maternal da ignorancia,E condemnaes a lucta, e daes ao homemPor seu consolo o dormitar da infancia;Apostolos da crença,... na inercia...Vós que tendes da Fé o ministerioE sois reveladores, dando ao mundoEm logar de um mysterio... outro mysterio;Se quanto o Universo tem no seio,E quanto o homem tem no coração,O olhar que vê, e a alma que adivinha,O pensar grave e a ardente intuição,Se nada—em terra e céo—pôde ensinar-nos,Do fado humano o immortal segredo,Nem os livros profundos da sciencia,Nem as profundas sombras do arvoredo,Se não ha mão audaz que possa erguel-oO tenebroso véo do Bem e Mal...Se ninguem nos explica este mysterio...Tambem o não dirá nenhum Missal.1865Anthero do Quental,Odes modernas, p. 143.
Bem póde ser que nossos pés dorídosVão errados na senda tortuosa,Que o pensamento segue nos desertos,Na viagem da Idéa trabalhosa...Que a arvore da sciencia, sacudidaCom força, jámais deite sobre o chão,Aos pés dos tristes que ali 'stão anciosos,Mais do que o fructo negro da illusão...Que o livro do Destino esteja escriptoSobre folhas de lava, em letra ardente,E não chegue a fital-o o olho humanoSem que se offusque e cegue de repente...Póde ser, que na lucta tenebrosaQue este seculo move sob o céo,venha a faltar-lhe o ár, por fim, faltando-lheA terra sob os pés, bem como Anteo...Que do sangue espalhado nos combates,E do pranto que cae da triste lyra,No árido chão da esperança humanoMais não nasça que a urze da mentira...Que o mysterio da vida a nossos olhosSe torne dia a dia mais escuro,E no muro de bronze do DestinoSe quebre a fronte—sem que ceda o muro...E que o pensamento seja só orgulho,E a sciencia um sarcasmo da verdade,E nosso coração, louco vidente,E nossas esperanças só vaidade.E nossa lucta, vã! talvez que o seja!Cego andará o homem cada vezQue vê no céo um astro! e os passos d'elleErrados pelo mundo irão, talvez!Mas, oh vós que prégaes descanço inerte,No seio maternal da ignorancia,E condemnaes a lucta, e daes ao homemPor seu consolo o dormitar da infancia;Apostolos da crença,... na inercia...Vós que tendes da Fé o ministerioE sois reveladores, dando ao mundoEm logar de um mysterio... outro mysterio;Se quanto o Universo tem no seio,E quanto o homem tem no coração,O olhar que vê, e a alma que adivinha,O pensar grave e a ardente intuição,Se nada—em terra e céo—pôde ensinar-nos,Do fado humano o immortal segredo,Nem os livros profundos da sciencia,Nem as profundas sombras do arvoredo,Se não ha mão audaz que possa erguel-oO tenebroso véo do Bem e Mal...Se ninguem nos explica este mysterio...Tambem o não dirá nenhum Missal.1865Anthero do Quental,Odes modernas, p. 143.
Bem póde ser que nossos pés dorídosVão errados na senda tortuosa,Que o pensamento segue nos desertos,Na viagem da Idéa trabalhosa...
Bem póde ser que nossos pés dorídos
Vão errados na senda tortuosa,
Que o pensamento segue nos desertos,
Na viagem da Idéa trabalhosa...
Que a arvore da sciencia, sacudidaCom força, jámais deite sobre o chão,Aos pés dos tristes que ali 'stão anciosos,Mais do que o fructo negro da illusão...
Que a arvore da sciencia, sacudida
Com força, jámais deite sobre o chão,
Aos pés dos tristes que ali 'stão anciosos,
Mais do que o fructo negro da illusão...
Que o livro do Destino esteja escriptoSobre folhas de lava, em letra ardente,E não chegue a fital-o o olho humanoSem que se offusque e cegue de repente...
Que o livro do Destino esteja escripto
Sobre folhas de lava, em letra ardente,
E não chegue a fital-o o olho humano
Sem que se offusque e cegue de repente...
Póde ser, que na lucta tenebrosaQue este seculo move sob o céo,venha a faltar-lhe o ár, por fim, faltando-lheA terra sob os pés, bem como Anteo...
Póde ser, que na lucta tenebrosa
Que este seculo move sob o céo,
venha a faltar-lhe o ár, por fim, faltando-lhe
A terra sob os pés, bem como Anteo...
Que do sangue espalhado nos combates,E do pranto que cae da triste lyra,No árido chão da esperança humanoMais não nasça que a urze da mentira...
Que do sangue espalhado nos combates,
E do pranto que cae da triste lyra,
No árido chão da esperança humano
Mais não nasça que a urze da mentira...
Que o mysterio da vida a nossos olhosSe torne dia a dia mais escuro,E no muro de bronze do DestinoSe quebre a fronte—sem que ceda o muro...
Que o mysterio da vida a nossos olhos
Se torne dia a dia mais escuro,
E no muro de bronze do Destino
Se quebre a fronte—sem que ceda o muro...
E que o pensamento seja só orgulho,E a sciencia um sarcasmo da verdade,E nosso coração, louco vidente,E nossas esperanças só vaidade.
E que o pensamento seja só orgulho,
E a sciencia um sarcasmo da verdade,
E nosso coração, louco vidente,
E nossas esperanças só vaidade.
E nossa lucta, vã! talvez que o seja!Cego andará o homem cada vezQue vê no céo um astro! e os passos d'elleErrados pelo mundo irão, talvez!Mas, oh vós que prégaes descanço inerte,No seio maternal da ignorancia,E condemnaes a lucta, e daes ao homemPor seu consolo o dormitar da infancia;
E nossa lucta, vã! talvez que o seja!
Cego andará o homem cada vez
Que vê no céo um astro! e os passos d'elle
Errados pelo mundo irão, talvez!
Mas, oh vós que prégaes descanço inerte,
No seio maternal da ignorancia,
E condemnaes a lucta, e daes ao homem
Por seu consolo o dormitar da infancia;
Apostolos da crença,... na inercia...Vós que tendes da Fé o ministerioE sois reveladores, dando ao mundoEm logar de um mysterio... outro mysterio;
Apostolos da crença,... na inercia...
Vós que tendes da Fé o ministerio
E sois reveladores, dando ao mundo
Em logar de um mysterio... outro mysterio;
Se quanto o Universo tem no seio,E quanto o homem tem no coração,O olhar que vê, e a alma que adivinha,O pensar grave e a ardente intuição,
Se quanto o Universo tem no seio,
E quanto o homem tem no coração,
O olhar que vê, e a alma que adivinha,
O pensar grave e a ardente intuição,
Se nada—em terra e céo—pôde ensinar-nos,Do fado humano o immortal segredo,Nem os livros profundos da sciencia,Nem as profundas sombras do arvoredo,
Se nada—em terra e céo—pôde ensinar-nos,
Do fado humano o immortal segredo,
Nem os livros profundos da sciencia,
Nem as profundas sombras do arvoredo,
Se não ha mão audaz que possa erguel-oO tenebroso véo do Bem e Mal...Se ninguem nos explica este mysterio...Tambem o não dirá nenhum Missal.
Se não ha mão audaz que possa erguel-o
O tenebroso véo do Bem e Mal...
Se ninguem nos explica este mysterio...
Tambem o não dirá nenhum Missal.
1865Anthero do Quental,Odes modernas, p. 143.
1865Anthero do Quental,Odes modernas, p. 143.
—Chame-te Sudra quem servil te nota,Deixem-te as castas com horror sagrado,Calquem-te, Pária, Fellah, bronco Ilóta,Façam-te Escravo em Roma, ai, é baldado;És sempre o mesmo homem ultrajado!A natureza deu-te a força, e vidaQue não succumbe á violação proterva!Como a prancha que arrasta onda batida,Como revive a amaldiçoada erva,Assim poder extranho te conserva.Erva, cujas raizes derrocaramDe ergástulos e templos velhos muros,Que nas ruinas seu vigor mostraram,Cobrindo de verdura os seixos duros,Só com ter de ár e luz uns haustos puros.Os que te viram sob o aspecto novo,A ti, o ignobil da vetusta edade,Como lisonja te chamaram Povo;E envolvidos na pávida anciedadeDeixaram-te provar da egualdade.Como foi que subiste a tanta altura?Não és aquelle mesmo intonso e hirsuto,Sem vontade ou direito; por venturaBebendo o choro mudo, nunca enxuto?Vivendo equiparado sempre ao bruto?Não és aquelle a quem o sol aquentaPela graça dos reis, pois que um relanceDas Bastilhas te arroja á morte lenta?Da crassa escravidão deixaste o alcance?Da gleba adscripta sacudiste o transe?Como ousaste pensar por ti um dia,Rodeado de bonzos como andáras?Chamaste a Providencia; a Theologia,A escarnecer-te com devotas caras,Respondia queimando-te nas áras.E foi possivel germinar a ideia,Sob esse craneo duro, tantas vezesDecepado nas praças, porque cheiaUm dia trasbordára a taça as fézes,E ousaste resistir a mil revézes?Explorado do berço á sepultura,Tu, conservado estupido por plano,Como foi que subiste a tanta altura?Lançando da cerviz o jugo insano,Reclamando isso que é do sêr humano?«Perguntas bem! Direi toda a verdade:De luz, terra e trabalho, de ár e ideia,Da santa aspiração da liberdade,De tudo quanto o peito vivo anceia,Um dogma nos privou por culpa alheia.O velho egoismo nos privou de tudo!Fomos baixando até cahir exangue;Rasgava-nos o peito o ferro agudo,E quando estava já para a dor mudoSó não poderam esgotar-lhe o sangue.E o sangue correu sempre,—e quente arrastaProvocando a embriaguez da liberdade,Lavando o stigma que separa a casta,Minando a secular fatalidadeQue fez do atroz arbitrio Auctoridade!Quando o rei paternal, d'entre o arminhoTriumphante exclamava:—Quero e posso!Lançava ao ár o cópo cheio de vinho;Tambem ao derrubar o alto colosso,Nos derramámos sempre o sangue nosso.O sangue, o sangue nosso! o vinho forteDa garantia cívica romana!Na sua enchente rompe o dique á sorte.Como Christo augmentou o vinho em Cana,O sangue fez a egualdade humana.Theophilo Braga.
—Chame-te Sudra quem servil te nota,Deixem-te as castas com horror sagrado,Calquem-te, Pária, Fellah, bronco Ilóta,Façam-te Escravo em Roma, ai, é baldado;És sempre o mesmo homem ultrajado!A natureza deu-te a força, e vidaQue não succumbe á violação proterva!Como a prancha que arrasta onda batida,Como revive a amaldiçoada erva,Assim poder extranho te conserva.Erva, cujas raizes derrocaramDe ergástulos e templos velhos muros,Que nas ruinas seu vigor mostraram,Cobrindo de verdura os seixos duros,Só com ter de ár e luz uns haustos puros.Os que te viram sob o aspecto novo,A ti, o ignobil da vetusta edade,Como lisonja te chamaram Povo;E envolvidos na pávida anciedadeDeixaram-te provar da egualdade.Como foi que subiste a tanta altura?Não és aquelle mesmo intonso e hirsuto,Sem vontade ou direito; por venturaBebendo o choro mudo, nunca enxuto?Vivendo equiparado sempre ao bruto?Não és aquelle a quem o sol aquentaPela graça dos reis, pois que um relanceDas Bastilhas te arroja á morte lenta?Da crassa escravidão deixaste o alcance?Da gleba adscripta sacudiste o transe?Como ousaste pensar por ti um dia,Rodeado de bonzos como andáras?Chamaste a Providencia; a Theologia,A escarnecer-te com devotas caras,Respondia queimando-te nas áras.E foi possivel germinar a ideia,Sob esse craneo duro, tantas vezesDecepado nas praças, porque cheiaUm dia trasbordára a taça as fézes,E ousaste resistir a mil revézes?Explorado do berço á sepultura,Tu, conservado estupido por plano,Como foi que subiste a tanta altura?Lançando da cerviz o jugo insano,Reclamando isso que é do sêr humano?«Perguntas bem! Direi toda a verdade:De luz, terra e trabalho, de ár e ideia,Da santa aspiração da liberdade,De tudo quanto o peito vivo anceia,Um dogma nos privou por culpa alheia.O velho egoismo nos privou de tudo!Fomos baixando até cahir exangue;Rasgava-nos o peito o ferro agudo,E quando estava já para a dor mudoSó não poderam esgotar-lhe o sangue.E o sangue correu sempre,—e quente arrastaProvocando a embriaguez da liberdade,Lavando o stigma que separa a casta,Minando a secular fatalidadeQue fez do atroz arbitrio Auctoridade!Quando o rei paternal, d'entre o arminhoTriumphante exclamava:—Quero e posso!Lançava ao ár o cópo cheio de vinho;Tambem ao derrubar o alto colosso,Nos derramámos sempre o sangue nosso.O sangue, o sangue nosso! o vinho forteDa garantia cívica romana!Na sua enchente rompe o dique á sorte.Como Christo augmentou o vinho em Cana,O sangue fez a egualdade humana.Theophilo Braga.
—Chame-te Sudra quem servil te nota,Deixem-te as castas com horror sagrado,Calquem-te, Pária, Fellah, bronco Ilóta,Façam-te Escravo em Roma, ai, é baldado;És sempre o mesmo homem ultrajado!
—Chame-te Sudra quem servil te nota,
Deixem-te as castas com horror sagrado,
Calquem-te, Pária, Fellah, bronco Ilóta,
Façam-te Escravo em Roma, ai, é baldado;
És sempre o mesmo homem ultrajado!
A natureza deu-te a força, e vidaQue não succumbe á violação proterva!Como a prancha que arrasta onda batida,Como revive a amaldiçoada erva,Assim poder extranho te conserva.
A natureza deu-te a força, e vida
Que não succumbe á violação proterva!
Como a prancha que arrasta onda batida,
Como revive a amaldiçoada erva,
Assim poder extranho te conserva.
Erva, cujas raizes derrocaramDe ergástulos e templos velhos muros,Que nas ruinas seu vigor mostraram,Cobrindo de verdura os seixos duros,Só com ter de ár e luz uns haustos puros.
Erva, cujas raizes derrocaram
De ergástulos e templos velhos muros,
Que nas ruinas seu vigor mostraram,
Cobrindo de verdura os seixos duros,
Só com ter de ár e luz uns haustos puros.
Os que te viram sob o aspecto novo,A ti, o ignobil da vetusta edade,Como lisonja te chamaram Povo;E envolvidos na pávida anciedadeDeixaram-te provar da egualdade.
Os que te viram sob o aspecto novo,
A ti, o ignobil da vetusta edade,
Como lisonja te chamaram Povo;
E envolvidos na pávida anciedade
Deixaram-te provar da egualdade.
Como foi que subiste a tanta altura?Não és aquelle mesmo intonso e hirsuto,Sem vontade ou direito; por venturaBebendo o choro mudo, nunca enxuto?Vivendo equiparado sempre ao bruto?
Como foi que subiste a tanta altura?
Não és aquelle mesmo intonso e hirsuto,
Sem vontade ou direito; por ventura
Bebendo o choro mudo, nunca enxuto?
Vivendo equiparado sempre ao bruto?
Não és aquelle a quem o sol aquentaPela graça dos reis, pois que um relanceDas Bastilhas te arroja á morte lenta?Da crassa escravidão deixaste o alcance?Da gleba adscripta sacudiste o transe?
Não és aquelle a quem o sol aquenta
Pela graça dos reis, pois que um relance
Das Bastilhas te arroja á morte lenta?
Da crassa escravidão deixaste o alcance?
Da gleba adscripta sacudiste o transe?
Como ousaste pensar por ti um dia,Rodeado de bonzos como andáras?Chamaste a Providencia; a Theologia,A escarnecer-te com devotas caras,Respondia queimando-te nas áras.
Como ousaste pensar por ti um dia,
Rodeado de bonzos como andáras?
Chamaste a Providencia; a Theologia,
A escarnecer-te com devotas caras,
Respondia queimando-te nas áras.
E foi possivel germinar a ideia,Sob esse craneo duro, tantas vezesDecepado nas praças, porque cheiaUm dia trasbordára a taça as fézes,E ousaste resistir a mil revézes?
E foi possivel germinar a ideia,
Sob esse craneo duro, tantas vezes
Decepado nas praças, porque cheia
Um dia trasbordára a taça as fézes,
E ousaste resistir a mil revézes?
Explorado do berço á sepultura,Tu, conservado estupido por plano,Como foi que subiste a tanta altura?Lançando da cerviz o jugo insano,Reclamando isso que é do sêr humano?
Explorado do berço á sepultura,
Tu, conservado estupido por plano,
Como foi que subiste a tanta altura?
Lançando da cerviz o jugo insano,
Reclamando isso que é do sêr humano?
«Perguntas bem! Direi toda a verdade:De luz, terra e trabalho, de ár e ideia,Da santa aspiração da liberdade,De tudo quanto o peito vivo anceia,Um dogma nos privou por culpa alheia.
«Perguntas bem! Direi toda a verdade:
De luz, terra e trabalho, de ár e ideia,
Da santa aspiração da liberdade,
De tudo quanto o peito vivo anceia,
Um dogma nos privou por culpa alheia.
O velho egoismo nos privou de tudo!Fomos baixando até cahir exangue;Rasgava-nos o peito o ferro agudo,E quando estava já para a dor mudoSó não poderam esgotar-lhe o sangue.
O velho egoismo nos privou de tudo!
Fomos baixando até cahir exangue;
Rasgava-nos o peito o ferro agudo,
E quando estava já para a dor mudo
Só não poderam esgotar-lhe o sangue.
E o sangue correu sempre,—e quente arrastaProvocando a embriaguez da liberdade,Lavando o stigma que separa a casta,Minando a secular fatalidadeQue fez do atroz arbitrio Auctoridade!
E o sangue correu sempre,—e quente arrasta
Provocando a embriaguez da liberdade,
Lavando o stigma que separa a casta,
Minando a secular fatalidade
Que fez do atroz arbitrio Auctoridade!
Quando o rei paternal, d'entre o arminhoTriumphante exclamava:—Quero e posso!Lançava ao ár o cópo cheio de vinho;Tambem ao derrubar o alto colosso,Nos derramámos sempre o sangue nosso.
Quando o rei paternal, d'entre o arminho
Triumphante exclamava:—Quero e posso!
Lançava ao ár o cópo cheio de vinho;
Tambem ao derrubar o alto colosso,
Nos derramámos sempre o sangue nosso.
O sangue, o sangue nosso! o vinho forteDa garantia cívica romana!Na sua enchente rompe o dique á sorte.Como Christo augmentou o vinho em Cana,O sangue fez a egualdade humana.
O sangue, o sangue nosso! o vinho forte
Da garantia cívica romana!
Na sua enchente rompe o dique á sorte.
Como Christo augmentou o vinho em Cana,
O sangue fez a egualdade humana.
Theophilo Braga.
Theophilo Braga.