O SEPULCHRO DE VIRGILIO

O SEPULCHRO DE VIRGILIO

Era chegado o Apostolo eloquenteCansado, e firme n'uma fé robusta,Da romagem longinqua do Oriente,Por hordas sevas da região adusta:Vinha trazer á Capital da GenteQue impera no orbe e com poder assustaDe armas e leis, poder egual não visto,O Verbo novo que dissera Christo.Vira o Apostolo uma fresca gruta,Entrou, sentou-se em vago esquecimento.Queria forças para entrar na lucta,E repouso de quem recobra alento;Santos carmes do velho Lacio escutaAgitando-lhe o incerto pensamento.É bem que te extasies e arrebatesCo'a a lingua dos Juristas e dos Vates!Sentou-se extenuado sobre as bordasDo tumulo sagrado de Virgilio!Transpondo os mares, e sedentas hordas,Mal comprehende o Apostolo esse idylioQue resôa das invisiveis cordasDa alma grega no etrusco domicilio.Elle quer possuir essa magiaPara espalhar a fé viva que o guia.Virgilio! A natureza era serena!Com mansidão o mar longe estuavaNa forte placidez de quem sem penaDo promontorio os vinculos quebrava.Atito pesaroso de uma avenaGraça de infancia á paisagem dava;Era limpido o ár! Cariz de Italia...Quem tiver mais poesia n'alma exhale-a.Havia o quer que é, de mysteriosoQue perturbava o Apostolo fervente,A revelar-lhe com tristeza e goso,Que vinha tarde ás bandas do Occidente,Fallar do Verbo novo e dolorosoDa liberdade humana florescente!Sobre o tumulo d'esse augusto VateMedita nas palavras do resgate.Repousou a cabeça somnolentaDa campa de Virgilio sobre a lagem;A mente em sonho vago representaQue chegou tarde tarde da romagem.E chorou como aquelle que se ausentaDo seu amigo, para a eterna viagem,E chorou! Concentrou-se a naturezaPara ouvil-o em sua intima tristeza:

Era chegado o Apostolo eloquenteCansado, e firme n'uma fé robusta,Da romagem longinqua do Oriente,Por hordas sevas da região adusta:Vinha trazer á Capital da GenteQue impera no orbe e com poder assustaDe armas e leis, poder egual não visto,O Verbo novo que dissera Christo.Vira o Apostolo uma fresca gruta,Entrou, sentou-se em vago esquecimento.Queria forças para entrar na lucta,E repouso de quem recobra alento;Santos carmes do velho Lacio escutaAgitando-lhe o incerto pensamento.É bem que te extasies e arrebatesCo'a a lingua dos Juristas e dos Vates!Sentou-se extenuado sobre as bordasDo tumulo sagrado de Virgilio!Transpondo os mares, e sedentas hordas,Mal comprehende o Apostolo esse idylioQue resôa das invisiveis cordasDa alma grega no etrusco domicilio.Elle quer possuir essa magiaPara espalhar a fé viva que o guia.Virgilio! A natureza era serena!Com mansidão o mar longe estuavaNa forte placidez de quem sem penaDo promontorio os vinculos quebrava.Atito pesaroso de uma avenaGraça de infancia á paisagem dava;Era limpido o ár! Cariz de Italia...Quem tiver mais poesia n'alma exhale-a.Havia o quer que é, de mysteriosoQue perturbava o Apostolo fervente,A revelar-lhe com tristeza e goso,Que vinha tarde ás bandas do Occidente,Fallar do Verbo novo e dolorosoDa liberdade humana florescente!Sobre o tumulo d'esse augusto VateMedita nas palavras do resgate.Repousou a cabeça somnolentaDa campa de Virgilio sobre a lagem;A mente em sonho vago representaQue chegou tarde tarde da romagem.E chorou como aquelle que se ausentaDo seu amigo, para a eterna viagem,E chorou! Concentrou-se a naturezaPara ouvil-o em sua intima tristeza:

Era chegado o Apostolo eloquenteCansado, e firme n'uma fé robusta,Da romagem longinqua do Oriente,Por hordas sevas da região adusta:Vinha trazer á Capital da GenteQue impera no orbe e com poder assustaDe armas e leis, poder egual não visto,O Verbo novo que dissera Christo.

Era chegado o Apostolo eloquente

Cansado, e firme n'uma fé robusta,

Da romagem longinqua do Oriente,

Por hordas sevas da região adusta:

Vinha trazer á Capital da Gente

Que impera no orbe e com poder assusta

De armas e leis, poder egual não visto,

O Verbo novo que dissera Christo.

Vira o Apostolo uma fresca gruta,Entrou, sentou-se em vago esquecimento.Queria forças para entrar na lucta,E repouso de quem recobra alento;Santos carmes do velho Lacio escutaAgitando-lhe o incerto pensamento.É bem que te extasies e arrebatesCo'a a lingua dos Juristas e dos Vates!

Vira o Apostolo uma fresca gruta,

Entrou, sentou-se em vago esquecimento.

Queria forças para entrar na lucta,

E repouso de quem recobra alento;

Santos carmes do velho Lacio escuta

Agitando-lhe o incerto pensamento.

É bem que te extasies e arrebates

Co'a a lingua dos Juristas e dos Vates!

Sentou-se extenuado sobre as bordasDo tumulo sagrado de Virgilio!Transpondo os mares, e sedentas hordas,Mal comprehende o Apostolo esse idylioQue resôa das invisiveis cordasDa alma grega no etrusco domicilio.Elle quer possuir essa magiaPara espalhar a fé viva que o guia.

Sentou-se extenuado sobre as bordas

Do tumulo sagrado de Virgilio!

Transpondo os mares, e sedentas hordas,

Mal comprehende o Apostolo esse idylio

Que resôa das invisiveis cordas

Da alma grega no etrusco domicilio.

Elle quer possuir essa magia

Para espalhar a fé viva que o guia.

Virgilio! A natureza era serena!Com mansidão o mar longe estuavaNa forte placidez de quem sem penaDo promontorio os vinculos quebrava.Atito pesaroso de uma avenaGraça de infancia á paisagem dava;Era limpido o ár! Cariz de Italia...Quem tiver mais poesia n'alma exhale-a.

Virgilio! A natureza era serena!

Com mansidão o mar longe estuava

Na forte placidez de quem sem pena

Do promontorio os vinculos quebrava.

Atito pesaroso de uma avena

Graça de infancia á paisagem dava;

Era limpido o ár! Cariz de Italia...

Quem tiver mais poesia n'alma exhale-a.

Havia o quer que é, de mysteriosoQue perturbava o Apostolo fervente,A revelar-lhe com tristeza e goso,Que vinha tarde ás bandas do Occidente,Fallar do Verbo novo e dolorosoDa liberdade humana florescente!Sobre o tumulo d'esse augusto VateMedita nas palavras do resgate.

Havia o quer que é, de mysterioso

Que perturbava o Apostolo fervente,

A revelar-lhe com tristeza e goso,

Que vinha tarde ás bandas do Occidente,

Fallar do Verbo novo e doloroso

Da liberdade humana florescente!

Sobre o tumulo d'esse augusto Vate

Medita nas palavras do resgate.

Repousou a cabeça somnolentaDa campa de Virgilio sobre a lagem;A mente em sonho vago representaQue chegou tarde tarde da romagem.E chorou como aquelle que se ausentaDo seu amigo, para a eterna viagem,E chorou! Concentrou-se a naturezaPara ouvil-o em sua intima tristeza:

Repousou a cabeça somnolenta

Da campa de Virgilio sobre a lagem;

A mente em sonho vago representa

Que chegou tarde tarde da romagem.

E chorou como aquelle que se ausenta

Do seu amigo, para a eterna viagem,

E chorou! Concentrou-se a natureza

Para ouvil-o em sua intima tristeza:

«Oh alma bem fadada, só nascidaPara sentir o bello e a verdade!Para ti minha vinda foi perdida.«Ao conhecer-te, quem chorar não hadeVendo morrer no erro e culpa d'EvaO melhor coração da antiguidade?Tu foste como o guia, quando levaA luz adiante, e a todos alumia;Só para si não vae rompendo a treva!Ah, presentiu a ideal melancholiaQue faz do novo dogma a essencia, quandoSunt lacrymae rerum!proferia.Virgilio! Ah, como apostolo seriaO que dava á verdade essa linguagemProfunda, humana e viva da poesia!Se Paulo, ai, tarde! da longiqua viagemPudesse vir a tempo, em tua procura,Do Verbo novo dando-te a mensagem!Ter eu vindo tão tarde! desventura.E ser já tarde! que lethal tristeza,Para salvar esta alma ingenua, pura!»E chorou! concentrou-se a natureza.

«Oh alma bem fadada, só nascidaPara sentir o bello e a verdade!Para ti minha vinda foi perdida.«Ao conhecer-te, quem chorar não hadeVendo morrer no erro e culpa d'EvaO melhor coração da antiguidade?Tu foste como o guia, quando levaA luz adiante, e a todos alumia;Só para si não vae rompendo a treva!Ah, presentiu a ideal melancholiaQue faz do novo dogma a essencia, quandoSunt lacrymae rerum!proferia.Virgilio! Ah, como apostolo seriaO que dava á verdade essa linguagemProfunda, humana e viva da poesia!Se Paulo, ai, tarde! da longiqua viagemPudesse vir a tempo, em tua procura,Do Verbo novo dando-te a mensagem!Ter eu vindo tão tarde! desventura.E ser já tarde! que lethal tristeza,Para salvar esta alma ingenua, pura!»E chorou! concentrou-se a natureza.

«Oh alma bem fadada, só nascidaPara sentir o bello e a verdade!Para ti minha vinda foi perdida.

«Oh alma bem fadada, só nascida

Para sentir o bello e a verdade!

Para ti minha vinda foi perdida.

«Ao conhecer-te, quem chorar não hadeVendo morrer no erro e culpa d'EvaO melhor coração da antiguidade?

«Ao conhecer-te, quem chorar não hade

Vendo morrer no erro e culpa d'Eva

O melhor coração da antiguidade?

Tu foste como o guia, quando levaA luz adiante, e a todos alumia;Só para si não vae rompendo a treva!

Tu foste como o guia, quando leva

A luz adiante, e a todos alumia;

Só para si não vae rompendo a treva!

Ah, presentiu a ideal melancholiaQue faz do novo dogma a essencia, quandoSunt lacrymae rerum!proferia.

Ah, presentiu a ideal melancholia

Que faz do novo dogma a essencia, quando

Sunt lacrymae rerum!proferia.

Virgilio! Ah, como apostolo seriaO que dava á verdade essa linguagemProfunda, humana e viva da poesia!

Virgilio! Ah, como apostolo seria

O que dava á verdade essa linguagem

Profunda, humana e viva da poesia!

Se Paulo, ai, tarde! da longiqua viagemPudesse vir a tempo, em tua procura,Do Verbo novo dando-te a mensagem!

Se Paulo, ai, tarde! da longiqua viagem

Pudesse vir a tempo, em tua procura,

Do Verbo novo dando-te a mensagem!

Ter eu vindo tão tarde! desventura.E ser já tarde! que lethal tristeza,Para salvar esta alma ingenua, pura!»

Ter eu vindo tão tarde! desventura.

E ser já tarde! que lethal tristeza,

Para salvar esta alma ingenua, pura!»

E chorou! concentrou-se a natureza.

E chorou! concentrou-se a natureza.

Longo foi o silencio, como aquelleQue procede o ruir da tempestade,Antes que o vendaval rijo atropelleAs ondas, contra as quaes urrando brade!Paulo chorava por essa alma imbelle,Com magua e suavissima saudadeÁs lagrimas, da compunção alarde,Respondeu-lhe uma voz:—Não vieste tarde.Não vieste tarde! E vê se poderiasAo maximo pontifice do JustoLeval-o a crêr na Graça que annuncias?Não podera esquecer a todo o custoO nexo da harmonia das vontades,Por um dogma de privilegio augusto.Cuspido ás praias pelas tempestadesVieste Paulo, a tempo a dar a novaD'esse mysterio ás immoraes cidades.Em quanto da Justiça déra provaRoma! foi grande, soberana e forte.Quem haverá que a outra ideia a mova?Mas essa luz que sempre foi seu norte,Um dia a apaga a purpura devassa:Do carcomido imperio segue a sorte.Antepondo á Justiça, arbitrio ou Graça,Vae, Paulo! agora é tempo, e entra em Roma,Se fallas em Justiça, a plebe passa...Ella não te percebe! Ah Paulo, dómaA plebe ignava com o doce enganoDe cousa que se palpe e que se coma...Da bem aventurança pinta o arcâno;Mas a doutrina só será fecundaQuando o teu Christo se tornar romano........................................

Longo foi o silencio, como aquelleQue procede o ruir da tempestade,Antes que o vendaval rijo atropelleAs ondas, contra as quaes urrando brade!Paulo chorava por essa alma imbelle,Com magua e suavissima saudadeÁs lagrimas, da compunção alarde,Respondeu-lhe uma voz:—Não vieste tarde.Não vieste tarde! E vê se poderiasAo maximo pontifice do JustoLeval-o a crêr na Graça que annuncias?Não podera esquecer a todo o custoO nexo da harmonia das vontades,Por um dogma de privilegio augusto.Cuspido ás praias pelas tempestadesVieste Paulo, a tempo a dar a novaD'esse mysterio ás immoraes cidades.Em quanto da Justiça déra provaRoma! foi grande, soberana e forte.Quem haverá que a outra ideia a mova?Mas essa luz que sempre foi seu norte,Um dia a apaga a purpura devassa:Do carcomido imperio segue a sorte.Antepondo á Justiça, arbitrio ou Graça,Vae, Paulo! agora é tempo, e entra em Roma,Se fallas em Justiça, a plebe passa...Ella não te percebe! Ah Paulo, dómaA plebe ignava com o doce enganoDe cousa que se palpe e que se coma...Da bem aventurança pinta o arcâno;Mas a doutrina só será fecundaQuando o teu Christo se tornar romano........................................

Longo foi o silencio, como aquelleQue procede o ruir da tempestade,Antes que o vendaval rijo atropelleAs ondas, contra as quaes urrando brade!Paulo chorava por essa alma imbelle,

Longo foi o silencio, como aquelle

Que procede o ruir da tempestade,

Antes que o vendaval rijo atropelle

As ondas, contra as quaes urrando brade!

Paulo chorava por essa alma imbelle,

Com magua e suavissima saudadeÁs lagrimas, da compunção alarde,Respondeu-lhe uma voz:

Com magua e suavissima saudade

Ás lagrimas, da compunção alarde,

Respondeu-lhe uma voz:

—Não vieste tarde.

—Não vieste tarde.

Não vieste tarde! E vê se poderiasAo maximo pontifice do JustoLeval-o a crêr na Graça que annuncias?

Não vieste tarde! E vê se poderias

Ao maximo pontifice do Justo

Leval-o a crêr na Graça que annuncias?

Não podera esquecer a todo o custoO nexo da harmonia das vontades,Por um dogma de privilegio augusto.

Não podera esquecer a todo o custo

O nexo da harmonia das vontades,

Por um dogma de privilegio augusto.

Cuspido ás praias pelas tempestadesVieste Paulo, a tempo a dar a novaD'esse mysterio ás immoraes cidades.

Cuspido ás praias pelas tempestades

Vieste Paulo, a tempo a dar a nova

D'esse mysterio ás immoraes cidades.

Em quanto da Justiça déra provaRoma! foi grande, soberana e forte.Quem haverá que a outra ideia a mova?

Em quanto da Justiça déra prova

Roma! foi grande, soberana e forte.

Quem haverá que a outra ideia a mova?

Mas essa luz que sempre foi seu norte,Um dia a apaga a purpura devassa:Do carcomido imperio segue a sorte.

Mas essa luz que sempre foi seu norte,

Um dia a apaga a purpura devassa:

Do carcomido imperio segue a sorte.

Antepondo á Justiça, arbitrio ou Graça,Vae, Paulo! agora é tempo, e entra em Roma,Se fallas em Justiça, a plebe passa...

Antepondo á Justiça, arbitrio ou Graça,

Vae, Paulo! agora é tempo, e entra em Roma,

Se fallas em Justiça, a plebe passa...

Ella não te percebe! Ah Paulo, dómaA plebe ignava com o doce enganoDe cousa que se palpe e que se coma...

Ella não te percebe! Ah Paulo, dóma

A plebe ignava com o doce engano

De cousa que se palpe e que se coma...

Da bem aventurança pinta o arcâno;Mas a doutrina só será fecundaQuando o teu Christo se tornar romano........................................

Da bem aventurança pinta o arcâno;

Mas a doutrina só será fecunda

Quando o teu Christo se tornar romano.

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Theophilo Braga

Oh Dante! oh nova aurora da Poesia,Duro juiz da inulta liberdade!Quando entraste dos prantos na Cidade,Perguntaste a Virgilio, ao doce guia:—D'onde vem tal fragrancia e harmonia?Vozes de amor de tanta suavidade?Que se aclara a amplidão da escuridadeSobre o estertor da hórrida agonia?—Viste pairando em nuvem diamantinaVoar Paulo e Francesca, triste e amante;Quizeste ouvir que dôr é que os fulmina.Interrogaste o mestre n'esse instante;Mas respondeu a bella florentina:La bocca me bacció tutto tremante.

Oh Dante! oh nova aurora da Poesia,Duro juiz da inulta liberdade!Quando entraste dos prantos na Cidade,Perguntaste a Virgilio, ao doce guia:—D'onde vem tal fragrancia e harmonia?Vozes de amor de tanta suavidade?Que se aclara a amplidão da escuridadeSobre o estertor da hórrida agonia?—Viste pairando em nuvem diamantinaVoar Paulo e Francesca, triste e amante;Quizeste ouvir que dôr é que os fulmina.Interrogaste o mestre n'esse instante;Mas respondeu a bella florentina:La bocca me bacció tutto tremante.

Oh Dante! oh nova aurora da Poesia,Duro juiz da inulta liberdade!Quando entraste dos prantos na Cidade,Perguntaste a Virgilio, ao doce guia:

Oh Dante! oh nova aurora da Poesia,

Duro juiz da inulta liberdade!

Quando entraste dos prantos na Cidade,

Perguntaste a Virgilio, ao doce guia:

—D'onde vem tal fragrancia e harmonia?Vozes de amor de tanta suavidade?Que se aclara a amplidão da escuridadeSobre o estertor da hórrida agonia?—

—D'onde vem tal fragrancia e harmonia?

Vozes de amor de tanta suavidade?

Que se aclara a amplidão da escuridade

Sobre o estertor da hórrida agonia?—

Viste pairando em nuvem diamantinaVoar Paulo e Francesca, triste e amante;Quizeste ouvir que dôr é que os fulmina.

Viste pairando em nuvem diamantina

Voar Paulo e Francesca, triste e amante;

Quizeste ouvir que dôr é que os fulmina.

Interrogaste o mestre n'esse instante;Mas respondeu a bella florentina:La bocca me bacció tutto tremante.

Interrogaste o mestre n'esse instante;

Mas respondeu a bella florentina:

La bocca me bacció tutto tremante.

Fria, dentro de um féretro estendida,Eu vi passar tambem, d'esta janella,Ai! para sempre e nunca mais, aquellaQue fôra para mim ideal e vida.Ah Vittoria Colonna, não vencida;Vae-se-me da esperança a luz com ella;Sem rumo e sem phanal, d'entre a procellaQue eu fique como a nave já perdida.O espirito se abysma em vacuo immenso,A solidão é vasta mas suffoca;Da dor irremediavel me convenço:Eu pergunto—que mão lethal me toca?Vel-a morta levada... ah scismo e penso:Sem nunca ter beijado aquella bocca!Theophilo Braga.

Fria, dentro de um féretro estendida,Eu vi passar tambem, d'esta janella,Ai! para sempre e nunca mais, aquellaQue fôra para mim ideal e vida.Ah Vittoria Colonna, não vencida;Vae-se-me da esperança a luz com ella;Sem rumo e sem phanal, d'entre a procellaQue eu fique como a nave já perdida.O espirito se abysma em vacuo immenso,A solidão é vasta mas suffoca;Da dor irremediavel me convenço:Eu pergunto—que mão lethal me toca?Vel-a morta levada... ah scismo e penso:Sem nunca ter beijado aquella bocca!Theophilo Braga.

Fria, dentro de um féretro estendida,Eu vi passar tambem, d'esta janella,Ai! para sempre e nunca mais, aquellaQue fôra para mim ideal e vida.

Fria, dentro de um féretro estendida,

Eu vi passar tambem, d'esta janella,

Ai! para sempre e nunca mais, aquella

Que fôra para mim ideal e vida.

Ah Vittoria Colonna, não vencida;Vae-se-me da esperança a luz com ella;Sem rumo e sem phanal, d'entre a procellaQue eu fique como a nave já perdida.

Ah Vittoria Colonna, não vencida;

Vae-se-me da esperança a luz com ella;

Sem rumo e sem phanal, d'entre a procella

Que eu fique como a nave já perdida.

O espirito se abysma em vacuo immenso,A solidão é vasta mas suffoca;Da dor irremediavel me convenço:

O espirito se abysma em vacuo immenso,

A solidão é vasta mas suffoca;

Da dor irremediavel me convenço:

Eu pergunto—que mão lethal me toca?Vel-a morta levada... ah scismo e penso:Sem nunca ter beijado aquella bocca!

Eu pergunto—que mão lethal me toca?

Vel-a morta levada... ah scismo e penso:

Sem nunca ter beijado aquella bocca!

Theophilo Braga.

Theophilo Braga.

(Diante de uma cabeça de Miguel Angelo)

Uma palavra diz toda a desgraça:—Ter por si a rasão, eis o seu crime!—O despota o conhece; busca traçaPara esconder a victima que opprime.Ferros! vossos anneis encadeadosVenham soldal-o para sempre ao muro;Abobadas! calae-lhe ardentes brados,Trevas! summi-o no estertor do escuro.Mas tudo é pouco. O prisioneiro pensaNo rancor do tyranno e adormece;A natureza é mãe: na dor immensaAccolhe o que nas ancias desfallece.Então, em somno longo e descuidosoAos sitios mais queridos d'outras éras,A mente vôa e aviva com repousoPassadas illusões, doces chimeras.Quem cuidará que o inerme prisioneiroEsquecido do peso das algemasOuve os colloquios do amor primeiro?Do adeus final as expressões extremas?Ali lhe transparece sobre os labiosO arpejo ignoto de suave riso,Sereno como a profundez dos sabios,Triste como o luar quando indeciso.Pensa que é livre! o somno é liberdadePara esse a quem nenhum consolo reste;Qual será mais feliz? a auctoridadeNunca logrou um instante como este.Vela o tyranno, tendo álerta os guardas,Entre canhões, muralhas, torres, fossos;Lá quando o somno chega em horas tardas,Ouve ais, vê sangue, estrepitos, destroços:Escuta os gritos surdos da revoltaDo povo que a si mesmo faz justiça;É negro o pezadello, o horror o escolta,Quer despertar, remorso o infeitiça.Este, dormindo, já se sente escravo,Arrastado por praças, com vergonha;Mas quem jaz mudo sob o iniquo aggravoQue é livre, livre, ai prisioneiro, sonha.Qual será mais feliz? um quando dorme,É só para sentir terror, fraqueza;E áquelle que succumbe ao peso enormeDiz-lhe ser livre, a santa natureza.Bem haja a eterna força que lhe inspirasQue não conhece algemas—a vontade!Prepotentes! quebrae ante ella as iras,Embalem-nos os sonhos da verdade.(Junho, 25—1872.)Theophilo Braga.

Uma palavra diz toda a desgraça:—Ter por si a rasão, eis o seu crime!—O despota o conhece; busca traçaPara esconder a victima que opprime.Ferros! vossos anneis encadeadosVenham soldal-o para sempre ao muro;Abobadas! calae-lhe ardentes brados,Trevas! summi-o no estertor do escuro.Mas tudo é pouco. O prisioneiro pensaNo rancor do tyranno e adormece;A natureza é mãe: na dor immensaAccolhe o que nas ancias desfallece.Então, em somno longo e descuidosoAos sitios mais queridos d'outras éras,A mente vôa e aviva com repousoPassadas illusões, doces chimeras.Quem cuidará que o inerme prisioneiroEsquecido do peso das algemasOuve os colloquios do amor primeiro?Do adeus final as expressões extremas?Ali lhe transparece sobre os labiosO arpejo ignoto de suave riso,Sereno como a profundez dos sabios,Triste como o luar quando indeciso.Pensa que é livre! o somno é liberdadePara esse a quem nenhum consolo reste;Qual será mais feliz? a auctoridadeNunca logrou um instante como este.Vela o tyranno, tendo álerta os guardas,Entre canhões, muralhas, torres, fossos;Lá quando o somno chega em horas tardas,Ouve ais, vê sangue, estrepitos, destroços:Escuta os gritos surdos da revoltaDo povo que a si mesmo faz justiça;É negro o pezadello, o horror o escolta,Quer despertar, remorso o infeitiça.Este, dormindo, já se sente escravo,Arrastado por praças, com vergonha;Mas quem jaz mudo sob o iniquo aggravoQue é livre, livre, ai prisioneiro, sonha.Qual será mais feliz? um quando dorme,É só para sentir terror, fraqueza;E áquelle que succumbe ao peso enormeDiz-lhe ser livre, a santa natureza.Bem haja a eterna força que lhe inspirasQue não conhece algemas—a vontade!Prepotentes! quebrae ante ella as iras,Embalem-nos os sonhos da verdade.(Junho, 25—1872.)Theophilo Braga.

Uma palavra diz toda a desgraça:—Ter por si a rasão, eis o seu crime!—O despota o conhece; busca traçaPara esconder a victima que opprime.

Uma palavra diz toda a desgraça:

—Ter por si a rasão, eis o seu crime!—

O despota o conhece; busca traça

Para esconder a victima que opprime.

Ferros! vossos anneis encadeadosVenham soldal-o para sempre ao muro;Abobadas! calae-lhe ardentes brados,Trevas! summi-o no estertor do escuro.

Ferros! vossos anneis encadeados

Venham soldal-o para sempre ao muro;

Abobadas! calae-lhe ardentes brados,

Trevas! summi-o no estertor do escuro.

Mas tudo é pouco. O prisioneiro pensaNo rancor do tyranno e adormece;A natureza é mãe: na dor immensaAccolhe o que nas ancias desfallece.

Mas tudo é pouco. O prisioneiro pensa

No rancor do tyranno e adormece;

A natureza é mãe: na dor immensa

Accolhe o que nas ancias desfallece.

Então, em somno longo e descuidosoAos sitios mais queridos d'outras éras,A mente vôa e aviva com repousoPassadas illusões, doces chimeras.

Então, em somno longo e descuidoso

Aos sitios mais queridos d'outras éras,

A mente vôa e aviva com repouso

Passadas illusões, doces chimeras.

Quem cuidará que o inerme prisioneiroEsquecido do peso das algemasOuve os colloquios do amor primeiro?Do adeus final as expressões extremas?

Quem cuidará que o inerme prisioneiro

Esquecido do peso das algemas

Ouve os colloquios do amor primeiro?

Do adeus final as expressões extremas?

Ali lhe transparece sobre os labiosO arpejo ignoto de suave riso,Sereno como a profundez dos sabios,Triste como o luar quando indeciso.

Ali lhe transparece sobre os labios

O arpejo ignoto de suave riso,

Sereno como a profundez dos sabios,

Triste como o luar quando indeciso.

Pensa que é livre! o somno é liberdadePara esse a quem nenhum consolo reste;Qual será mais feliz? a auctoridadeNunca logrou um instante como este.

Pensa que é livre! o somno é liberdade

Para esse a quem nenhum consolo reste;

Qual será mais feliz? a auctoridade

Nunca logrou um instante como este.

Vela o tyranno, tendo álerta os guardas,Entre canhões, muralhas, torres, fossos;Lá quando o somno chega em horas tardas,Ouve ais, vê sangue, estrepitos, destroços:

Vela o tyranno, tendo álerta os guardas,

Entre canhões, muralhas, torres, fossos;

Lá quando o somno chega em horas tardas,

Ouve ais, vê sangue, estrepitos, destroços:

Escuta os gritos surdos da revoltaDo povo que a si mesmo faz justiça;É negro o pezadello, o horror o escolta,Quer despertar, remorso o infeitiça.

Escuta os gritos surdos da revolta

Do povo que a si mesmo faz justiça;

É negro o pezadello, o horror o escolta,

Quer despertar, remorso o infeitiça.

Este, dormindo, já se sente escravo,Arrastado por praças, com vergonha;Mas quem jaz mudo sob o iniquo aggravoQue é livre, livre, ai prisioneiro, sonha.

Este, dormindo, já se sente escravo,

Arrastado por praças, com vergonha;

Mas quem jaz mudo sob o iniquo aggravo

Que é livre, livre, ai prisioneiro, sonha.

Qual será mais feliz? um quando dorme,É só para sentir terror, fraqueza;E áquelle que succumbe ao peso enormeDiz-lhe ser livre, a santa natureza.

Qual será mais feliz? um quando dorme,

É só para sentir terror, fraqueza;

E áquelle que succumbe ao peso enorme

Diz-lhe ser livre, a santa natureza.

Bem haja a eterna força que lhe inspirasQue não conhece algemas—a vontade!Prepotentes! quebrae ante ella as iras,Embalem-nos os sonhos da verdade.

Bem haja a eterna força que lhe inspiras

Que não conhece algemas—a vontade!

Prepotentes! quebrae ante ella as iras,

Embalem-nos os sonhos da verdade.

(Junho, 25—1872.)Theophilo Braga.

(Junho, 25—1872.)Theophilo Braga.

Como o grande astro, pallido e já frioVae a afundar-se lento no horisonte!Olhos vagos, de extremo desvarioDão um sinistro aspecto áquella fronte!A fronte sombra gélida a cobriuComo os nimbos no vertice do monte;Aguia, que vae morrer sacode as azas,Tal se agitou, e disse então:—Las-Casas!Estás ahi? És sempre o egual amigo,Mais vinculado a mim pela desgraça!Attenta nas palavras que te digo...A custo sae a voz já surda e baça!Um pezo enorme aqui, duro castigo,Me opprime o peito, augmenta e ameaça.Repara, arquejo de agonia e medo,Tira de sobre o peito este penedo!Sim, um penedo! alguem o detem sobreO peito exhausto para meu desdouro;Serei eu como o sapo que se encobreSob a pedra? ou recondito thezouro?Mais opprime! sem ár e luz que sóbreAcovarda-me o pezo d'esse agouro...A pedra o gello seu me communica,E como a pedra o corpo inerte fica!Ouve. Acordei de um sonho longo e aziagoNa vertigem da febre que devora;Prostra-me o pezadello máo, persago,Que me levou alem dos mundos fóra.Por onde eu ia me seguia o estrago,Pude então meu destino ler; e agoraA mim voltei; ah, sobre mim o blocoAssim encontro... E como o palpo e toco!Fatalidade immensa; fim medonho!Menos que Prometheu, do mundo antigo!Como Sysipho á fraga não me opponho,Nem faço como Ajax da rocha abrigo.Sucumbo! escuta o tenebroso sonho,Attenta na visão que aqui te digo,Verás d'onde caíu este penedoDe que fiz pedestal... guarda segredo:

Como o grande astro, pallido e já frioVae a afundar-se lento no horisonte!Olhos vagos, de extremo desvarioDão um sinistro aspecto áquella fronte!A fronte sombra gélida a cobriuComo os nimbos no vertice do monte;Aguia, que vae morrer sacode as azas,Tal se agitou, e disse então:—Las-Casas!Estás ahi? És sempre o egual amigo,Mais vinculado a mim pela desgraça!Attenta nas palavras que te digo...A custo sae a voz já surda e baça!Um pezo enorme aqui, duro castigo,Me opprime o peito, augmenta e ameaça.Repara, arquejo de agonia e medo,Tira de sobre o peito este penedo!Sim, um penedo! alguem o detem sobreO peito exhausto para meu desdouro;Serei eu como o sapo que se encobreSob a pedra? ou recondito thezouro?Mais opprime! sem ár e luz que sóbreAcovarda-me o pezo d'esse agouro...A pedra o gello seu me communica,E como a pedra o corpo inerte fica!Ouve. Acordei de um sonho longo e aziagoNa vertigem da febre que devora;Prostra-me o pezadello máo, persago,Que me levou alem dos mundos fóra.Por onde eu ia me seguia o estrago,Pude então meu destino ler; e agoraA mim voltei; ah, sobre mim o blocoAssim encontro... E como o palpo e toco!Fatalidade immensa; fim medonho!Menos que Prometheu, do mundo antigo!Como Sysipho á fraga não me opponho,Nem faço como Ajax da rocha abrigo.Sucumbo! escuta o tenebroso sonho,Attenta na visão que aqui te digo,Verás d'onde caíu este penedoDe que fiz pedestal... guarda segredo:

Como o grande astro, pallido e já frioVae a afundar-se lento no horisonte!Olhos vagos, de extremo desvarioDão um sinistro aspecto áquella fronte!A fronte sombra gélida a cobriuComo os nimbos no vertice do monte;Aguia, que vae morrer sacode as azas,Tal se agitou, e disse então:—Las-Casas!

Como o grande astro, pallido e já frio

Vae a afundar-se lento no horisonte!

Olhos vagos, de extremo desvario

Dão um sinistro aspecto áquella fronte!

A fronte sombra gélida a cobriu

Como os nimbos no vertice do monte;

Aguia, que vae morrer sacode as azas,

Tal se agitou, e disse então:

—Las-Casas!

Estás ahi? És sempre o egual amigo,Mais vinculado a mim pela desgraça!Attenta nas palavras que te digo...A custo sae a voz já surda e baça!Um pezo enorme aqui, duro castigo,Me opprime o peito, augmenta e ameaça.Repara, arquejo de agonia e medo,Tira de sobre o peito este penedo!

Estás ahi? És sempre o egual amigo,

Mais vinculado a mim pela desgraça!

Attenta nas palavras que te digo...

A custo sae a voz já surda e baça!

Um pezo enorme aqui, duro castigo,

Me opprime o peito, augmenta e ameaça.

Repara, arquejo de agonia e medo,

Tira de sobre o peito este penedo!

Sim, um penedo! alguem o detem sobreO peito exhausto para meu desdouro;Serei eu como o sapo que se encobreSob a pedra? ou recondito thezouro?Mais opprime! sem ár e luz que sóbreAcovarda-me o pezo d'esse agouro...A pedra o gello seu me communica,E como a pedra o corpo inerte fica!

Sim, um penedo! alguem o detem sobre

O peito exhausto para meu desdouro;

Serei eu como o sapo que se encobre

Sob a pedra? ou recondito thezouro?

Mais opprime! sem ár e luz que sóbre

Acovarda-me o pezo d'esse agouro...

A pedra o gello seu me communica,

E como a pedra o corpo inerte fica!

Ouve. Acordei de um sonho longo e aziagoNa vertigem da febre que devora;Prostra-me o pezadello máo, persago,Que me levou alem dos mundos fóra.Por onde eu ia me seguia o estrago,Pude então meu destino ler; e agoraA mim voltei; ah, sobre mim o blocoAssim encontro... E como o palpo e toco!

Ouve. Acordei de um sonho longo e aziago

Na vertigem da febre que devora;

Prostra-me o pezadello máo, persago,

Que me levou alem dos mundos fóra.

Por onde eu ia me seguia o estrago,

Pude então meu destino ler; e agora

A mim voltei; ah, sobre mim o bloco

Assim encontro... E como o palpo e toco!

Fatalidade immensa; fim medonho!Menos que Prometheu, do mundo antigo!Como Sysipho á fraga não me opponho,Nem faço como Ajax da rocha abrigo.Sucumbo! escuta o tenebroso sonho,Attenta na visão que aqui te digo,Verás d'onde caíu este penedoDe que fiz pedestal... guarda segredo:

Fatalidade immensa; fim medonho!

Menos que Prometheu, do mundo antigo!

Como Sysipho á fraga não me opponho,

Nem faço como Ajax da rocha abrigo.

Sucumbo! escuta o tenebroso sonho,

Attenta na visão que aqui te digo,

Verás d'onde caíu este penedo

De que fiz pedestal... guarda segredo:

Vi-me perdido, como outr'ora Dante,Não na floresta escura, mas bem pertoD'uma montanha que encontrei dianteDo passo temerario, vão, incerto;No flanco da montanha, a mais gigante,Deparei antro lóbrego e aberto,Quiz conhecer o goso de ir perdido,E entrei, com esperança, destemido.Era um algar profundo, escuro, mudo,Gotejando a humidade e a doença;Frio, como o terror! e mais que tudoErmo, como o que nunca teve crença!Com a audacia da edade o passo ajudo,Através da visagem feia e densa;Quero ir lá dentro ouvir a PythonissaNa solidão dos que só tem justiça.Era a via subterrea, má, sem tento,Debaixo da Montanha aos céos erguida,Interminavel como o soffrimento,Desconhecida como o entrar da vida.Foi impavido adiante o pensamento,Quem romperia a tétrica avenida?Oh, não foram por certo as alimariasSim, bem o sei, foi geração de Párias.Parecia que o pezo da montanhaJá o sentia no offegar cansado;A crassa escuridão era tamanhaQue ultrapassava os dogmas do peccado.A tristeza que o peito ali me banhaSimilhava a do homem ultrajado;Silencio, egual ao seculo confuso,Que não deixou protesto contra o abuso.E tacteando trépido prosigoComo o que deu por falta, e em vão procura;Mas como a tradição de um tempo antigoParalisou-me uma humidade escura!Senti-me vérme dentro de um jazigo,E vi que a vida quer a luz só pura;E dentro, lá nos infimos cancéllosOuvi ruido como de martellos;Pancadas longas, de quem rompe e escavaNa compacta pedreira e a derruba,O som pela caverna retumbava;Fui avançando! quer eu desça ou subaMais se distingue a varia faina brava,Como o leão, quando sacode a juba!Ais e vivas, lamentos e cantigasSoam como animando nas fadigas.Cheguei mais perto. Vi-os! eram tantos...Cataduras de Cyclopes, de athletas!Rostos sulcados por calados prantos,Peitos transidos por ignotas setas;Na expressão moral, brutos e santos;Tão ingenuos como almas de poetas;Rudes, leaes, e rotos mas contentes;Chamam isto—trabalho—aquellas gentes:Levantavam os malhos contra a rocha,Responde ella com afiadas lascas;E quando no trabalho a força afrouxa,Um canto anima as vacillantes vascas!O canto ou grito da agonia roxa,Çà ira!voz das intimas borrascas,Vinha ao bater dos malhos dar compasso,Trazer alento no mortal cansasso.Muitos caíam já sem força, em terra,Mudos, outros ficavam sepultadosNas barreiras por culpa d'este que erraIndo minar em perigosos lados.Mas que poder sublime o canto encerra!Çà ira!levam eccos prolongados;E ao trabalho de novo metem hombros,Na dor e na coragem sempre assombros.Cheguei mais perto, ao perto dos mineiros:—Oh raças condemnadas ao trabalho,Criadas na fadiga, e os primeirosQue procuraes romper tão duro atalho!E para quem do Golgotha o madeiroSó produziu o secco e esteril galho,Que sentença condemna a essa lutaDe vencerdes a natureza bruta?«Vamos minando o alteroso Monte.Temol-o atravessado pela base!Procuramos a luz d'outro horisonte,Nós sentimol-a! é esta a nossa phrase.Sem um astro que a via nos aponte,Vamos errantes, acertando quasi,Mergulhados no frio e escuridade,Dá-nos calor o ideal da liberdade.«Ha gerações que aqui nasceram méstas;E que se nasce livre aquella ignora!Outra trabalha equiparada ás bestas,E pensa que só vive quando chora.Umas cáem na vala, restam estasNa esperança de achar a nova aurora!Sobre nós a montanha peza horrendaNa tradição de seculos tremenda.«Çà ira!Pois Encélado palpita,Sacudindo a montanha sobre o dorso;A montanha é a tradição maldita,Immovel como os dogmas do remorso,Impassivel como uma lei escripta...Nós proseguimos no baldado esforçoPorque os filhos de nossos filhos vejamA luz que os nossos olhos tanto almejam.«Nós transmittimos o fatal legadoQue herdámos sem saber como nem quando...»E quando olhava para aquelle ladoLá onde oÇà ira!ia levando,De repente ficou tudo calado!Vi transluzir clarão suave e brando...Jôrros de luz, que as trevas longe sómem,Eu conhecí, era—Os Direitos do Homem!Por ti, que gerações foram á valaAfirmando o que a tradição mais nega!E emquanto o pranto em cada rosto falla,E a vêr a claridade cada um chega;Lembrou-me a mim dever eu gradual-a,A diáphana luz que a olhos céga;—Oh, parae um instante! sabei que essaLuz repentina é como a treva espessa.Confiae hoje em mim; que eu vá adianteA vêr se algum abysmo aí está aberto;Quem sae da escuridão não vê distante,Sustae o passo trépido e incerto!—Como entra o mensageiro alegre, ovanteNa Promissão, saindo do dezerto,E emquanto choram n'uma effusão terna,Cheguei então á bocca da caverna.Que mundo extranho, que planicie infinda,Que ár saudável, tépido e fagueiro!Que céo azul, que paizagem linda,A harmonia embalava o mundo inteiro.Bloco enorme de pedra estava aindaNa bocca da caverna sobranceiro,Cresceu-me esta ambição danada minha,E vi a fragil lasca que o sustinha.Á posse d'esse mundo a mente eu alço;Sentí o egoismo de querer tal mundoSó para mim; e eu, misero e falso,Inda escutava o cantico jocundo,De prompto o bloco intrepido descalço!Rolou o pedra da caverna ao fundo;Como se entaipa n'uma furna o urso,Pensei interromper do tempo o curso.Sepultos outra vez deixei em trevasMiseraveis que seculos luctaram;Abafei-te, hymno ardente, que sublevas,Puz um dique aos golphões que extravasaram;Cobri o quadro das angustias sévasQue a tradição e a ordem ameaçaram;Sobre essa pedra eu presenti a gloriaFiz o meu pedestal perante a Historia.Ouves, Las-Casas? choras, fiel amigo?A custo sae-me a voz já surda e baça...O meu destino foi, á força o digo,Missão de um blóco em sua inerte massa.Eu o sinto opprimir-me por castigoO peito, e com seu pezo me ameaça;No estertor de Job, ai se me ouvissem!Melius erat si natus non fuissem.—Como se afunda do alto no oceanoA mó do Apocalypse amaldiçoada,Tal para sempre no desprezo humanoSe imerge essa existencia egoista, errada.Vomitou destruição o ignobil cano,Da morte e do que é morto fez parada!E se a dor sente alivio no improperio,Sirva-lhe de alvo sua vida e imperio!1874Theophilo Braga

Vi-me perdido, como outr'ora Dante,Não na floresta escura, mas bem pertoD'uma montanha que encontrei dianteDo passo temerario, vão, incerto;No flanco da montanha, a mais gigante,Deparei antro lóbrego e aberto,Quiz conhecer o goso de ir perdido,E entrei, com esperança, destemido.Era um algar profundo, escuro, mudo,Gotejando a humidade e a doença;Frio, como o terror! e mais que tudoErmo, como o que nunca teve crença!Com a audacia da edade o passo ajudo,Através da visagem feia e densa;Quero ir lá dentro ouvir a PythonissaNa solidão dos que só tem justiça.Era a via subterrea, má, sem tento,Debaixo da Montanha aos céos erguida,Interminavel como o soffrimento,Desconhecida como o entrar da vida.Foi impavido adiante o pensamento,Quem romperia a tétrica avenida?Oh, não foram por certo as alimariasSim, bem o sei, foi geração de Párias.Parecia que o pezo da montanhaJá o sentia no offegar cansado;A crassa escuridão era tamanhaQue ultrapassava os dogmas do peccado.A tristeza que o peito ali me banhaSimilhava a do homem ultrajado;Silencio, egual ao seculo confuso,Que não deixou protesto contra o abuso.E tacteando trépido prosigoComo o que deu por falta, e em vão procura;Mas como a tradição de um tempo antigoParalisou-me uma humidade escura!Senti-me vérme dentro de um jazigo,E vi que a vida quer a luz só pura;E dentro, lá nos infimos cancéllosOuvi ruido como de martellos;Pancadas longas, de quem rompe e escavaNa compacta pedreira e a derruba,O som pela caverna retumbava;Fui avançando! quer eu desça ou subaMais se distingue a varia faina brava,Como o leão, quando sacode a juba!Ais e vivas, lamentos e cantigasSoam como animando nas fadigas.Cheguei mais perto. Vi-os! eram tantos...Cataduras de Cyclopes, de athletas!Rostos sulcados por calados prantos,Peitos transidos por ignotas setas;Na expressão moral, brutos e santos;Tão ingenuos como almas de poetas;Rudes, leaes, e rotos mas contentes;Chamam isto—trabalho—aquellas gentes:Levantavam os malhos contra a rocha,Responde ella com afiadas lascas;E quando no trabalho a força afrouxa,Um canto anima as vacillantes vascas!O canto ou grito da agonia roxa,Çà ira!voz das intimas borrascas,Vinha ao bater dos malhos dar compasso,Trazer alento no mortal cansasso.Muitos caíam já sem força, em terra,Mudos, outros ficavam sepultadosNas barreiras por culpa d'este que erraIndo minar em perigosos lados.Mas que poder sublime o canto encerra!Çà ira!levam eccos prolongados;E ao trabalho de novo metem hombros,Na dor e na coragem sempre assombros.Cheguei mais perto, ao perto dos mineiros:—Oh raças condemnadas ao trabalho,Criadas na fadiga, e os primeirosQue procuraes romper tão duro atalho!E para quem do Golgotha o madeiroSó produziu o secco e esteril galho,Que sentença condemna a essa lutaDe vencerdes a natureza bruta?«Vamos minando o alteroso Monte.Temol-o atravessado pela base!Procuramos a luz d'outro horisonte,Nós sentimol-a! é esta a nossa phrase.Sem um astro que a via nos aponte,Vamos errantes, acertando quasi,Mergulhados no frio e escuridade,Dá-nos calor o ideal da liberdade.«Ha gerações que aqui nasceram méstas;E que se nasce livre aquella ignora!Outra trabalha equiparada ás bestas,E pensa que só vive quando chora.Umas cáem na vala, restam estasNa esperança de achar a nova aurora!Sobre nós a montanha peza horrendaNa tradição de seculos tremenda.«Çà ira!Pois Encélado palpita,Sacudindo a montanha sobre o dorso;A montanha é a tradição maldita,Immovel como os dogmas do remorso,Impassivel como uma lei escripta...Nós proseguimos no baldado esforçoPorque os filhos de nossos filhos vejamA luz que os nossos olhos tanto almejam.«Nós transmittimos o fatal legadoQue herdámos sem saber como nem quando...»E quando olhava para aquelle ladoLá onde oÇà ira!ia levando,De repente ficou tudo calado!Vi transluzir clarão suave e brando...Jôrros de luz, que as trevas longe sómem,Eu conhecí, era—Os Direitos do Homem!Por ti, que gerações foram á valaAfirmando o que a tradição mais nega!E emquanto o pranto em cada rosto falla,E a vêr a claridade cada um chega;Lembrou-me a mim dever eu gradual-a,A diáphana luz que a olhos céga;—Oh, parae um instante! sabei que essaLuz repentina é como a treva espessa.Confiae hoje em mim; que eu vá adianteA vêr se algum abysmo aí está aberto;Quem sae da escuridão não vê distante,Sustae o passo trépido e incerto!—Como entra o mensageiro alegre, ovanteNa Promissão, saindo do dezerto,E emquanto choram n'uma effusão terna,Cheguei então á bocca da caverna.Que mundo extranho, que planicie infinda,Que ár saudável, tépido e fagueiro!Que céo azul, que paizagem linda,A harmonia embalava o mundo inteiro.Bloco enorme de pedra estava aindaNa bocca da caverna sobranceiro,Cresceu-me esta ambição danada minha,E vi a fragil lasca que o sustinha.Á posse d'esse mundo a mente eu alço;Sentí o egoismo de querer tal mundoSó para mim; e eu, misero e falso,Inda escutava o cantico jocundo,De prompto o bloco intrepido descalço!Rolou o pedra da caverna ao fundo;Como se entaipa n'uma furna o urso,Pensei interromper do tempo o curso.Sepultos outra vez deixei em trevasMiseraveis que seculos luctaram;Abafei-te, hymno ardente, que sublevas,Puz um dique aos golphões que extravasaram;Cobri o quadro das angustias sévasQue a tradição e a ordem ameaçaram;Sobre essa pedra eu presenti a gloriaFiz o meu pedestal perante a Historia.Ouves, Las-Casas? choras, fiel amigo?A custo sae-me a voz já surda e baça...O meu destino foi, á força o digo,Missão de um blóco em sua inerte massa.Eu o sinto opprimir-me por castigoO peito, e com seu pezo me ameaça;No estertor de Job, ai se me ouvissem!Melius erat si natus non fuissem.—Como se afunda do alto no oceanoA mó do Apocalypse amaldiçoada,Tal para sempre no desprezo humanoSe imerge essa existencia egoista, errada.Vomitou destruição o ignobil cano,Da morte e do que é morto fez parada!E se a dor sente alivio no improperio,Sirva-lhe de alvo sua vida e imperio!1874Theophilo Braga

Vi-me perdido, como outr'ora Dante,Não na floresta escura, mas bem pertoD'uma montanha que encontrei dianteDo passo temerario, vão, incerto;No flanco da montanha, a mais gigante,Deparei antro lóbrego e aberto,Quiz conhecer o goso de ir perdido,E entrei, com esperança, destemido.

Vi-me perdido, como outr'ora Dante,

Não na floresta escura, mas bem perto

D'uma montanha que encontrei diante

Do passo temerario, vão, incerto;

No flanco da montanha, a mais gigante,

Deparei antro lóbrego e aberto,

Quiz conhecer o goso de ir perdido,

E entrei, com esperança, destemido.

Era um algar profundo, escuro, mudo,Gotejando a humidade e a doença;Frio, como o terror! e mais que tudoErmo, como o que nunca teve crença!Com a audacia da edade o passo ajudo,Através da visagem feia e densa;Quero ir lá dentro ouvir a PythonissaNa solidão dos que só tem justiça.

Era um algar profundo, escuro, mudo,

Gotejando a humidade e a doença;

Frio, como o terror! e mais que tudo

Ermo, como o que nunca teve crença!

Com a audacia da edade o passo ajudo,

Através da visagem feia e densa;

Quero ir lá dentro ouvir a Pythonissa

Na solidão dos que só tem justiça.

Era a via subterrea, má, sem tento,Debaixo da Montanha aos céos erguida,Interminavel como o soffrimento,Desconhecida como o entrar da vida.Foi impavido adiante o pensamento,Quem romperia a tétrica avenida?Oh, não foram por certo as alimariasSim, bem o sei, foi geração de Párias.

Era a via subterrea, má, sem tento,

Debaixo da Montanha aos céos erguida,

Interminavel como o soffrimento,

Desconhecida como o entrar da vida.

Foi impavido adiante o pensamento,

Quem romperia a tétrica avenida?

Oh, não foram por certo as alimarias

Sim, bem o sei, foi geração de Párias.

Parecia que o pezo da montanhaJá o sentia no offegar cansado;A crassa escuridão era tamanhaQue ultrapassava os dogmas do peccado.A tristeza que o peito ali me banhaSimilhava a do homem ultrajado;Silencio, egual ao seculo confuso,Que não deixou protesto contra o abuso.

Parecia que o pezo da montanha

Já o sentia no offegar cansado;

A crassa escuridão era tamanha

Que ultrapassava os dogmas do peccado.

A tristeza que o peito ali me banha

Similhava a do homem ultrajado;

Silencio, egual ao seculo confuso,

Que não deixou protesto contra o abuso.

E tacteando trépido prosigoComo o que deu por falta, e em vão procura;Mas como a tradição de um tempo antigoParalisou-me uma humidade escura!Senti-me vérme dentro de um jazigo,E vi que a vida quer a luz só pura;E dentro, lá nos infimos cancéllosOuvi ruido como de martellos;

E tacteando trépido prosigo

Como o que deu por falta, e em vão procura;

Mas como a tradição de um tempo antigo

Paralisou-me uma humidade escura!

Senti-me vérme dentro de um jazigo,

E vi que a vida quer a luz só pura;

E dentro, lá nos infimos cancéllos

Ouvi ruido como de martellos;

Pancadas longas, de quem rompe e escavaNa compacta pedreira e a derruba,O som pela caverna retumbava;Fui avançando! quer eu desça ou subaMais se distingue a varia faina brava,Como o leão, quando sacode a juba!Ais e vivas, lamentos e cantigasSoam como animando nas fadigas.

Pancadas longas, de quem rompe e escava

Na compacta pedreira e a derruba,

O som pela caverna retumbava;

Fui avançando! quer eu desça ou suba

Mais se distingue a varia faina brava,

Como o leão, quando sacode a juba!

Ais e vivas, lamentos e cantigas

Soam como animando nas fadigas.

Cheguei mais perto. Vi-os! eram tantos...Cataduras de Cyclopes, de athletas!Rostos sulcados por calados prantos,Peitos transidos por ignotas setas;Na expressão moral, brutos e santos;Tão ingenuos como almas de poetas;Rudes, leaes, e rotos mas contentes;Chamam isto—trabalho—aquellas gentes:

Cheguei mais perto. Vi-os! eram tantos...

Cataduras de Cyclopes, de athletas!

Rostos sulcados por calados prantos,

Peitos transidos por ignotas setas;

Na expressão moral, brutos e santos;

Tão ingenuos como almas de poetas;

Rudes, leaes, e rotos mas contentes;

Chamam isto—trabalho—aquellas gentes:

Levantavam os malhos contra a rocha,Responde ella com afiadas lascas;E quando no trabalho a força afrouxa,Um canto anima as vacillantes vascas!O canto ou grito da agonia roxa,Çà ira!voz das intimas borrascas,Vinha ao bater dos malhos dar compasso,Trazer alento no mortal cansasso.

Levantavam os malhos contra a rocha,

Responde ella com afiadas lascas;

E quando no trabalho a força afrouxa,

Um canto anima as vacillantes vascas!

O canto ou grito da agonia roxa,

Çà ira!voz das intimas borrascas,

Vinha ao bater dos malhos dar compasso,

Trazer alento no mortal cansasso.

Muitos caíam já sem força, em terra,Mudos, outros ficavam sepultadosNas barreiras por culpa d'este que erraIndo minar em perigosos lados.Mas que poder sublime o canto encerra!Çà ira!levam eccos prolongados;E ao trabalho de novo metem hombros,Na dor e na coragem sempre assombros.

Muitos caíam já sem força, em terra,

Mudos, outros ficavam sepultados

Nas barreiras por culpa d'este que erra

Indo minar em perigosos lados.

Mas que poder sublime o canto encerra!

Çà ira!levam eccos prolongados;

E ao trabalho de novo metem hombros,

Na dor e na coragem sempre assombros.

Cheguei mais perto, ao perto dos mineiros:—Oh raças condemnadas ao trabalho,Criadas na fadiga, e os primeirosQue procuraes romper tão duro atalho!E para quem do Golgotha o madeiroSó produziu o secco e esteril galho,Que sentença condemna a essa lutaDe vencerdes a natureza bruta?

Cheguei mais perto, ao perto dos mineiros:

—Oh raças condemnadas ao trabalho,

Criadas na fadiga, e os primeiros

Que procuraes romper tão duro atalho!

E para quem do Golgotha o madeiro

Só produziu o secco e esteril galho,

Que sentença condemna a essa luta

De vencerdes a natureza bruta?

«Vamos minando o alteroso Monte.Temol-o atravessado pela base!Procuramos a luz d'outro horisonte,Nós sentimol-a! é esta a nossa phrase.Sem um astro que a via nos aponte,Vamos errantes, acertando quasi,Mergulhados no frio e escuridade,Dá-nos calor o ideal da liberdade.

«Vamos minando o alteroso Monte.

Temol-o atravessado pela base!

Procuramos a luz d'outro horisonte,

Nós sentimol-a! é esta a nossa phrase.

Sem um astro que a via nos aponte,

Vamos errantes, acertando quasi,

Mergulhados no frio e escuridade,

Dá-nos calor o ideal da liberdade.

«Ha gerações que aqui nasceram méstas;E que se nasce livre aquella ignora!Outra trabalha equiparada ás bestas,E pensa que só vive quando chora.Umas cáem na vala, restam estasNa esperança de achar a nova aurora!Sobre nós a montanha peza horrendaNa tradição de seculos tremenda.

«Ha gerações que aqui nasceram méstas;

E que se nasce livre aquella ignora!

Outra trabalha equiparada ás bestas,

E pensa que só vive quando chora.

Umas cáem na vala, restam estas

Na esperança de achar a nova aurora!

Sobre nós a montanha peza horrenda

Na tradição de seculos tremenda.

«Çà ira!Pois Encélado palpita,Sacudindo a montanha sobre o dorso;A montanha é a tradição maldita,Immovel como os dogmas do remorso,Impassivel como uma lei escripta...Nós proseguimos no baldado esforçoPorque os filhos de nossos filhos vejamA luz que os nossos olhos tanto almejam.

«Çà ira!Pois Encélado palpita,

Sacudindo a montanha sobre o dorso;

A montanha é a tradição maldita,

Immovel como os dogmas do remorso,

Impassivel como uma lei escripta...

Nós proseguimos no baldado esforço

Porque os filhos de nossos filhos vejam

A luz que os nossos olhos tanto almejam.

«Nós transmittimos o fatal legadoQue herdámos sem saber como nem quando...»E quando olhava para aquelle ladoLá onde oÇà ira!ia levando,De repente ficou tudo calado!Vi transluzir clarão suave e brando...Jôrros de luz, que as trevas longe sómem,Eu conhecí, era—Os Direitos do Homem!

«Nós transmittimos o fatal legado

Que herdámos sem saber como nem quando...»

E quando olhava para aquelle lado

Lá onde oÇà ira!ia levando,

De repente ficou tudo calado!

Vi transluzir clarão suave e brando...

Jôrros de luz, que as trevas longe sómem,

Eu conhecí, era—Os Direitos do Homem!

Por ti, que gerações foram á valaAfirmando o que a tradição mais nega!E emquanto o pranto em cada rosto falla,E a vêr a claridade cada um chega;Lembrou-me a mim dever eu gradual-a,A diáphana luz que a olhos céga;—Oh, parae um instante! sabei que essaLuz repentina é como a treva espessa.

Por ti, que gerações foram á vala

Afirmando o que a tradição mais nega!

E emquanto o pranto em cada rosto falla,

E a vêr a claridade cada um chega;

Lembrou-me a mim dever eu gradual-a,

A diáphana luz que a olhos céga;

—Oh, parae um instante! sabei que essa

Luz repentina é como a treva espessa.

Confiae hoje em mim; que eu vá adianteA vêr se algum abysmo aí está aberto;Quem sae da escuridão não vê distante,Sustae o passo trépido e incerto!—Como entra o mensageiro alegre, ovanteNa Promissão, saindo do dezerto,E emquanto choram n'uma effusão terna,Cheguei então á bocca da caverna.

Confiae hoje em mim; que eu vá adiante

A vêr se algum abysmo aí está aberto;

Quem sae da escuridão não vê distante,

Sustae o passo trépido e incerto!—

Como entra o mensageiro alegre, ovante

Na Promissão, saindo do dezerto,

E emquanto choram n'uma effusão terna,

Cheguei então á bocca da caverna.

Que mundo extranho, que planicie infinda,Que ár saudável, tépido e fagueiro!Que céo azul, que paizagem linda,A harmonia embalava o mundo inteiro.Bloco enorme de pedra estava aindaNa bocca da caverna sobranceiro,Cresceu-me esta ambição danada minha,E vi a fragil lasca que o sustinha.

Que mundo extranho, que planicie infinda,

Que ár saudável, tépido e fagueiro!

Que céo azul, que paizagem linda,

A harmonia embalava o mundo inteiro.

Bloco enorme de pedra estava ainda

Na bocca da caverna sobranceiro,

Cresceu-me esta ambição danada minha,

E vi a fragil lasca que o sustinha.

Á posse d'esse mundo a mente eu alço;Sentí o egoismo de querer tal mundoSó para mim; e eu, misero e falso,Inda escutava o cantico jocundo,De prompto o bloco intrepido descalço!Rolou o pedra da caverna ao fundo;Como se entaipa n'uma furna o urso,Pensei interromper do tempo o curso.

Á posse d'esse mundo a mente eu alço;

Sentí o egoismo de querer tal mundo

Só para mim; e eu, misero e falso,

Inda escutava o cantico jocundo,

De prompto o bloco intrepido descalço!

Rolou o pedra da caverna ao fundo;

Como se entaipa n'uma furna o urso,

Pensei interromper do tempo o curso.

Sepultos outra vez deixei em trevasMiseraveis que seculos luctaram;Abafei-te, hymno ardente, que sublevas,Puz um dique aos golphões que extravasaram;Cobri o quadro das angustias sévasQue a tradição e a ordem ameaçaram;Sobre essa pedra eu presenti a gloriaFiz o meu pedestal perante a Historia.

Sepultos outra vez deixei em trevas

Miseraveis que seculos luctaram;

Abafei-te, hymno ardente, que sublevas,

Puz um dique aos golphões que extravasaram;

Cobri o quadro das angustias sévas

Que a tradição e a ordem ameaçaram;

Sobre essa pedra eu presenti a gloria

Fiz o meu pedestal perante a Historia.

Ouves, Las-Casas? choras, fiel amigo?A custo sae-me a voz já surda e baça...O meu destino foi, á força o digo,Missão de um blóco em sua inerte massa.Eu o sinto opprimir-me por castigoO peito, e com seu pezo me ameaça;No estertor de Job, ai se me ouvissem!Melius erat si natus non fuissem.—

Ouves, Las-Casas? choras, fiel amigo?

A custo sae-me a voz já surda e baça...

O meu destino foi, á força o digo,

Missão de um blóco em sua inerte massa.

Eu o sinto opprimir-me por castigo

O peito, e com seu pezo me ameaça;

No estertor de Job, ai se me ouvissem!

Melius erat si natus non fuissem.—

Como se afunda do alto no oceanoA mó do Apocalypse amaldiçoada,Tal para sempre no desprezo humanoSe imerge essa existencia egoista, errada.Vomitou destruição o ignobil cano,Da morte e do que é morto fez parada!E se a dor sente alivio no improperio,Sirva-lhe de alvo sua vida e imperio!

Como se afunda do alto no oceano

A mó do Apocalypse amaldiçoada,

Tal para sempre no desprezo humano

Se imerge essa existencia egoista, errada.

Vomitou destruição o ignobil cano,

Da morte e do que é morto fez parada!

E se a dor sente alivio no improperio,

Sirva-lhe de alvo sua vida e imperio!

1874Theophilo Braga

1874Theophilo Braga

Oh santas, que embalaes os berços das crianças,E assim lh'o revestis de floreas esperanças;Que andaes sempre a cuidar das almas por abrir,E a verter-lhes no seio o germen do porvir!Sois vós que, pela mão, da gloria á vida inquietaLevaes um vosso filho, um pallido propheta,Que é Newton ou Petrarcha, Angelo ou Raphael,Com o pincel e a pena, o compasso e o cinzel,Fazendo enobrecer quem lhes seguir o exemplo!Sois vós que o conduzis ao portico do temploOnde o porvir corôa os genios immortaes,E mal chegadas lá de todo o abandonaesSem aguardar sequer, nas sombras d'uma arcada,A grande acclamação que festeja a entrada!E modestas que sois! tornaes a vosso larE só vos contentaes em vel-o atravessarCoroada de laureis a frente scismadora,Um arco triumphal, que o cérca d'uma aurora.Mas nós, cabeças vans, escravos pelo amor,Andamos a dizer; «Beatriz! Leonor!»E o nome vosso, oh mães, não lembra um só instante.Quem sabe o nome vosso, oh mães de Tasso e Dante?Oh santas! perdoae; lá tendes o SenhorQue vos cobre de luz, de bençãos e de amor,Fazendo abrir ao sol as vossas esperanças!Oh santas, emballae o berço das crianças!1864Guilherme Braga,Grinaldat. V, p. 25.

Oh santas, que embalaes os berços das crianças,E assim lh'o revestis de floreas esperanças;Que andaes sempre a cuidar das almas por abrir,E a verter-lhes no seio o germen do porvir!Sois vós que, pela mão, da gloria á vida inquietaLevaes um vosso filho, um pallido propheta,Que é Newton ou Petrarcha, Angelo ou Raphael,Com o pincel e a pena, o compasso e o cinzel,Fazendo enobrecer quem lhes seguir o exemplo!Sois vós que o conduzis ao portico do temploOnde o porvir corôa os genios immortaes,E mal chegadas lá de todo o abandonaesSem aguardar sequer, nas sombras d'uma arcada,A grande acclamação que festeja a entrada!E modestas que sois! tornaes a vosso larE só vos contentaes em vel-o atravessarCoroada de laureis a frente scismadora,Um arco triumphal, que o cérca d'uma aurora.Mas nós, cabeças vans, escravos pelo amor,Andamos a dizer; «Beatriz! Leonor!»E o nome vosso, oh mães, não lembra um só instante.Quem sabe o nome vosso, oh mães de Tasso e Dante?Oh santas! perdoae; lá tendes o SenhorQue vos cobre de luz, de bençãos e de amor,Fazendo abrir ao sol as vossas esperanças!Oh santas, emballae o berço das crianças!1864Guilherme Braga,Grinaldat. V, p. 25.

Oh santas, que embalaes os berços das crianças,E assim lh'o revestis de floreas esperanças;Que andaes sempre a cuidar das almas por abrir,E a verter-lhes no seio o germen do porvir!Sois vós que, pela mão, da gloria á vida inquietaLevaes um vosso filho, um pallido propheta,Que é Newton ou Petrarcha, Angelo ou Raphael,Com o pincel e a pena, o compasso e o cinzel,Fazendo enobrecer quem lhes seguir o exemplo!Sois vós que o conduzis ao portico do temploOnde o porvir corôa os genios immortaes,E mal chegadas lá de todo o abandonaesSem aguardar sequer, nas sombras d'uma arcada,A grande acclamação que festeja a entrada!E modestas que sois! tornaes a vosso larE só vos contentaes em vel-o atravessarCoroada de laureis a frente scismadora,Um arco triumphal, que o cérca d'uma aurora.Mas nós, cabeças vans, escravos pelo amor,Andamos a dizer; «Beatriz! Leonor!»E o nome vosso, oh mães, não lembra um só instante.Quem sabe o nome vosso, oh mães de Tasso e Dante?

Oh santas, que embalaes os berços das crianças,

E assim lh'o revestis de floreas esperanças;

Que andaes sempre a cuidar das almas por abrir,

E a verter-lhes no seio o germen do porvir!

Sois vós que, pela mão, da gloria á vida inquieta

Levaes um vosso filho, um pallido propheta,

Que é Newton ou Petrarcha, Angelo ou Raphael,

Com o pincel e a pena, o compasso e o cinzel,

Fazendo enobrecer quem lhes seguir o exemplo!

Sois vós que o conduzis ao portico do templo

Onde o porvir corôa os genios immortaes,

E mal chegadas lá de todo o abandonaes

Sem aguardar sequer, nas sombras d'uma arcada,

A grande acclamação que festeja a entrada!

E modestas que sois! tornaes a vosso lar

E só vos contentaes em vel-o atravessar

Coroada de laureis a frente scismadora,

Um arco triumphal, que o cérca d'uma aurora.

Mas nós, cabeças vans, escravos pelo amor,

Andamos a dizer; «Beatriz! Leonor!»

E o nome vosso, oh mães, não lembra um só instante.

Quem sabe o nome vosso, oh mães de Tasso e Dante?

Oh santas! perdoae; lá tendes o SenhorQue vos cobre de luz, de bençãos e de amor,Fazendo abrir ao sol as vossas esperanças!Oh santas, emballae o berço das crianças!

Oh santas! perdoae; lá tendes o Senhor

Que vos cobre de luz, de bençãos e de amor,

Fazendo abrir ao sol as vossas esperanças!

Oh santas, emballae o berço das crianças!

1864Guilherme Braga,Grinaldat. V, p. 25.

1864Guilherme Braga,Grinaldat. V, p. 25.

Era da Terra-Nova: um formidavel cão.O homem que m'o vendeu, chamava-lhe—Sultão,E creio que o trazia ha dois annos comsigo;Eu só lh'o quiz comprar para ter um amigo ...Depois que lh'o paguei, o soberbo animalLançou-lhe um triste olhar d'estes que fazem mal,Que envolvem um adeus, talvez o derradeiro!O dono, distrahido a contar o dinheiro,Nem mesmo reparou n'essa muda afflícção,E disse-me a sorrir; «É um bravo, este Sultão!Bem nutrido e leal: dedicado e robusto!Mas... pode acreditar que lh'o dou pelo custo...Já me salvou a vida uma vez no alto mar.»Disse isto, e cortejou-me e partiu...A scismarN'aquella ingratidão, que tantas me recorda,Do pescoço do cão desamarrando a corda,Em voz alta eu bradei: Bem o dizias tu,Oh poeta immortal:Le chien c'est la vertuQui ne pouvant se faire homme, s'est faite bête.E como em todo o olhar uma alma se reflecte,A alma d'aquelle sêr que vinha atraz de mim...Curvo, humilde, ou talvez resignado por fim,No olhar que então lhe vi, das sombras do seu nadaParecia dízer-me:—Obrigada, obrigada!1866Guilherme Braga,Heras e Violetas, p. 239. Porto, 1869.

Era da Terra-Nova: um formidavel cão.O homem que m'o vendeu, chamava-lhe—Sultão,E creio que o trazia ha dois annos comsigo;Eu só lh'o quiz comprar para ter um amigo ...Depois que lh'o paguei, o soberbo animalLançou-lhe um triste olhar d'estes que fazem mal,Que envolvem um adeus, talvez o derradeiro!O dono, distrahido a contar o dinheiro,Nem mesmo reparou n'essa muda afflícção,E disse-me a sorrir; «É um bravo, este Sultão!Bem nutrido e leal: dedicado e robusto!Mas... pode acreditar que lh'o dou pelo custo...Já me salvou a vida uma vez no alto mar.»Disse isto, e cortejou-me e partiu...A scismarN'aquella ingratidão, que tantas me recorda,Do pescoço do cão desamarrando a corda,Em voz alta eu bradei: Bem o dizias tu,Oh poeta immortal:Le chien c'est la vertuQui ne pouvant se faire homme, s'est faite bête.E como em todo o olhar uma alma se reflecte,A alma d'aquelle sêr que vinha atraz de mim...Curvo, humilde, ou talvez resignado por fim,No olhar que então lhe vi, das sombras do seu nadaParecia dízer-me:—Obrigada, obrigada!1866Guilherme Braga,Heras e Violetas, p. 239. Porto, 1869.

Era da Terra-Nova: um formidavel cão.O homem que m'o vendeu, chamava-lhe—Sultão,E creio que o trazia ha dois annos comsigo;Eu só lh'o quiz comprar para ter um amigo ...

Era da Terra-Nova: um formidavel cão.

O homem que m'o vendeu, chamava-lhe—Sultão,

E creio que o trazia ha dois annos comsigo;

Eu só lh'o quiz comprar para ter um amigo ...

Depois que lh'o paguei, o soberbo animalLançou-lhe um triste olhar d'estes que fazem mal,Que envolvem um adeus, talvez o derradeiro!O dono, distrahido a contar o dinheiro,Nem mesmo reparou n'essa muda afflícção,E disse-me a sorrir; «É um bravo, este Sultão!Bem nutrido e leal: dedicado e robusto!Mas... pode acreditar que lh'o dou pelo custo...Já me salvou a vida uma vez no alto mar.»Disse isto, e cortejou-me e partiu...A scismarN'aquella ingratidão, que tantas me recorda,Do pescoço do cão desamarrando a corda,Em voz alta eu bradei: Bem o dizias tu,Oh poeta immortal:Le chien c'est la vertuQui ne pouvant se faire homme, s'est faite bête.E como em todo o olhar uma alma se reflecte,A alma d'aquelle sêr que vinha atraz de mim...Curvo, humilde, ou talvez resignado por fim,No olhar que então lhe vi, das sombras do seu nadaParecia dízer-me:—Obrigada, obrigada!

Depois que lh'o paguei, o soberbo animal

Lançou-lhe um triste olhar d'estes que fazem mal,

Que envolvem um adeus, talvez o derradeiro!

O dono, distrahido a contar o dinheiro,

Nem mesmo reparou n'essa muda afflícção,

E disse-me a sorrir; «É um bravo, este Sultão!

Bem nutrido e leal: dedicado e robusto!

Mas... pode acreditar que lh'o dou pelo custo...

Já me salvou a vida uma vez no alto mar.»

Disse isto, e cortejou-me e partiu...

A scismar

N'aquella ingratidão, que tantas me recorda,

Do pescoço do cão desamarrando a corda,

Em voz alta eu bradei: Bem o dizias tu,

Oh poeta immortal:Le chien c'est la vertu

Qui ne pouvant se faire homme, s'est faite bête.

E como em todo o olhar uma alma se reflecte,

A alma d'aquelle sêr que vinha atraz de mim...

Curvo, humilde, ou talvez resignado por fim,

No olhar que então lhe vi, das sombras do seu nada

Parecia dízer-me:—Obrigada, obrigada!

1866Guilherme Braga,Heras e Violetas, p. 239. Porto, 1869.

1866Guilherme Braga,Heras e Violetas, p. 239. Porto, 1869.

Quando ao cair das sombras, o sol já semi-mortoTornava côr das rosas o anil do mar EgeoOnde veleiras cymbas singravam para o portoAbrindo as azas brancas, como as aves do céo;Do promontorio Sunium ao viso magestoso,Que banha o pé nas aguas, ascendia Platão;E, como lendo as folhas de um livro mysteriosoDerramava seus olhos na infinita amplidão...O sol desce! o sol desce! seu derradeiro lumeDiz aos montes e ás vagas melancolico adeus,E o sabio sempre immovel no purpurado cume,Com a vista no espaço finge a estatua de um deus.Sobre a roca de Egina, vem surgindo a seu turnoVésper, tingindo as aguas de azulado fulgor;As estrelas despontam, e o sabio taciturnoCom o dedo nos labios pensa no infindo Amor.Mas, eil-o que estremece! n'um transporte impetuosoDo seu negro, amplo manto se desembuça então,Depois estende os braços ao plaino rumoroso,E brada, erguendo os olhos á etherea solidão:«D'este grande poema, portentos, harmonias,D'esta hora, só d'esta hora, mysteriosa assim,Só d'esta hora de doces e santas alegrias,Eu aprendo o que podes, oh Potencia sem fim!És tu, oh Natureza que a rigidez me ensinas,Que os sophistas da Eschola, na Eschola assombrará,Em ti bebo a Sciencia, que das coisas divinasTenho, que o mundo busca, mas no mundo não ha!Que logar fica á duvida em corações, que o effeitoMago d'estes momentos faz d'amor palpitar?Oh virações do empyreo, purificae-me o peito,Para que os meus bons Genios o possam habitar.Descei, oh meus patronos! descei do excelso empyreo!Já minha alma está pura! homem novo já sou!Não pezam em mim sombras e duvida e delirio!A luz da eterna aurora para mim já raiou.Chamma d'amor celeste me aquece a intelligencia,Minha rasão, qual aguia, paira no extremo céo,E, á luz mysteriosa da minha consciencia,Vejo através da tumba, da morte rasgo o véo!Immortal! que presagios. Immortal! que delirio,Immortal! que alegrias. Que crêr e que esperar!Purificae-me o peito, vós, virações do empyreo,Para que os meus bons Genios lá possam habitar!»Diz—e do Promontorio deixa o cume elevado,Que dos Genios da Noite já cercam turbilhões,E, ao rir da nova aurora, com a voz de inspirado,Descreve á turba absorta suas grandes visões!1871Leonel de Sampaio(Vicente de Faria)Grinalda, vol. III, p. 88.

Quando ao cair das sombras, o sol já semi-mortoTornava côr das rosas o anil do mar EgeoOnde veleiras cymbas singravam para o portoAbrindo as azas brancas, como as aves do céo;Do promontorio Sunium ao viso magestoso,Que banha o pé nas aguas, ascendia Platão;E, como lendo as folhas de um livro mysteriosoDerramava seus olhos na infinita amplidão...O sol desce! o sol desce! seu derradeiro lumeDiz aos montes e ás vagas melancolico adeus,E o sabio sempre immovel no purpurado cume,Com a vista no espaço finge a estatua de um deus.Sobre a roca de Egina, vem surgindo a seu turnoVésper, tingindo as aguas de azulado fulgor;As estrelas despontam, e o sabio taciturnoCom o dedo nos labios pensa no infindo Amor.Mas, eil-o que estremece! n'um transporte impetuosoDo seu negro, amplo manto se desembuça então,Depois estende os braços ao plaino rumoroso,E brada, erguendo os olhos á etherea solidão:«D'este grande poema, portentos, harmonias,D'esta hora, só d'esta hora, mysteriosa assim,Só d'esta hora de doces e santas alegrias,Eu aprendo o que podes, oh Potencia sem fim!És tu, oh Natureza que a rigidez me ensinas,Que os sophistas da Eschola, na Eschola assombrará,Em ti bebo a Sciencia, que das coisas divinasTenho, que o mundo busca, mas no mundo não ha!Que logar fica á duvida em corações, que o effeitoMago d'estes momentos faz d'amor palpitar?Oh virações do empyreo, purificae-me o peito,Para que os meus bons Genios o possam habitar.Descei, oh meus patronos! descei do excelso empyreo!Já minha alma está pura! homem novo já sou!Não pezam em mim sombras e duvida e delirio!A luz da eterna aurora para mim já raiou.Chamma d'amor celeste me aquece a intelligencia,Minha rasão, qual aguia, paira no extremo céo,E, á luz mysteriosa da minha consciencia,Vejo através da tumba, da morte rasgo o véo!Immortal! que presagios. Immortal! que delirio,Immortal! que alegrias. Que crêr e que esperar!Purificae-me o peito, vós, virações do empyreo,Para que os meus bons Genios lá possam habitar!»Diz—e do Promontorio deixa o cume elevado,Que dos Genios da Noite já cercam turbilhões,E, ao rir da nova aurora, com a voz de inspirado,Descreve á turba absorta suas grandes visões!1871Leonel de Sampaio(Vicente de Faria)Grinalda, vol. III, p. 88.

Quando ao cair das sombras, o sol já semi-mortoTornava côr das rosas o anil do mar EgeoOnde veleiras cymbas singravam para o portoAbrindo as azas brancas, como as aves do céo;

Quando ao cair das sombras, o sol já semi-morto

Tornava côr das rosas o anil do mar Egeo

Onde veleiras cymbas singravam para o porto

Abrindo as azas brancas, como as aves do céo;

Do promontorio Sunium ao viso magestoso,Que banha o pé nas aguas, ascendia Platão;E, como lendo as folhas de um livro mysteriosoDerramava seus olhos na infinita amplidão...

Do promontorio Sunium ao viso magestoso,

Que banha o pé nas aguas, ascendia Platão;

E, como lendo as folhas de um livro mysterioso

Derramava seus olhos na infinita amplidão...

O sol desce! o sol desce! seu derradeiro lumeDiz aos montes e ás vagas melancolico adeus,E o sabio sempre immovel no purpurado cume,Com a vista no espaço finge a estatua de um deus.

O sol desce! o sol desce! seu derradeiro lume

Diz aos montes e ás vagas melancolico adeus,

E o sabio sempre immovel no purpurado cume,

Com a vista no espaço finge a estatua de um deus.

Sobre a roca de Egina, vem surgindo a seu turnoVésper, tingindo as aguas de azulado fulgor;As estrelas despontam, e o sabio taciturnoCom o dedo nos labios pensa no infindo Amor.

Sobre a roca de Egina, vem surgindo a seu turno

Vésper, tingindo as aguas de azulado fulgor;

As estrelas despontam, e o sabio taciturno

Com o dedo nos labios pensa no infindo Amor.

Mas, eil-o que estremece! n'um transporte impetuosoDo seu negro, amplo manto se desembuça então,Depois estende os braços ao plaino rumoroso,E brada, erguendo os olhos á etherea solidão:

Mas, eil-o que estremece! n'um transporte impetuoso

Do seu negro, amplo manto se desembuça então,

Depois estende os braços ao plaino rumoroso,

E brada, erguendo os olhos á etherea solidão:

«D'este grande poema, portentos, harmonias,D'esta hora, só d'esta hora, mysteriosa assim,Só d'esta hora de doces e santas alegrias,Eu aprendo o que podes, oh Potencia sem fim!

«D'este grande poema, portentos, harmonias,

D'esta hora, só d'esta hora, mysteriosa assim,

Só d'esta hora de doces e santas alegrias,

Eu aprendo o que podes, oh Potencia sem fim!

És tu, oh Natureza que a rigidez me ensinas,Que os sophistas da Eschola, na Eschola assombrará,Em ti bebo a Sciencia, que das coisas divinasTenho, que o mundo busca, mas no mundo não ha!

És tu, oh Natureza que a rigidez me ensinas,

Que os sophistas da Eschola, na Eschola assombrará,

Em ti bebo a Sciencia, que das coisas divinas

Tenho, que o mundo busca, mas no mundo não ha!

Que logar fica á duvida em corações, que o effeitoMago d'estes momentos faz d'amor palpitar?Oh virações do empyreo, purificae-me o peito,Para que os meus bons Genios o possam habitar.

Que logar fica á duvida em corações, que o effeito

Mago d'estes momentos faz d'amor palpitar?

Oh virações do empyreo, purificae-me o peito,

Para que os meus bons Genios o possam habitar.

Descei, oh meus patronos! descei do excelso empyreo!Já minha alma está pura! homem novo já sou!Não pezam em mim sombras e duvida e delirio!A luz da eterna aurora para mim já raiou.

Descei, oh meus patronos! descei do excelso empyreo!

Já minha alma está pura! homem novo já sou!

Não pezam em mim sombras e duvida e delirio!

A luz da eterna aurora para mim já raiou.

Chamma d'amor celeste me aquece a intelligencia,Minha rasão, qual aguia, paira no extremo céo,E, á luz mysteriosa da minha consciencia,Vejo através da tumba, da morte rasgo o véo!

Chamma d'amor celeste me aquece a intelligencia,

Minha rasão, qual aguia, paira no extremo céo,

E, á luz mysteriosa da minha consciencia,

Vejo através da tumba, da morte rasgo o véo!

Immortal! que presagios. Immortal! que delirio,Immortal! que alegrias. Que crêr e que esperar!Purificae-me o peito, vós, virações do empyreo,Para que os meus bons Genios lá possam habitar!»

Immortal! que presagios. Immortal! que delirio,

Immortal! que alegrias. Que crêr e que esperar!

Purificae-me o peito, vós, virações do empyreo,

Para que os meus bons Genios lá possam habitar!»

Diz—e do Promontorio deixa o cume elevado,Que dos Genios da Noite já cercam turbilhões,E, ao rir da nova aurora, com a voz de inspirado,Descreve á turba absorta suas grandes visões!

Diz—e do Promontorio deixa o cume elevado,

Que dos Genios da Noite já cercam turbilhões,

E, ao rir da nova aurora, com a voz de inspirado,

Descreve á turba absorta suas grandes visões!

1871Leonel de Sampaio(Vicente de Faria)Grinalda, vol. III, p. 88.

1871

Leonel de Sampaio(Vicente de Faria)Grinalda, vol. III, p. 88.

Envolve-se a existencia em dois mysterios:Berço e campa—dois óvulos diversos;Dos berços faz-se o pó dos cemiterios,Das campas sae o pollén dos berços.Mysterioso circulo da vidaQue esmaga em cada giro uma alma, um ente,Que rasga em cada volta uma ferida,Que deixa em cada sulco uma semente.Alexandre da Conceição.

Envolve-se a existencia em dois mysterios:Berço e campa—dois óvulos diversos;Dos berços faz-se o pó dos cemiterios,Das campas sae o pollén dos berços.Mysterioso circulo da vidaQue esmaga em cada giro uma alma, um ente,Que rasga em cada volta uma ferida,Que deixa em cada sulco uma semente.Alexandre da Conceição.

Envolve-se a existencia em dois mysterios:Berço e campa—dois óvulos diversos;Dos berços faz-se o pó dos cemiterios,Das campas sae o pollén dos berços.

Envolve-se a existencia em dois mysterios:

Berço e campa—dois óvulos diversos;

Dos berços faz-se o pó dos cemiterios,

Das campas sae o pollén dos berços.

Mysterioso circulo da vidaQue esmaga em cada giro uma alma, um ente,Que rasga em cada volta uma ferida,Que deixa em cada sulco uma semente.

Mysterioso circulo da vida

Que esmaga em cada giro uma alma, um ente,

Que rasga em cada volta uma ferida,

Que deixa em cada sulco uma semente.

Alexandre da Conceição.

Alexandre da Conceição.

Eu, quando aos labios teus o pejo assomaComo no céo a nuvem matutina,Ou, quando esse rubor que te illuminaOccultas entre as ondas da aurea cóma,Parece que estou vendo, n'esse pejo,A timidez da pomba que tem medoDo mais leve sussufro do arvoredo,Cuidando que o rumor lhe pede um beijoA ti também, meu Deus! tudo te assusta!Que medo podes ter quando eu te fallo?Porque córas assim quando me calo?...Parece que até mesmo a olhar te custa!Se te fallo de amor não me respondes,Se te tento beijar, sorris córando;E concedes o beijo, mas, curvandoA fronte ao seio aonde tu a escondes.Esconde; olha, eu por mim não me arrenego;O que te digo é que esse teu receioFaz ás vezes com que eu te beije o seioComo errando o caminho... se estou cego!...Desterra para longe esse embaraço!Vamos, olha para mim, mas sem tal pejo!...Vamos, se não córares dou-te um beijo,Se córares... então dou-te um abraço.Alexandre da Conceição,Grinalda, vol. V, p. 29.

Eu, quando aos labios teus o pejo assomaComo no céo a nuvem matutina,Ou, quando esse rubor que te illuminaOccultas entre as ondas da aurea cóma,Parece que estou vendo, n'esse pejo,A timidez da pomba que tem medoDo mais leve sussufro do arvoredo,Cuidando que o rumor lhe pede um beijoA ti também, meu Deus! tudo te assusta!Que medo podes ter quando eu te fallo?Porque córas assim quando me calo?...Parece que até mesmo a olhar te custa!Se te fallo de amor não me respondes,Se te tento beijar, sorris córando;E concedes o beijo, mas, curvandoA fronte ao seio aonde tu a escondes.Esconde; olha, eu por mim não me arrenego;O que te digo é que esse teu receioFaz ás vezes com que eu te beije o seioComo errando o caminho... se estou cego!...Desterra para longe esse embaraço!Vamos, olha para mim, mas sem tal pejo!...Vamos, se não córares dou-te um beijo,Se córares... então dou-te um abraço.Alexandre da Conceição,Grinalda, vol. V, p. 29.

Eu, quando aos labios teus o pejo assomaComo no céo a nuvem matutina,Ou, quando esse rubor que te illuminaOccultas entre as ondas da aurea cóma,

Eu, quando aos labios teus o pejo assoma

Como no céo a nuvem matutina,

Ou, quando esse rubor que te illumina

Occultas entre as ondas da aurea cóma,

Parece que estou vendo, n'esse pejo,A timidez da pomba que tem medoDo mais leve sussufro do arvoredo,Cuidando que o rumor lhe pede um beijo

Parece que estou vendo, n'esse pejo,

A timidez da pomba que tem medo

Do mais leve sussufro do arvoredo,

Cuidando que o rumor lhe pede um beijo

A ti também, meu Deus! tudo te assusta!Que medo podes ter quando eu te fallo?Porque córas assim quando me calo?...Parece que até mesmo a olhar te custa!

A ti também, meu Deus! tudo te assusta!

Que medo podes ter quando eu te fallo?

Porque córas assim quando me calo?...

Parece que até mesmo a olhar te custa!

Se te fallo de amor não me respondes,Se te tento beijar, sorris córando;E concedes o beijo, mas, curvandoA fronte ao seio aonde tu a escondes.

Se te fallo de amor não me respondes,

Se te tento beijar, sorris córando;

E concedes o beijo, mas, curvando

A fronte ao seio aonde tu a escondes.

Esconde; olha, eu por mim não me arrenego;O que te digo é que esse teu receioFaz ás vezes com que eu te beije o seioComo errando o caminho... se estou cego!...

Esconde; olha, eu por mim não me arrenego;

O que te digo é que esse teu receio

Faz ás vezes com que eu te beije o seio

Como errando o caminho... se estou cego!...

Desterra para longe esse embaraço!Vamos, olha para mim, mas sem tal pejo!...Vamos, se não córares dou-te um beijo,Se córares... então dou-te um abraço.

Desterra para longe esse embaraço!

Vamos, olha para mim, mas sem tal pejo!...

Vamos, se não córares dou-te um beijo,

Se córares... então dou-te um abraço.

Alexandre da Conceição,Grinalda, vol. V, p. 29.

Alexandre da Conceição,Grinalda, vol. V, p. 29.

Um dia frei Manuel das Bentas ChagasLimpava ás sujas mangas da batinaDo seu teimoso pranto as grossas bagas,Sentado á sombra de uma velha ruina.Ruíra, ha muitos annos o convento,Onde lédo passara a mocidade,E vinha agora alí, por seu tormentoCurtir as agras dores da saudade.«Frei Manuel, (lhe pergunto) que pezaresTurvam teu rosto que em tal pranto lavas?Tens culpa que ruissem os altaresDo templo, onde ao Deus vivo celebravas?Não tens culpa, bem sei, choras os damnosDa santa religião, pois viste um diaO que fôra trabalho de mil annosCair ás mãos da ignara hypocrisia?»Frei Manuel me responde:—Esse tão belloTempo da vida asceta não lamento;Choro, sim, mas por vêr o carmatelloNão respeitar a adega do convento.J. Simões Dias.

Um dia frei Manuel das Bentas ChagasLimpava ás sujas mangas da batinaDo seu teimoso pranto as grossas bagas,Sentado á sombra de uma velha ruina.Ruíra, ha muitos annos o convento,Onde lédo passara a mocidade,E vinha agora alí, por seu tormentoCurtir as agras dores da saudade.«Frei Manuel, (lhe pergunto) que pezaresTurvam teu rosto que em tal pranto lavas?Tens culpa que ruissem os altaresDo templo, onde ao Deus vivo celebravas?Não tens culpa, bem sei, choras os damnosDa santa religião, pois viste um diaO que fôra trabalho de mil annosCair ás mãos da ignara hypocrisia?»Frei Manuel me responde:—Esse tão belloTempo da vida asceta não lamento;Choro, sim, mas por vêr o carmatelloNão respeitar a adega do convento.J. Simões Dias.

Um dia frei Manuel das Bentas ChagasLimpava ás sujas mangas da batinaDo seu teimoso pranto as grossas bagas,Sentado á sombra de uma velha ruina.

Um dia frei Manuel das Bentas Chagas

Limpava ás sujas mangas da batina

Do seu teimoso pranto as grossas bagas,

Sentado á sombra de uma velha ruina.

Ruíra, ha muitos annos o convento,Onde lédo passara a mocidade,E vinha agora alí, por seu tormentoCurtir as agras dores da saudade.

Ruíra, ha muitos annos o convento,

Onde lédo passara a mocidade,

E vinha agora alí, por seu tormento

Curtir as agras dores da saudade.

«Frei Manuel, (lhe pergunto) que pezaresTurvam teu rosto que em tal pranto lavas?Tens culpa que ruissem os altaresDo templo, onde ao Deus vivo celebravas?

«Frei Manuel, (lhe pergunto) que pezares

Turvam teu rosto que em tal pranto lavas?

Tens culpa que ruissem os altares

Do templo, onde ao Deus vivo celebravas?

Não tens culpa, bem sei, choras os damnosDa santa religião, pois viste um diaO que fôra trabalho de mil annosCair ás mãos da ignara hypocrisia?»

Não tens culpa, bem sei, choras os damnos

Da santa religião, pois viste um dia

O que fôra trabalho de mil annos

Cair ás mãos da ignara hypocrisia?»

Frei Manuel me responde:—Esse tão belloTempo da vida asceta não lamento;Choro, sim, mas por vêr o carmatelloNão respeitar a adega do convento.

Frei Manuel me responde:—Esse tão bello

Tempo da vida asceta não lamento;

Choro, sim, mas por vêr o carmatello

Não respeitar a adega do convento.

J. Simões Dias.

J. Simões Dias.

A obra está completa. A machina flammeja,Desenrolando o fumo em ondas pelo ár;Mas antes de partir, mandem chamar a Igreja,Que é preciso que um bispo a venha baptizar.Como ella é com certeza o fructo de Caim,A filha da Rasão, da independencia humana,Botem-lhe na fornalha uns trechos em latim,E convertam-n'a á fé catholica-romana.Devem n'ella existir diabolicos peccados,Porque é feita de cobre e ferro; e estes metaesSaem da natureza, impios, excommungados,Como saímos nós dos ventres maternaes.Vamos, esconjurae-lhe o demo que ella encerra,Extrahi a heresia ao aço lampejante!Ella acaba de vir das forjas de Inglaterra,Ha de ser com certeza um pouco protestante.Para que o monstro côrra em férvido galope,Como um sonho febril, n'um doido turbilhão,Além do machinista é necessario o hyssope,E muita theologia... além de algum carvão.Atirem-lhe uma hostia á bocca famulenta,Preguem-lhe alguns sermões, obriguem-n'a a resar,E lancem na caldeira um jorro d'agua benta,Que com agua do céo talvez não possa andar.Guerra Junqueiro.

A obra está completa. A machina flammeja,Desenrolando o fumo em ondas pelo ár;Mas antes de partir, mandem chamar a Igreja,Que é preciso que um bispo a venha baptizar.Como ella é com certeza o fructo de Caim,A filha da Rasão, da independencia humana,Botem-lhe na fornalha uns trechos em latim,E convertam-n'a á fé catholica-romana.Devem n'ella existir diabolicos peccados,Porque é feita de cobre e ferro; e estes metaesSaem da natureza, impios, excommungados,Como saímos nós dos ventres maternaes.Vamos, esconjurae-lhe o demo que ella encerra,Extrahi a heresia ao aço lampejante!Ella acaba de vir das forjas de Inglaterra,Ha de ser com certeza um pouco protestante.Para que o monstro côrra em férvido galope,Como um sonho febril, n'um doido turbilhão,Além do machinista é necessario o hyssope,E muita theologia... além de algum carvão.Atirem-lhe uma hostia á bocca famulenta,Preguem-lhe alguns sermões, obriguem-n'a a resar,E lancem na caldeira um jorro d'agua benta,Que com agua do céo talvez não possa andar.Guerra Junqueiro.

A obra está completa. A machina flammeja,Desenrolando o fumo em ondas pelo ár;Mas antes de partir, mandem chamar a Igreja,Que é preciso que um bispo a venha baptizar.

A obra está completa. A machina flammeja,

Desenrolando o fumo em ondas pelo ár;

Mas antes de partir, mandem chamar a Igreja,

Que é preciso que um bispo a venha baptizar.

Como ella é com certeza o fructo de Caim,A filha da Rasão, da independencia humana,Botem-lhe na fornalha uns trechos em latim,E convertam-n'a á fé catholica-romana.

Como ella é com certeza o fructo de Caim,

A filha da Rasão, da independencia humana,

Botem-lhe na fornalha uns trechos em latim,

E convertam-n'a á fé catholica-romana.

Devem n'ella existir diabolicos peccados,Porque é feita de cobre e ferro; e estes metaesSaem da natureza, impios, excommungados,Como saímos nós dos ventres maternaes.

Devem n'ella existir diabolicos peccados,

Porque é feita de cobre e ferro; e estes metaes

Saem da natureza, impios, excommungados,

Como saímos nós dos ventres maternaes.

Vamos, esconjurae-lhe o demo que ella encerra,Extrahi a heresia ao aço lampejante!Ella acaba de vir das forjas de Inglaterra,Ha de ser com certeza um pouco protestante.

Vamos, esconjurae-lhe o demo que ella encerra,

Extrahi a heresia ao aço lampejante!

Ella acaba de vir das forjas de Inglaterra,

Ha de ser com certeza um pouco protestante.

Para que o monstro côrra em férvido galope,Como um sonho febril, n'um doido turbilhão,Além do machinista é necessario o hyssope,E muita theologia... além de algum carvão.

Para que o monstro côrra em férvido galope,

Como um sonho febril, n'um doido turbilhão,

Além do machinista é necessario o hyssope,

E muita theologia... além de algum carvão.

Atirem-lhe uma hostia á bocca famulenta,Preguem-lhe alguns sermões, obriguem-n'a a resar,E lancem na caldeira um jorro d'agua benta,Que com agua do céo talvez não possa andar.

Atirem-lhe uma hostia á bocca famulenta,

Preguem-lhe alguns sermões, obriguem-n'a a resar,

E lancem na caldeira um jorro d'agua benta,

Que com agua do céo talvez não possa andar.

Guerra Junqueiro.

Guerra Junqueiro.

Elle é descommunal, titânico, felpudo;Anda sinistramente a farejar na treva,E causa-nos horror, como um gigante mudo.Vive na escuridão phantastica do Neva,E já ouvi dizer que essa alimaria informeÉ também como nós filho de Adão e Eva.Rasteja pela sombra; e mesmo quando dormeConserva sempre aberto um olho coruscanteComo um cacto real ensanguentado, enorme.É o despota feroz o Cesar triumphanteD'uma crepuscular, longinqua Babylonia,Que é como um pezadelo, uma visão do Dante.Nas convulsões febris da bestial insomniaEstorce-se a lamber as garras sensuaes,Ruminando lá dentro o craneo da Polonia.Anda espreitando ao longe as torres orientaes,As flexas de Stambul, as morbidas almêasCom o riso cruel dos lobos imperiaes.Tira o sangue do povo e manda abrir-lhe as veias,E os duques-generaes e os bispos-cortezãos,Misturam-no com vinho e bebem-no nas ceias.Satanaz é seu pae, e os tigres seus irmãos,Depois de realisar doidas carnificinas,Lava com agua benta as sanguinarias mãos.Sobre os campos do mal semeia as guilhotinas,Mergulha brutalmente a plebe esfarrapadaNa bronzea escuridão de tenebrosas minas:Por isso quando vae de fronte levantada,Entre o clamor febril da guarda pretoriana,Erguendo para a luz a flammejante espada,Debaixo de seus pés, em confusão insana,Sente-se revolver um mar de imprecações,Que abala o fundamento á consciencia humana.Justiça! vae abrir as furnas dos leões!Desce d'aquelle inferno ás gélidas entranhas,E arranca-me de lá os tristes corações,Que sentem sobre si o peso das montanhas.Transforma n'uma lança os ferros das algemas!Vae aos gelos do norte, as solidões estranhas...Procura a fera brava; eia, mulher, não tremas!Embebe-lhe sem dó no musculoso flancoA lança virginal das coleras supremas.Monta no teu corcel! Agarra o urso branco:Ensina-lhe a dansar umas grutescas dansas,E dá-o de presente a um magro saltimbancoQue o mostre n'uma feira aos risos de crianças.Guerra Junqueiro

Elle é descommunal, titânico, felpudo;Anda sinistramente a farejar na treva,E causa-nos horror, como um gigante mudo.Vive na escuridão phantastica do Neva,E já ouvi dizer que essa alimaria informeÉ também como nós filho de Adão e Eva.Rasteja pela sombra; e mesmo quando dormeConserva sempre aberto um olho coruscanteComo um cacto real ensanguentado, enorme.É o despota feroz o Cesar triumphanteD'uma crepuscular, longinqua Babylonia,Que é como um pezadelo, uma visão do Dante.Nas convulsões febris da bestial insomniaEstorce-se a lamber as garras sensuaes,Ruminando lá dentro o craneo da Polonia.Anda espreitando ao longe as torres orientaes,As flexas de Stambul, as morbidas almêasCom o riso cruel dos lobos imperiaes.Tira o sangue do povo e manda abrir-lhe as veias,E os duques-generaes e os bispos-cortezãos,Misturam-no com vinho e bebem-no nas ceias.Satanaz é seu pae, e os tigres seus irmãos,Depois de realisar doidas carnificinas,Lava com agua benta as sanguinarias mãos.Sobre os campos do mal semeia as guilhotinas,Mergulha brutalmente a plebe esfarrapadaNa bronzea escuridão de tenebrosas minas:Por isso quando vae de fronte levantada,Entre o clamor febril da guarda pretoriana,Erguendo para a luz a flammejante espada,Debaixo de seus pés, em confusão insana,Sente-se revolver um mar de imprecações,Que abala o fundamento á consciencia humana.Justiça! vae abrir as furnas dos leões!Desce d'aquelle inferno ás gélidas entranhas,E arranca-me de lá os tristes corações,Que sentem sobre si o peso das montanhas.Transforma n'uma lança os ferros das algemas!Vae aos gelos do norte, as solidões estranhas...Procura a fera brava; eia, mulher, não tremas!Embebe-lhe sem dó no musculoso flancoA lança virginal das coleras supremas.Monta no teu corcel! Agarra o urso branco:Ensina-lhe a dansar umas grutescas dansas,E dá-o de presente a um magro saltimbancoQue o mostre n'uma feira aos risos de crianças.Guerra Junqueiro

Elle é descommunal, titânico, felpudo;Anda sinistramente a farejar na treva,E causa-nos horror, como um gigante mudo.

Elle é descommunal, titânico, felpudo;

Anda sinistramente a farejar na treva,

E causa-nos horror, como um gigante mudo.

Vive na escuridão phantastica do Neva,E já ouvi dizer que essa alimaria informeÉ também como nós filho de Adão e Eva.

Vive na escuridão phantastica do Neva,

E já ouvi dizer que essa alimaria informe

É também como nós filho de Adão e Eva.

Rasteja pela sombra; e mesmo quando dormeConserva sempre aberto um olho coruscanteComo um cacto real ensanguentado, enorme.

Rasteja pela sombra; e mesmo quando dorme

Conserva sempre aberto um olho coruscante

Como um cacto real ensanguentado, enorme.

É o despota feroz o Cesar triumphanteD'uma crepuscular, longinqua Babylonia,Que é como um pezadelo, uma visão do Dante.

É o despota feroz o Cesar triumphante

D'uma crepuscular, longinqua Babylonia,

Que é como um pezadelo, uma visão do Dante.

Nas convulsões febris da bestial insomniaEstorce-se a lamber as garras sensuaes,Ruminando lá dentro o craneo da Polonia.

Nas convulsões febris da bestial insomnia

Estorce-se a lamber as garras sensuaes,

Ruminando lá dentro o craneo da Polonia.

Anda espreitando ao longe as torres orientaes,As flexas de Stambul, as morbidas almêasCom o riso cruel dos lobos imperiaes.

Anda espreitando ao longe as torres orientaes,

As flexas de Stambul, as morbidas almêas

Com o riso cruel dos lobos imperiaes.

Tira o sangue do povo e manda abrir-lhe as veias,E os duques-generaes e os bispos-cortezãos,Misturam-no com vinho e bebem-no nas ceias.

Tira o sangue do povo e manda abrir-lhe as veias,

E os duques-generaes e os bispos-cortezãos,

Misturam-no com vinho e bebem-no nas ceias.

Satanaz é seu pae, e os tigres seus irmãos,Depois de realisar doidas carnificinas,Lava com agua benta as sanguinarias mãos.

Satanaz é seu pae, e os tigres seus irmãos,

Depois de realisar doidas carnificinas,

Lava com agua benta as sanguinarias mãos.

Sobre os campos do mal semeia as guilhotinas,Mergulha brutalmente a plebe esfarrapadaNa bronzea escuridão de tenebrosas minas:

Sobre os campos do mal semeia as guilhotinas,

Mergulha brutalmente a plebe esfarrapada

Na bronzea escuridão de tenebrosas minas:

Por isso quando vae de fronte levantada,Entre o clamor febril da guarda pretoriana,Erguendo para a luz a flammejante espada,

Por isso quando vae de fronte levantada,

Entre o clamor febril da guarda pretoriana,

Erguendo para a luz a flammejante espada,

Debaixo de seus pés, em confusão insana,Sente-se revolver um mar de imprecações,Que abala o fundamento á consciencia humana.

Debaixo de seus pés, em confusão insana,

Sente-se revolver um mar de imprecações,

Que abala o fundamento á consciencia humana.

Justiça! vae abrir as furnas dos leões!Desce d'aquelle inferno ás gélidas entranhas,E arranca-me de lá os tristes corações,

Justiça! vae abrir as furnas dos leões!

Desce d'aquelle inferno ás gélidas entranhas,

E arranca-me de lá os tristes corações,

Que sentem sobre si o peso das montanhas.Transforma n'uma lança os ferros das algemas!Vae aos gelos do norte, as solidões estranhas...

Que sentem sobre si o peso das montanhas.

Transforma n'uma lança os ferros das algemas!

Vae aos gelos do norte, as solidões estranhas...

Procura a fera brava; eia, mulher, não tremas!Embebe-lhe sem dó no musculoso flancoA lança virginal das coleras supremas.

Procura a fera brava; eia, mulher, não tremas!

Embebe-lhe sem dó no musculoso flanco

A lança virginal das coleras supremas.

Monta no teu corcel! Agarra o urso branco:Ensina-lhe a dansar umas grutescas dansas,E dá-o de presente a um magro saltimbanco

Monta no teu corcel! Agarra o urso branco:

Ensina-lhe a dansar umas grutescas dansas,

E dá-o de presente a um magro saltimbanco

Que o mostre n'uma feira aos risos de crianças.

Que o mostre n'uma feira aos risos de crianças.

Guerra Junqueiro

Guerra Junqueiro


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