XXVIIO CEGADOR
A edição arraiana d’este romance que me veio de Tras-os-montes chama-lhe ‘A filha do imperador de Roma.’ Não a segui no titulo nem em muitas partes do texto, incostei-me antes á licção da Beiralta. E so éstas duas me chegaram; não me consta que n’outras provincias do reino seja conhecido.
Que imperador será este? Teremos aqui algum episodio da crapulosa historia byzantina, ou é outro capitulo licencioso da chronica secreta de Carlos-Magno? O trovador, que a trovou n’essa meia-edade, cujo sêllo visivelmente lhe pende de todas as coplas, não pôs nomes nem datas, segundo o geral costume: e adivinhe quem quizer se este imperador de Roma era do occidente ou do oriente, do alto ou dobaixo imperio, Cesar verdadeiro ou Kaiser de imitação germanica? Deve de ser d’estes ultimos pela menção do duque de Lombardia que no fim apparece.
A licção da Beira, que segui mais que a transmontana, tem muitas variantes obscenas que forçosamente deviam ser desprezadas. Nem as creio originaes, senão introduzidas pelo depravado gosto de algumrouéd’aldea.
Nos romanceiros castelhanos não se incontra, e para o sul de Portugal é inteiramente desconhecido. Todavia, assim restituida pela collação dos dois textos que obtive, ésta ficou uma das mais completas reliquias da nossa poesia popular que possam incontrar-se.
O imperador de RomaTem uma filha bastardaA quem tanto quer e tantoQue a traz mui mal criada.Pedem-lh’a condes, senhores[87],Homens de capa e d’espada;Ella isenta e desdenhosaA todos lhes punha tacha:Um é criança, outro é velho[88],Este que não tinha barba,Aquelle que não tem pulsoPara puchar pela espada.Dizia-lhe o pae surrindo:—‘Inda hasde ser castigada!De algum villão de porqueiroTe espero ver namorada.’Por manhan de San’ João,Manhan de doce alvorada,Ao seu balcão muito cedo[89]A infanta se assomava.Viu andar tres cegadoresFazendo sua cegada;O mais pequeno dos tresEra o que mais trabalhava.Fitta que traz no chapeuDe oiro e seda era bordada;Fina prata que luziaA foice com que ceifava.De seu garbo e gentilezaA infanta se namorava.O ceifeiro vai ceifando...Bem sabe elle o que ceifava!Alli estava a aia discretaEm quem toda se fiava:—‘Ves, aia, aquelle ceifeiroQue anda n’aquella cegada?Condes, duques, cavalleiros,Nenhum que o ceifeiro valha.Vai-m’o chamar em segredo,Que ninguem não saiba nada.’—‘Bom cegador, vem commigo,Que te quer fallar minha ama.’—‘Tua ama, não n’a conheçoNem tam pouco a quem me chama[90].’—‘Cegador de boa estrea,Traze’la vista mui baixa:Alça os olhos e verásA estrella da madrugada.’—‘Vejo o sol que vem nascendo,Não vejo a estrella d’alva.’—‘Estrella ou sol, vens commigo?’—‘Irei, pois quem póde, manda.’Entraram por um postigo,Que a porta inda era cerrada;No camarim da princezaO bom do ceifeiro estava.—‘Senhora que me quereis?Pois venho á vossa chamada.’—‘Quero saber se te atrevesA fazer minha cegada?’—‘Atrever, me atrevo a tudo;Trabalho não me accovarda.Dizei vós, senhora minha,Onde é a vossa cegada.’—‘Não é no monte ou no valle,No baldio ou na coitada;Cegador, é nos meus braços,Que de ti estou namorada.’Passou todo aquelle dia[91],O mais da noite passava,Ceifando vai o ceifeiro...Bem sabe elle o que ceifava!—‘Basta, basta, cegador,Feita está tua cegada:Vai-te, que meu pae não venha,Antes de ser madrugada.’Palavras não eram dittas,O pae á cama chegava:—‘Com quem fallas, minha filha,Tam cedo de madrugada?’—‘Fallo com ésta minha aiaQue me tem desesperada;Uma cama tam mal feitaQue dormir me não deixava.’—‘É forte aia essa tuaQue a barba tem tam cerrada!Vista-se ja a donzella,Que, antes de ser madrugada,Pelo barbeiro do algozA quero ver barbeada.’O cegador muito inchutoSua sentença escutava,Com uma mão se vestia,Com a outra se calçava.Saltou no meio da casaComo se não fôra nada:—‘Venha ja esse barbeiroCom a navalha affiada:Ao duque de LombardiaVeremos quem faz a barba.’O imperador mui contenteDepressa alli os casava.Não quiz senhores, nem condesHomens de capa ou de espada,Senão só o cegadorQue andava em sua cegada.Podia ser um porqueiroQue a deixasse deshonrada...Sahiu-lhe um duque reinante,Senhor de alta nomeada.Pois tudo é sorte no mundo,A sorte foi bem deitada.
O imperador de RomaTem uma filha bastardaA quem tanto quer e tantoQue a traz mui mal criada.Pedem-lh’a condes, senhores[87],Homens de capa e d’espada;Ella isenta e desdenhosaA todos lhes punha tacha:Um é criança, outro é velho[88],Este que não tinha barba,Aquelle que não tem pulsoPara puchar pela espada.Dizia-lhe o pae surrindo:—‘Inda hasde ser castigada!De algum villão de porqueiroTe espero ver namorada.’Por manhan de San’ João,Manhan de doce alvorada,Ao seu balcão muito cedo[89]A infanta se assomava.Viu andar tres cegadoresFazendo sua cegada;O mais pequeno dos tresEra o que mais trabalhava.Fitta que traz no chapeuDe oiro e seda era bordada;Fina prata que luziaA foice com que ceifava.De seu garbo e gentilezaA infanta se namorava.O ceifeiro vai ceifando...Bem sabe elle o que ceifava!Alli estava a aia discretaEm quem toda se fiava:—‘Ves, aia, aquelle ceifeiroQue anda n’aquella cegada?Condes, duques, cavalleiros,Nenhum que o ceifeiro valha.Vai-m’o chamar em segredo,Que ninguem não saiba nada.’—‘Bom cegador, vem commigo,Que te quer fallar minha ama.’—‘Tua ama, não n’a conheçoNem tam pouco a quem me chama[90].’—‘Cegador de boa estrea,Traze’la vista mui baixa:Alça os olhos e verásA estrella da madrugada.’—‘Vejo o sol que vem nascendo,Não vejo a estrella d’alva.’—‘Estrella ou sol, vens commigo?’—‘Irei, pois quem póde, manda.’Entraram por um postigo,Que a porta inda era cerrada;No camarim da princezaO bom do ceifeiro estava.—‘Senhora que me quereis?Pois venho á vossa chamada.’—‘Quero saber se te atrevesA fazer minha cegada?’—‘Atrever, me atrevo a tudo;Trabalho não me accovarda.Dizei vós, senhora minha,Onde é a vossa cegada.’—‘Não é no monte ou no valle,No baldio ou na coitada;Cegador, é nos meus braços,Que de ti estou namorada.’Passou todo aquelle dia[91],O mais da noite passava,Ceifando vai o ceifeiro...Bem sabe elle o que ceifava!—‘Basta, basta, cegador,Feita está tua cegada:Vai-te, que meu pae não venha,Antes de ser madrugada.’Palavras não eram dittas,O pae á cama chegava:—‘Com quem fallas, minha filha,Tam cedo de madrugada?’—‘Fallo com ésta minha aiaQue me tem desesperada;Uma cama tam mal feitaQue dormir me não deixava.’—‘É forte aia essa tuaQue a barba tem tam cerrada!Vista-se ja a donzella,Que, antes de ser madrugada,Pelo barbeiro do algozA quero ver barbeada.’O cegador muito inchutoSua sentença escutava,Com uma mão se vestia,Com a outra se calçava.Saltou no meio da casaComo se não fôra nada:—‘Venha ja esse barbeiroCom a navalha affiada:Ao duque de LombardiaVeremos quem faz a barba.’O imperador mui contenteDepressa alli os casava.Não quiz senhores, nem condesHomens de capa ou de espada,Senão só o cegadorQue andava em sua cegada.Podia ser um porqueiroQue a deixasse deshonrada...Sahiu-lhe um duque reinante,Senhor de alta nomeada.Pois tudo é sorte no mundo,A sorte foi bem deitada.
O imperador de RomaTem uma filha bastardaA quem tanto quer e tantoQue a traz mui mal criada.Pedem-lh’a condes, senhores[87],Homens de capa e d’espada;Ella isenta e desdenhosaA todos lhes punha tacha:Um é criança, outro é velho[88],Este que não tinha barba,Aquelle que não tem pulsoPara puchar pela espada.Dizia-lhe o pae surrindo:—‘Inda hasde ser castigada!De algum villão de porqueiroTe espero ver namorada.’
O imperador de Roma
Tem uma filha bastarda
A quem tanto quer e tanto
Que a traz mui mal criada.
Pedem-lh’a condes, senhores[87],
Homens de capa e d’espada;
Ella isenta e desdenhosa
A todos lhes punha tacha:
Um é criança, outro é velho[88],
Este que não tinha barba,
Aquelle que não tem pulso
Para puchar pela espada.
Dizia-lhe o pae surrindo:
—‘Inda hasde ser castigada!
De algum villão de porqueiro
Te espero ver namorada.’
Por manhan de San’ João,Manhan de doce alvorada,Ao seu balcão muito cedo[89]A infanta se assomava.Viu andar tres cegadoresFazendo sua cegada;O mais pequeno dos tresEra o que mais trabalhava.Fitta que traz no chapeuDe oiro e seda era bordada;Fina prata que luziaA foice com que ceifava.De seu garbo e gentilezaA infanta se namorava.O ceifeiro vai ceifando...Bem sabe elle o que ceifava!
Por manhan de San’ João,
Manhan de doce alvorada,
Ao seu balcão muito cedo[89]
A infanta se assomava.
Viu andar tres cegadores
Fazendo sua cegada;
O mais pequeno dos tres
Era o que mais trabalhava.
Fitta que traz no chapeu
De oiro e seda era bordada;
Fina prata que luzia
A foice com que ceifava.
De seu garbo e gentileza
A infanta se namorava.
O ceifeiro vai ceifando...
Bem sabe elle o que ceifava!
Alli estava a aia discretaEm quem toda se fiava:—‘Ves, aia, aquelle ceifeiroQue anda n’aquella cegada?Condes, duques, cavalleiros,Nenhum que o ceifeiro valha.Vai-m’o chamar em segredo,Que ninguem não saiba nada.’
Alli estava a aia discreta
Em quem toda se fiava:
—‘Ves, aia, aquelle ceifeiro
Que anda n’aquella cegada?
Condes, duques, cavalleiros,
Nenhum que o ceifeiro valha.
Vai-m’o chamar em segredo,
Que ninguem não saiba nada.’
—‘Bom cegador, vem commigo,Que te quer fallar minha ama.’—‘Tua ama, não n’a conheçoNem tam pouco a quem me chama[90].’—‘Cegador de boa estrea,Traze’la vista mui baixa:Alça os olhos e verásA estrella da madrugada.’—‘Vejo o sol que vem nascendo,Não vejo a estrella d’alva.’—‘Estrella ou sol, vens commigo?’—‘Irei, pois quem póde, manda.’
—‘Bom cegador, vem commigo,
Que te quer fallar minha ama.’
—‘Tua ama, não n’a conheço
Nem tam pouco a quem me chama[90].’
—‘Cegador de boa estrea,
Traze’la vista mui baixa:
Alça os olhos e verás
A estrella da madrugada.’
—‘Vejo o sol que vem nascendo,
Não vejo a estrella d’alva.’
—‘Estrella ou sol, vens commigo?’
—‘Irei, pois quem póde, manda.’
Entraram por um postigo,Que a porta inda era cerrada;No camarim da princezaO bom do ceifeiro estava.—‘Senhora que me quereis?Pois venho á vossa chamada.’—‘Quero saber se te atrevesA fazer minha cegada?’
Entraram por um postigo,
Que a porta inda era cerrada;
No camarim da princeza
O bom do ceifeiro estava.
—‘Senhora que me quereis?
Pois venho á vossa chamada.’
—‘Quero saber se te atreves
A fazer minha cegada?’
—‘Atrever, me atrevo a tudo;Trabalho não me accovarda.Dizei vós, senhora minha,Onde é a vossa cegada.’—‘Não é no monte ou no valle,No baldio ou na coitada;Cegador, é nos meus braços,Que de ti estou namorada.’
—‘Atrever, me atrevo a tudo;
Trabalho não me accovarda.
Dizei vós, senhora minha,
Onde é a vossa cegada.’
—‘Não é no monte ou no valle,
No baldio ou na coitada;
Cegador, é nos meus braços,
Que de ti estou namorada.’
Passou todo aquelle dia[91],O mais da noite passava,Ceifando vai o ceifeiro...Bem sabe elle o que ceifava!—‘Basta, basta, cegador,Feita está tua cegada:Vai-te, que meu pae não venha,Antes de ser madrugada.’
Passou todo aquelle dia[91],
O mais da noite passava,
Ceifando vai o ceifeiro...
Bem sabe elle o que ceifava!
—‘Basta, basta, cegador,
Feita está tua cegada:
Vai-te, que meu pae não venha,
Antes de ser madrugada.’
Palavras não eram dittas,O pae á cama chegava:—‘Com quem fallas, minha filha,Tam cedo de madrugada?’—‘Fallo com ésta minha aiaQue me tem desesperada;Uma cama tam mal feitaQue dormir me não deixava.’—‘É forte aia essa tuaQue a barba tem tam cerrada!Vista-se ja a donzella,Que, antes de ser madrugada,Pelo barbeiro do algozA quero ver barbeada.’O cegador muito inchutoSua sentença escutava,Com uma mão se vestia,Com a outra se calçava.Saltou no meio da casaComo se não fôra nada:—‘Venha ja esse barbeiroCom a navalha affiada:Ao duque de LombardiaVeremos quem faz a barba.’
Palavras não eram dittas,
O pae á cama chegava:
—‘Com quem fallas, minha filha,
Tam cedo de madrugada?’
—‘Fallo com ésta minha aia
Que me tem desesperada;
Uma cama tam mal feita
Que dormir me não deixava.’
—‘É forte aia essa tua
Que a barba tem tam cerrada!
Vista-se ja a donzella,
Que, antes de ser madrugada,
Pelo barbeiro do algoz
A quero ver barbeada.’
O cegador muito inchuto
Sua sentença escutava,
Com uma mão se vestia,
Com a outra se calçava.
Saltou no meio da casa
Como se não fôra nada:
—‘Venha ja esse barbeiro
Com a navalha affiada:
Ao duque de Lombardia
Veremos quem faz a barba.’
O imperador mui contenteDepressa alli os casava.Não quiz senhores, nem condesHomens de capa ou de espada,Senão só o cegadorQue andava em sua cegada.Podia ser um porqueiroQue a deixasse deshonrada...Sahiu-lhe um duque reinante,Senhor de alta nomeada.Pois tudo é sorte no mundo,A sorte foi bem deitada.
O imperador mui contente
Depressa alli os casava.
Não quiz senhores, nem condes
Homens de capa ou de espada,
Senão só o cegador
Que andava em sua cegada.
Podia ser um porqueiro
Que a deixasse deshonrada...
Sahiu-lhe um duque reinante,
Senhor de alta nomeada.
Pois tudo é sorte no mundo,
A sorte foi bem deitada.