OITAVAS CONSOLATORIAS
Sobre o mesmo pezar.
Ainda que a dor da razão priva,Quãdo a causa della he muito amada,Ainda que a paixaõ prende, e cativa,Os discursos de huma alma atormentada.A fé que sobre a mente he bem que viva,Pois anda sobre os Ceos alevantada,Dos males que sentis, e dos que vedes,Vos consola com os bens, que por fé crédes.
O Deos, centro das almas, guia, e norte,Por quem cada qual dellas he regidas,Fez que esta nossa vida fosse morte,Depois que sua morte fez a vida:Assim quem vive mais tem peor sorte,Pois que padece morte mais comprida,Porq̃ naõ logra mais quem tem mais annos,Mas quem mais annos tẽ, sofre mais dãnos.
Aquelle puro espirito encastoado;No delicado corpo que vos vieis,Sò consentia ser de vòs amado,Porque o divino amor lhe consentieis;E pois que Deos aos Ceos o tinha dado,E vòs só do emprestado possueis,Porque haveis de chorar de ver que Deos,Da terra quer levar o que he dos Ceos?
Tanto o amador melhor padece,O trabalho por mais duro que seja,Quanto delle o pezar mais enriquece,A cousa que mais ama, e mais deseja.Pois se Deos que nos Ceos, quiz que estivesse,Naõ quer que a terra indigna mais a veja,Possa mais o seu bem para alegrar-vos,Do que pòde esse mal para cançar-vos.
He tençaõ do amor à razaõ dada,Que os bens que busca ainda em seu perigo,Mais saõ para os dar à cousa amada,Que naõ para logralos sò comsigo:Pois se estes a que esta alma foy chamada,Sem vòs lhos quiz dar Deos, se sois amigo,Folgay de carecer da parte vossa,Porque ella a parte, e o todo lograr possa.
Quem vive no terrestre Purgatorio,Vive para ir gozar de hum bem eterno,E em quanto tinheis nella o transitorio;Em tanto naõ tinha ella o sempiterno,Pois se he ponto de fé, claro, e notorio,Que acaba o bem antigo, e o bem moderno,Se lhe querieis bem, num bem está posta,No qual todos os bens possue, e gosta.
Mas vòs a quem a dor custa mais caro,Direis do damno della atormentado,Que naõ chorais da esposa o rico amparoMas que chorais a vòs desamparado.Porèm sabendo Deos que era muy raro,Poder viver sem amar, e ser amado,Amar sua belleza vos convida,E quer que vendo a morte, ameis a vida.
Porque este autor de toda a formosura,Movido da feição, não de rigor,Vos tira dante os olhos a pintura,Porque ponhais os olhos no pintor;O casto amor que tinheis foy figura,Do real, verdadeiro, e puro amor,Que se Deos vos tirou cousa tào bella,Foy por vos dar a si que o he mais que ella.
As cousas que da terra vaõ passando,Que nòs andamos nella pretendendo,Naõ saõ para os lograr nellas parando,Mas para Deos por ellas irmos vendo;Assim esta que vos hieis amando,Sabey, que ordenou Deos, segundo entendo,Que no humano amor vos enssayasseis,Porque o divino amor representasseis.